Ele não
tinha medo de nada.
Era popular
na tropa e nada ordenava que ele mesmo não pudesse fazer; de piquetes de
esclarecimento até cargas de emboscada, era ele mesmo quem comandava, ou
mandava alguém de confiança, mas sempre gostava de acompanhar; uns diziam que
se atirava pra morte; outros que ele tinha enterrado o coração numa arca a
vinte palmos debaixo da terra, por isso não podia morrer; outros mais ainda
arriscavam a dizer que a bala que iria matá-lo não tinha nem sequer sido
fundida; faziam o sinal da cruz pelas costas dele quando passava;
Viam-no
sempre em silêncios meditativos, observando o campo, ou mesmo nas cavalgadas em
que, tal qual Napoleão, reconhecesse o campo de batalha antes da refrega; hábil
no sabre, era mortal na carga e não foram poucos os que conheceram o fim no seu
aço afiado, de talho certeiro e mortal; não usava suas pistolas nos poméis ou
coldres de sela, mas num coldre que deixava-as debaixo de cada axila, o que
fazia o ato de sacar e atirar mais fácil; parecia não ter sono; uns diziam que
comia e dormia na sela, que não teria medo nem se o próprio diabo aparecesse na
frente dele.
O único que
não tinha esse temor era Tibúrcio, o cabo de armas que o acompanhava; estava
sempre a postos, no piquete ou mesmo em carga; tinha a mesma coragem, mas
gestos mais medidos, olhos mais sombrios; quando perguntado sobre o porquê do capitão
ser daquele jeito, dava de ombros e dizia: “cada qual com sua sina”.
Outro
mistério que o acompanhava era a luva branca que usava pendurada no cinturão,
toda vez que cavalgava; era uma luva pequena, enegrecida na palma e nas pontas
dos dedos; tinha-a como talismã ou objeto de presságio; jamais saía para o
combate sem ela; era um luva pequena , que jamais caberia nas mãos dele; muitos
intuíam a razão dele carregar aquele talismã, e porque ele jamais falava nada
do que o levara à frente de batalha...
PATY DE
ALFERES, PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO, JUNHO DE 1860
O tenente
Maurício Castanho era a felicidade em pessoa.
Tudo estava
arrumado para o casamento, que prometia ser o acontecimento da cidade; as duas
famílias, amigas há muito, se compraziam da boda, pois os dois eram ligados desde
crianças e todos já falavam da felicidade que sempre os acompanhou; a carreira
de Mauricio seguia a passos largos e já se considerava um posto de estado-maior
na corte, talvez com o próprio Marechal Polidoro, comandante do exército
imperial; o pai, oficial da Guarda Nacional, mexera amizades e contatos para
que ele estivesse muito perto de alcançar esse objetivo.
Impaciente
em seu uniforme de gala, ele aguardava Amália, ansioso pelo momento que sonhou
por toda a vida; era todo felicidade, enquanto andava de um lado para o outro,
na impaciência de noivo; os amigos e colegas de farda o aquietavam falando da
tradição de atraso das noivas; ele esperava, esperava e esperava...o céu, antes
claro, começava a ribombar; raios e trovões pareciam fazê-lo tremer; os
convidados começavam a se preocupar com o tempo; já se faziam dias que as
tempestades de raios cortavam a serra, deixando capatazes, empregados e
escravos em alerta; duas semanas antes uma tempestade assim quase destruíra o
sitio do major Emiliano, grande amigo do pai de Mauricio.
A espera
começou a preocupar os pais de Amália; ela preferira ficar apenas com Engrácia,
filha de sua ama-de-leite e da mesma idade, para preparar-se e vestir o vestido
de noiva; viria na carruagem do tio Arnaldo, que já tinha sido ajaezada e
engalanada para a ocasião; Januário, capataz e homem de confiança do tio da
noiva, tomou o caminho da fazenda Água Santa, para ver o que acontecia; no meio
do caminho, avistou o horrendo espetáculo da carruagem ainda queimando, atingida em
cheio por um raio; vasculhou ao redor pra ver se achava alguém; quem primeiro viu foi Engrácia, caída num ângulo
estranho, os olhos vidrados no estupor da morte; alguns passos adiante,
encontrou o corpo de Amália; o vestido branco estava esfarrapado, com partes
enegrecidas e chamuscadas; o céu ainda relampejava quando Maurício chegou,
cavalgando igualmente; quis dizer palavra, mas palavra alguma vinha; apenas a
boca aberta no esgar do terror, do desespero do vislumbrar da morte; correu ao
corpo da noiva, segurou os cabelos, beijou-os, tocou sua mão, ainda calçando a
luva branca, enegrecida pelos chamuscos na ponta dos dedos e na palma das mãos;
tirou-a e desnudou a mão ferida, segurando-a e beijando-a antes que a
vista ficasse borrada e ele desmaiasse...
ITAPIRU,
1865
Não era mais
ação de piquetes nem de escaramuças; agora, o grosso da cavalaria e da
artilharia inimigas era despejado na posição deles e teriam que aguentar até
que o reforço chegasse; o único jeito era atacar antes que o inimigo estivesse
pronto; chamou os oficiais de esquadrão, alguns jovens tenentes que não haviam
sido batizados a fogo e veteranos endurecidos; Tibúrcio já havia aprontado as
armas, o sabre e os coldres sobre a mesa onde ele reunira os oficiais; junto
dele, um jovem soldado que se juntara às pressas ao regimento; se reputava um
bom atirador, embora ainda não se acostumasse com as manhas dos animais; chamavam-no “pé-de-poeira”, por
causa de seu passado como infante; o mais endurecido de todos era o sargento
Alvarino, veterano do levante farroupilha, matreiro no combate.
Como de
rigor, ele mandara patrulhas para sondar intenções, mas não conseguia saber
muito de um inimigo esquivo; já pensava em levantar acampamento quando uma das
patrulhas reportou um grosso volume de tropa, cavalaria e infantaria; subindo a
ravina; no contar do piquete, eram dois para cada um; tinha de manter a posição
a qualquer custo; pensou e então teve uma idéia; selecionou o tenente Mourão e o Sargento Alvarino para ficar com dois dos
esquadrões desmontados, Spencers carregadas e prontas pra uso; seguiria com as
tropas montadas para cercar o resto da tropa inimiga, os pegando de surpresa;
depois de dar as ordens, entrou na barraca e pendurou a luva branca no cinturão.
Os
paraguaios viram a coluna desarmada no alto da colina e riram entre si; seria
mais uma maçada, os brasileiros pegos desprevenidos; seguiram adiante, a
cavalaria tomando a dianteira, a infantaria atrás; assim que chegaram no alto,
porém, receberam toda a fuzilaria das armas da tropa do tenente Mourão; o
fogo derrubou na primeira carga cavalos e cavaleiros, os de trás tentando
romper o cerco; a infantaria inda não os alcançara, deixando-os sem apoio; ao
tentarem contornar a frente da coluna, foram surpreendidos por outra torrente
de fogo, desta vez da tropa do sargento Alvarino; a primeira carga foi detida,
mas ainda mais duas se fizeram e se esbaterem no muro de fogo dos cavalarianos
brasileiros desmontados.
A infantaria, finalmente alcançando os cavalarianos,
foi atropelada pelos companheiros montados em fuga; fuzis prontos, não tiveram
tempo de formar e atirar; o capitão Castanho, com o resto da tropa montada,
cortou a infantaria ao meio, os homens lanceando, cortando e atirando sem
piedade; tomada de susto, a infantaria começa a se retirar, mas tem a fuga
cortada pela outra coluna, que tinha ficado na reserva até receber ordem de
atacar; sem tempo de formar quadrados defensivos, simplesmente foi castigada
até quase a exaustão; Castanho, já esgotada
a carga de seus revólveres, usava o sabre sem perdão, atingindo torsos ,
cabeças e braços sem medo; de repente, um dos infantes atira quase sem mirar,
mas a bala ainda tem força para atingir Castanho no pescoço; fazendo-o cair da
montaria; seus homens, vendo-o cair, arremetem com fúria insana, destroçando o
que restava da tropa inimiga, fazendo poucos prisioneiros...
O corpo do
capitão foi recuperado horas depois, quando os feridos foram retirados e se
juntavam os mortos; os do inimigo seriam queimados e jogados em valas comuns;
os dos brasileiros receberiam , na medida do possível, sepulturas condignas; os
oficiais, contudo, ordenaram aos homens que não queimassem os inimigos,, apenas
os enterrassem nas valas; ao encontrarem o corpo de Castanho, porém notaram que
ele parecia sorrir, sereno no meio daquele massacre; “pé de poeira”, tendo
sobrevivido, estava com um prisioneiro paraguaio ao lado, que ajoelhado, jurava
por “La Virgen de La Caridad”, que quando o viu, “o espírito dele se levantara
e seguiu uma jovem de vestido branco que esvoaçava”. O corpo foi levado pra ser
sepultado, com todas as honras; a história foi logo esquecida, menos para o
soldado que, agora, tinha guardado a luva branca no seu uniforme...
Imagens: Google Images
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