Ela chegou
em casa mais tarde que o habitual; a reunião tinha sido bem-sucedida, o projeto
dos lofts aprovado sem nenhuma restrição ou ressalva; ela decidiu comemorar com
a equipe do escritório em um bar próximo, a comemoração se estendendo até mais
tarde; deixou-se levar pelo entusiasmo e sentiu que chegara ao limite; pediu
licença à equipe, tomou um táxi e foi para casa.
Acordou
surpresa por não estar de ressaca; preparada para um dia de mau humor,
sentiu-se estranha por não tontear e nem ter dor de cabeça; depois de tomar
banho, preparou um café da manhã com frutas, iogurte e granola; era obcecada
por manter o peso, o que a fazia ter sessões diárias na academia a duas quadras
de casa e uma dieta rigorosa de fibras e outras tantas coisas não calóricas;
usava a lembrança dela mesma, garota rechonchuda do ginásio, lambuzada de guloseimas,
para se manter na linha.
Levantou-se
da mesa, lavou a louça do desjejum e só então notou a sacola no sofá, com o
envelope e a caixa que Lisandro entregara; sabia que teria de começar a
confrontar a incumbência – e o mistério -
que seu pai legara...
Passou para
o quarto e deixou a sacola na cama, enquanto ligava para saber se tudo já
estava no jeito para a inspeção do prédio; teria de dar a primeira vistoria –
era algo que ela não deixava que ninguém fizesse – e faria os croquis iniciais; era o jeito dela e ninguém ousava propor algo diferente; tinha conseguido
juntar uma equipe de bons profissionais, numa tal sintonia que eles pareciam
antecipá-la.
Por volta
das nove horas ela já estava no local, um velho prédio de salas comerciais
perto da Praça Quinze, com uma fachada de terracota ainda bem preservada e
platibandas de estuque; seus olhos treinados esquadrinharam cada detalhe da
fachada, cada parte que pudesse ser preservada ou então descartada; a equipe
chegou quinze minutos depois; juntos, vasculharam cada canto do prédio, o
primeiro de um projeto experimental que tentava revitalizar o centro da cidade;
procuram em cada canto detalhes que pudessem reforçar , ou não, a viabilidade do
projeto; depois de duas horas de um pente fino rigoroso, deram o “OK”, para
começar.
O sol já se
punha quando voltou pra casa; deixou os sapatos perto da porta, o casaco no
sofá, o resto das roupas na máquina de lavar e entrou no chuveiro; depois, já
de roupão, foi para o quarto, onde os jornais do dia já a esperavam; mas, antes
que a leitura começasse, ela divisou a sacola do outro lado da cama; olhou-a
longamente, sem expressão no rosto; lembrou-se das palavras do pai na carta,
pedindo a ela que continuasse o que ele não conseguira...
Deixou os
jornais na cadeira, tomou a sacola e derramou o conteúdo;
a caixa de pinho e o envelope ficaram lado a lado; ela fitou-os e, como se cruzasse uma
linha, abriu o envelope; dentro, um pequeno bilhete do pai, um cartão de uma
firma guarda-móveis e duas chaves num chaveiro em forma de um pequeno cavalo; o
bilhete simplesmente dizia que ela deveria ligar para o número do cartão e
passar o número de ordem, para que o que estivesse lá fosse despachado; já
passava das seis, mas , mesmo assim , ela resolveu ligar;
- Guarda-móveis Algarve, boa noite; Luís Cláudio falando.
- Boa noite,
Luis Cláudio. Aqui é o cliente da Ordem de Serviço W36789P.
- Pode
confirmar, por favor? Indagou o atendente numa voz robótica, como se fosse uma
gravação.
- Ordem de
Serviço W36789P –repetiu ela, reforçando a entonação de cada letra e número.
- Obrigado,
senhora; sua entrega será feita em até dois dias úteis; prazer em atendê-la.
Ela desligou
o telefone com uma interrogação a mais; o que o pai teria naquele lugar? Ela se
lembrava que, num rompante, ele resolvera doar todos os móveis mais antigos do
apartamento para um abrigo de idosos; separara meticulosamente o que iria doar
e depois guardou algumas coisas; no outro dia, ela pudera ver que tudo já tinha
ido embora, exceto o que ele preservara no recanto favorito.
Os dois dias
passaram como um estalo, ela entregue ao projeto dos lofts, discutindo cada
detalhe com os contratantes; nenhuma ressalva havia sido feita; tudo caminhava
na mais perfeita ordem e nem mesmo o prazo tinha estourado; ao contrário, tinham
uma confortável dianteira, que deixou os contratantes muito felizes; o projeto
era o modelo para outros que viriam e tinha de dar certo; ela deu-se o direito
de um dia de folga; deixou as tarefas de supervisão para a equipe e descansou
por algumas horas.
O som do
interfone interrompeu o descanso; o porteiro avisava que um furgão de entregas
tinha chegado e necessitava de autorização para entregar uma correspondência;
ela concordou e, depois de alguns minutos, dois homens trouxeram uma caixa de
mais ou menos um metro de altura, de madeira escura, de jeito antigo, mas o
cadeado era um cadeado moderno; depois de assinar o recibo de entrega, pediu
que deixassem a caixa no meio da sala; depois que os entregadores saíram, ela
se pôs a examiná-la a partir dos fechos, antigos mais ainda intactos, como se
tivesse sido, desde o começo, muito bem cuidada; tudo estava em completa
disparidade com o cadeado, mais moderno
que o conjunto; era daqueles cadeados de bronze com trava de aço, muito
vendidos em lojas de ferragens;
Então, ela
se lembrou das chaves.
Buscou-as no
quarto; uma delas tinha um formato simples; devia ser a chave da caixa menor,
de fechadura mais rudimentar; a outra, de formato mais elaborado, devia ser a
do cadeado da caixa maior; pegou a chave mais intrincada e experimentou no
cadeado. Ele abriu num estalido seco, liberando a trava da caixa; ela abriu a
tampa devagar, mesmo sem mais nenhum controle da ansiedade; olhou o que continha
e sentiu que as portas do tempo estavam se abrindo; ela descortinaria o
mistério que tanto norteou a vida do pai....
Não vejo a hora de conhecer o conteúdo da caixa. Um abraço, Maria Tereza.
ResponderExcluir