Acordou com o som do telefone; olhou o relógio de cabeceira,
vendo que dormira quase doze horas; nos recados da caixa postal do celular reconheceu
a voz pausada e profunda de Lisandro, o advogado do pai, que marcava um
encontro para o fim da tarde no escritório dele. Lembrava da devoção e da
fidelidade canina ao pai, que , na realidade, disfarçava a devoção por ela; se
apaixonara desde seus tempos de jovem advogado recém-saído das Arcadas, com
todo o mundo pela frente, mas ela cedo enterrara as ilusões dele; não nascera
pra relacionamentos, nem mesmo pra compromissos; decepcionara-se com os poucos
que tivera; não que fosse sem coração ou insensível; simplesmente sentira que
não nascera talhada para aquilo.
Tomou uma demorada ducha, arrumou-se e saiu; levou mais ou
menos uma hora pra chegar no escritório, num elegante prédio comercial de
janelas de vidro negro; tomou o elevador e em minutos estava na sala de
Lisandro, onde a secretária convidou-a a sentar-se e esperar, pois ele estava
em uma chamada importante; ela reparou nos compêndios impecavelmente arrumados,
as estatuas indianas que os separavam em grupos, a ampla mesa de mogno em que
repousavam um peso de papel, uma estátua de Atlas de tamanho médio e embaixo
dela uma pilha de pastas; imaginou a urgência daqueles processos, a ansiedade
desmedida dos clientes;
Não demorou muito pra que ele chegasse, terno bem composto,
cabelo grisalho e óculos de aro de metal; era a solenidade em pessoa; ela
conjecturou se por acaso ele teria alguma vez, fora a intimidade dos dois,
revelado algum tipo de emoção; ele sentou na cadeira reclinável de espaldar
alto, cruzou as mãos e, tirando da gaveta uma pasta de papel pardo, a colocou
na frente dela.
- Bem, Eliza, seu pai me deixou instruções precisas sobre
algumas coisas que você precisa tomar conhecimento; imagino que você tenha lido
a carta que eu entreguei no funeral.
-Sim, eu li – respondeu ela, com voz calma, a curiosidade
remoendo – ele me explicou bem a respeito de tudo, mas a carta dizia que você
teria outras informações...
- Isso mesmo – respondeu no mesmo tom solene – seu pai me
nomeou seu testamenteiro e inventariante, de modo que muitos dos trâmites
legais já estavam em andamento antes dele morrer.
Ele, então, abriu a pasta, espalhando ordenadamente o conteúdo
sobre a mesa de mogno. Além da descrição do espólio e dos bens – que se
resumiam ao apartamento que ela residia, na Constante com N.Sa de Copacabana,
no sítio de Petrópolis e um sobrado em São Luis do Maranhão, além de dois
terrenos em Angra dos Reis e um conjunto de aplicações e investimentos, que
também incluíam lotes de ações ao portador de bancos empresas – o testamento e
as disposições do pai, que nada tinham de novo; ele a nomeava sua única
herdeira, além de separar uma parte dos investimentos pra ela e outra para o
Asilo de Mendicidade em São Luís, além da transferência de uma quantia em
dinheiro para uma pessoa chamada Albertina Ribeira, residente na cidade de
Belém do Pará;
- Mas há mais – disse Lisandro, as mãos cruzadas sobre a
mesa - ele deixou igualmente isso –
tirou então uma caixa de pinho e colocou-a na mesa junto om o envelope - mas o
conteúdo nem mesmo eu sei; ele apenas me pediu que a guardasse e apenas depois
que ele falecesse deveria ser entregue a você; as instruções de acesso estão
neste envelope;
Ela tomou nas mãos a caixa e o envelope pardo lacrado,
arrumando-os da melhor forma possível; Lisandro depois conversou de amenidades,
como o casamento da sobrinha, a formatura do filho de um amigo e um projeto de
ampliação do escritório; ela escutou tudo com cortesia, mas o pensamento estava
longe, nas coisas deixadas pelo pai; Lisandro ainda não desistira dela; a
solenidade disfarçava uma grande admiração ou mesmo amor, como ela, num
momento, divagou; ela, porém, jamais se arrependeu de não ter alimentado
esperanças, pois sabia que destruiria o homem que ele poderia ser com outra pessoa
bem mais aberta para amar do que ela; ficou sem saber se a devoção dele era, de
fato, amor ou seria apenas uma obsessão do ego. Despediu-se dele e retornou ao
apartamento.
Não abriu imediatamente o envelope; a ansiedade, ela sempre
lembrava o conselho do pai, poderia ser perigosa se não fosse contida, podendo
fazer que se tomasse ou uma decisão errada ou se cometesse um ato precipitado;
assim, depois de assistir televisão e jantar, leu algumas linhas dos cadernos
de cultura dos jornais que tinham sido entregues pelo porteiro – ela só lia os
jornais do dia quando ia se recolher para dormir - mas, vencida pelo cansaço, caiu no sono.
O sol tocou-lhe o rosto, fazendo-a despertar levemente; o
crepitar da vibração do celular quebrou a calma; era Júlia, a secretária,
avisando da reunião com diretores de uma construtora que contratara o
escritório dela para elaborar uma concepção diferenciada para lofts no centro,
aproveitando os espaços dos prédios antigos; olhou o relógio; oito e quinze;
ainda teria tempo para tomar café, mas seria no pequeno bar que ficava perto do
escritório; a reunião estava marcada para as onze e meia, então ela ainda teria
um pouco de tempo; depois de arranjar a caixa e o envelope em uma sacola,
colocou–a no banco traseiro do carro e saiu à toda para o escritório. Diferente
de Lisandro, que apreciava a madeira, ela era grande apreciadora de plástico e
metal, materiais que fazia de inspiração para seus conceitos; minimalista, tudo
na sala se casava a um espaço de utilidade prática; não havia espaço pra arte;
peças de decoração aqui e ali, sem carregar demais, eram a marca do espaço
dela. A única concessão que fazia ao
equilíbrio estilístico do seu escritório eram duas fotos emolduradas em sua
mesa: uma, dela e do pai, tirada num verão na Churrascaria Plataforma, lugar
que ele, religiosamente, sempre ia no último sábado de cada mês, refestelar-se
nas iguarias que o lugar oferecia; ela, vegetariana convicta, apenas se
aventurava nas saladas; a outra, emoldurada em metal prateado, mostrava o pai na juventude, um sorriso amplo,
de braços cruzados, chapéu desabado para a nuca; no canto inferior direito da
foto, uma dedicatória onde se lia: “à minha querida Adélia, pra diminuir um tanto a saudade; com
amor, Silvano”; tinha sido um presente do pai, num dia que ele, num impulso,
revirara suas lembranças e lhe dera a foto; impressionou-a o olhar iluminado, o
sorriso idem; aquela imagem, ela sentia, era a página inicial de uma história
de amor...
Ilustrações: Google Images/blacyblanc.blogspot.com