sábado, 8 de dezembro de 2007

UM CONTO INTENSO

LAURINDA E O SABRE

Era uma noite comum naquela fazenda. Apenas se ouvia o barulho dos grilos e mais nada. Os pássaros há muito dormiam, e o som que se notava era apenas o dos grilos e, de vez em quando, o estrilos das corujas, chamadas pelo povo de “rasga-mortalha”, que as beatas, quando as escutavam, faziam o sinal da cruz, de tão agourento que era aquele som.
Mas Manuel Borralho não dormia. Inquieto, se remexia e virava de um lado para outro, a mulher dormindo do outro lado da cama. A vista foi para os quadris da mulher, que eram largos e cheios. Levou a mão no querer de acordá-la, mas se deteve. Sabia a razão daquela inquietude.
Iria resolver logo aquilo. E já.
O caminho até a vila dos empregados era de mais ou menos de dez passos da sede, mas eram dez passos que pareciam dez léguas, tal era a ansiedade de Manuel Borralho. Muitas vezes matutava: “por que não acordava Justina, ora essa”. Ela era mulher dele, se casara bem, era boa esposa, uma mulher como poucas. Mas a vontade dele era outra, e ele sabia bem a causa...
Na vila, numa das casinhas de tijolo cru feitas lado a lado, feito casinhas de boneca, Laurinda cosia uma saia, que se rasgara quando ela fora buscar ovos no galinheiro. Era moça de prendas, a única que havia ficado quando os escravos, depois do 13 de Maio, deixaram a fazenda. Ela foi uma grata surpresa para os homens que chegaram depois, sujeitos altos, brancarões, cabelos e olhos claros, falando uma língua estranha pra ela. Iam ficar no lugar dos negros? Iam no eito trabalhar? Um monte de perguntas zoava em sua cabeça. Mas ela não se deixava levar, resistindo, mesmo em alguns momentos claramente contra a vontade, mas Laurinda tinha seus próprios planos...
Ele chegou sem falar muito,apenas entre sussurros de voz e entrecortes ofegados. Ofegava de vontade. O cheiro de café no bule só lhe aumentava a gana. Entrou abrupto, com ares de domínio.Ainda se considerava dono, mesmo já vinda a Abolição e a italianada de meeiros da fazenda, ainda se via como o pai e o avô, senhor, mesmo, de vida e de morte.Ela estava na porta dos fundos, no coser da saia, a dar o arremate dos últimos pontos. Ia devagar, no compasso de uma canção ensinada pela avó, um costume quando trabalhava.
Ele a tomou nos braços sem aviso, sem trégua. Ofegava sentindo o cheiro da pele fresca, rematada longe de alecrim. O vão da porta parecia, ali, pouco para ele. Queria mais, parecia que a vontade dele se espalhva na casa toda. Arrastou-a devagar, cada parte lhe fazendo ir quedando a roupa. Ela negaceava de leve, isso atiçando-o ainda mais, fazendo-o se despir das últimas reservas de pudor. Ela o despe, revela a luxúria em riste, de um homem agora ensandecido. Ela se deita, as coxas em arco, revelando a mulher cheia de carnes, em ver de quereres. Plena. Fêmea. Ele não é mais senhor de si. Apenas o ardor do macho o guia. Ele sente o cheiro de mulher, cheiro de viço, de cio. Ele a beija, se deleita, o gosto como de banguê, desvario de doce, de aguardente de cabeça, de melaço, de perdição. O lugar se torna pequeno pra tanta vontade.
Os dois, unidos, parecem dançar, quando ele chega ao âmago do prazer, as forças a se esvaírem quando ele jorra dentro dela, cada parte como algo dele a escapar, quase a abandoná-lo, a desertar dele. Sente pela primeira vez o peso do próprio corpo, o torpor de si, o cansaço da saciedade.. Ela ri frouxo. Longe de se ver parada, ela o puxa para si, . Uma. Duas. Três. Ele finalmente se rende. O corpo, antes ágil, pende pesado, sono de animal regalado.Ela se levanta bem devagar, passo pequeno, de seriema no bote. Ele nada ouve, mergulhado no sono do gozo. Ronca forte, onça cevada de caça. Ela pega o sabre do pai há muito morto, corajoso voluntário no Paraguai, e vem, pé ante pé. Os passos , curtos, se achegam. Nos olhos não há a vontade de antes. Os olhos agora têm as chamas do ódio. Ódio frio, vingança. A imagem da mãe,pegada à força no eito, sujeitada, e depois vendida. Ela ,pequena, vendo tudo. O pai, em seu desespero. A fuga. Notícias dele na guerra. Morte. A única coisa que a ela restou foi o sabre, entregue por um companheiro do pai, sempre bem escondido, jamais descoberto. Ela chega perto. O homem ressona, sem de nada se dar conta. O sabre na mão direita, perto, mais perto. Ela o ergue, o segura com as duas mãos, e, com toda a sua força vingativa, dá a estocada. Ele não acorda nem mesmo quando o aço lhe trespassa o coração, atravessando o colchão de crina e fincando no chão. “Se vingue, meu pai”, diz ela, quando tudo termina. Ela toma a trouxa e sai de fininho, os primeiros raios do sol tomando a fazenda. Os italianos despertam, indo trabalhar no cafezal. Ela passa a porteira, tomando o rumo da estrada. Havia cumprido sua, de há muito tempo feita, promessa. Seria a última escrava a passar por aquela porteira, mas ela faria seu senhor pagar, nem que, para isso, tivesse que, como de fato fez, se deitar com ele. Ela ia longe, cantarolando a mesma canção da avó, dessa vez com um jeito diferente. Pela primeira vez na vida, se sentia, enfim , verdadeiramente livre...