Ela abriu a
caixa devagar, absorvendo o odor de antigo que emanava de dentro; observou cada
item com um interesse não tão grande, pensando em como o pai pudera juntar
tanta coisa nesse tempo todo. Percebeu que a caixa era dividida em
compartimentos, sendo que o primeiro continha uma caixa de veludo vermelho,
amarrada com um laço de seda da mesma cor; um retrato com moldura de prata,
onde um jovem de uniforme, o garbo em pessoa, encarava o observador; uma luva
branca de seda, com um chamusco leve, estava colocada no centro do
compartimento.
Retirou
o primeiro compartimento sem mexer nos objetos; queria se ater de tudo que
havia, sem começar a assuntar muito; queria sentir o pai, entender o que ainda
ela não atinava, o que ainda não sentira em espírito; tinha apenas uma tênue noção
do que o pai queria dizer, mas ia muito mais por respeito do que por real
interesse; no segundo compartimento estavam um sabre curto, com pontos de
ferrugem; um manto ou colcha, com desenhos que pareciam ser de pessoas, umas de
uniforme, outras não, um tubo fino, de comprimento médio, que parecia ter sido
parte de algo maior; ao lado dele, um
saco com o que pareciam ser botões de uniforme, dado o que ela conseguiu
enxergar na estopa; um clarim, com a
boca torta e com um rasgo , como se fosse feito com algo afiado.
No fundo da
mala, num canto, um envelope pardo grosso, amarrado com barbante, fazia
companhia a uma barretina militar antiga e dragonas douradas; perto delas outro
envelope, mais novo, parecendo ter sido o último item colocado ali; numa
intuição, ela pegou o envelope e o abriu; havia um bilhete, ela de pronto
reconhecendo a caligrafia miúda do pai, inclinada para a esquerda.
“Cara Eliza
Você está de posse não apenas de
um caixa com objetos, mas uma cápsula de memórias, não de feitos ou façanhas,
mas simplesmente de pessoas; essas pessoas falam através destes objetos que
agora tens nas mãos; tudo está no envelope maior; espero que leias com atenção
e percebas a alma que emana de cada coisa aqui; sua mãe, que Deus a tenha,
sempre dizia que era perigoso demais mexer com o que estava morto; que o
passado era o que era, passado, e não devia se mexer; mas algo me levou a saber
dessas pessoas, algo que até hoje não sei explicar; antes de tecer qualquer
juízo, sinta primeiro o que essas pessoas têm a dizer; aí, decida o que fazer...Na caixa menor há outras
coisas que quero que vejas.
Teu pai
Silvano”
Foi até
o quarto, pegou a caixa menor e a abriu; o primeiro item que viu era outro envelope , um pouco menor
que a caixa, que, ao ser aberto, revelou um grupo de fotos antigas; em algumas
delas reconheceu o pai, do mesmo jeito elegante, só que sem a calva que viria
depois com a idade; tinha um sorriso jovial e expansivo; numa delas, reconheceu
Carlos Lacerda, que, ao que o pai falava, o iniciara no jornalismo; em outra,
viu-o na companhia de duas moças, uma das quais reconheceu como sua mãe, num
amplo salão que parecia ser uma sorveteria;
a última, porém, chamou a atenção
por ser a única que tinha data; no canto superior direito, lia-se “Antônio
Ribeira, março de 1955”; mostrava-o ao lado de um homem muito idoso, de barba branca
hirsuta, no que parecia ser algum tipo de hospital ou sanatório; a foto os
mostrava sentados como se conversassem, acompanhados por pessoas que vestiam
jalecos brancos de enfermeiros;
Lembrou-se
então de que o pai mencionara uma vez o nome desse homem na primeira mensagem
que deixara a ela; lembrava-se também de uma senhora com o mesmo sobrenome, beneficiária
no testamento; mas o que será que esse homem teve de tão importante na vida
dele, a ponto de citá-lo com grande deferência? Eram perguntas que ela
precisava responder...
Voltou,
então, para a caixa maior, pegando o envelope que estava junto da barretina;
estava ali havia tempo, pois amarelecera e se fragilizara, mas não o conteúdo;
ele quase se desmanchou ao abrir, revelando um grupo de doze cadernos de notas pautados
Moleskine amarrados com elástico em grupos de quatro; ela desamarrou o primeiro
grupo e abriu um deles; reconheceu a letra do pai, lembrando das anotações
cuidadosas que costumava fazer; nunca deixava de ter sempre alguns, comprados
na papelaria Oriente, prédio de elegante fachada mourisca que ficava a seis
quarteirões de casa; ele dizia que eram “seu cérebro de reserva”, embora
tivesse memória prodigiosa; gostava de anotar as coisas, fazendo registros de
tudo.
Os cadernos
estavam em sequência, com números de papel celofane dourado recortados e
colados nas capas azuis; ela pegou o primeiro nas mãos e começou a ler; começava
a conhecer aquilo que o pai tanto pedira para descobrir; agora, o tempo se
desdobrava, acordava, se revelava; ela se lembrou do que o pai escrevera; “cápsula de memórias, não de feitos ou
façanhas, mas de pessoas”. Ela dava o primeiro passo na direção delas...