segunda-feira, 7 de julho de 2014

CRÔNICAS DA CASA ALTA 8 - UM CONTO



Ele esperava já com uma inquietação sem limites. Faltavam cinco minutos para o filme começar e ele já estava com os ingressos na mão, olhando de um lado para o outro da rua. Será que ela não viria? Já fora muito vencer a timidez para fazer a ela o convite , depois de um tempo de ensaios na frente do espelho; já fora igual desafio vencer as troças da irmã mais nova, vendo-o indeciso entre qual camisa ou qual gravata usar, o terno ou o sapato certo. Esperava, e esperava...
Lembrou-se então de quando a conhecera, quando foi comprar uma gravata nova na loja A Exposição, para usar no casamento de um amigo;  tinha aproveitado a hora do almoço, pois estava atulhado de serviço no Ministério da Viação, no qual recentemente tomara posse como servidor; o amigo era um dos mais antigos, o único dos de infância com quem ainda mantinha contato. Os outros ou tinham saído da cidade ou tinham suas vidas tão ocupadas que não havia tempo para um contato mais próximo.
Então, ela. 
Ele prestou primeiro atenção nos cabelos castanho-escuros arrumados num coque elegante, que emolduravam um rosto levemente ovalado, de olhos verdes vivos e um sorriso leve, que o fez corar. Ela igualmente corou, baixando o rosto, como que não querendo retribuir o olhar; o tempo pareceu parar entre os dois...
Compra feita, voltou para o trabalho, mas saiu da loja não mais o mesmo...e nem ela...
Depois foram as passadas pela loja sob as mais variadas desculpas, os "encontros casuais", no fim do expediente, até que trocaram as primeiras palavras, a conversa fluindo dia após dia, até que , reunindo toda a coragem que tinha, a convidou para ir ao cinema, na sessão soirée do Éden; antevendo a negativa, surpreendeu-se com a resposta sorridente.
- Por que não? Não tenho nada programado para essse fim de semana.
Não era a resposta que ele esperava. Sentiu-se um tanto constrangido, achando que ela só aceitara porque nada melhor havia pra fazer. Mal ele sabia que a resposta tinha sido porque não havia outra melhor; ela ansiava por isso, mas não queria mostrar-se "oferecida", lembrando-se dos conselhos da tia Arminda, que dizia que "moça de familia espera o homem fazer o convite e mesmo assim, demora pra dizer sim"...
A exasperação terminou quando ele a divisou virando a esquina, o tailleur azul delineando as formas, num passo calmo, não parecendo estar atrasada. A ansiedade nele desapareceu quando ela chegou; ele a beijou no rosto, avisando que faltava pouco para o filme começar. Tomando-a pela mão, acompanharam o lanterninha até os lugares do andar superior; o filme já estava nos créditos...
Assistiram a fita sem piscar, as cenas da história de amor tocando-os e fazendo se darem as mãos, ficando assim até que ele, numa inciativa, beijou-a ternamente nos lábios...Ela não resistiu; deixou-se levar, o beijo ficando mais intenso, até que se sentiram como se nada mais houvesse...
Saíram enlevados da sessão, de braços dados,  num andar sem pressa; já um pouco longe do cinema, ela percebeu que faltava o brinco da orelha esquerda; era um brinco de pérola que fora presente da Tia Arminda quando ela completara quinze anos, do qual tinha muita estima, Eles voltaram e encontraram o cinema quase fechando,mas ainda conseguiram falar com o lanterninha, pedindo que desse uma vasculhada nos bancos pra ver se não o encontrava. Depois de procurar por todas as partes, mesmo na platéia baixa do cinema, não encontrou o brinco. "Talvez tenham encontrado e levado", finalizou, sentido.
Ela sabia que Tia Arminda ia ficar chateada, mas, o que se há de fazer? Ele a tomou nos braços e ficaram por um tempo em silêncio, contemplando a luz dos postes da Rua Grande. Ela virou-se para ele e o fitou , ainda assim, contente.
- Perdi um brinco, mas encontrei um tesouro em você - disse, com um sorriso que o encantou.
- Então ambos encontramos. - ele respondeu ao sorriso com um beijo.
A vida foi seguindo, os dois cada vez mais juntos. Veio o casamento, a progressão da carreira dele, a aprovação dela como professora primária. Os filhos crescendo,  cada qual seguindo suas vidas; mesmo assim, o cinema jamais deixou de fazer parte, em todas as soirées de fim de semana, ou mesmo nas tardes, sempre um algo mais a ver, a sentir. Então vieram os netos, alegrando ainda mais um lar sempre feliz, até que a doença a levou, tão de repente que ele não teve nem tempo de chorar, se despedir...Chorou depois, na falta dela, a mão segurando o brinco, do qual jamais encontrara o outro par...Agora era a solidão, apenas quebrada pelos netos, que o alegravam e faziam-no ainda viver...
Os olhos marejaram com o que ele via. O simbolo de todo um passado, de toda uma história de vida, dele e dela, agora virava um amontoado de poeira e entulho. Era o fim de um tempo, O dono morrera e os herdeiros venderam o cinema a uma cadeia de lojas; a fachada fora preservada, mas todo o interior estava sendo demolido. Caixilhos das janelas, restos de vitrais, ventiladores estropiados jaziam em montes no interior do cinema, outros tantos objetos em caçambas de entulho. Ele entrou,  o lenço no nariz pra evitar o excesso de poeira; reconhecia cada parte daqueles escombros como se fosse alguém morto, ao qual se negara uma sepultura digna.
De repente, junto a um monte de bancos quebrados , pareceu ver algo que brlhava; afastou os pedaços de uma fileira deles, retirando os pedaços de madeira e reboco espalhados no chão. Quando conseguiu remover tudo, ele não conseguia crer no que seus olhos viam: diante dele, depois de tanto tempo, o brinco perdido!!! Nunca o conseguiriam achar , pois, ao cair, ele encaixara no ressalto de um dos bancos, ficando escondido todo esse tempo. Apenas quando os bacos foram removidos ele tinha se soltado, ficando ali sujo de poeira; ele limpou-o com o lenço, beijou-o e guardou-o no bolso. Um encarregado que passava viu-o e perguntou o que fazia ali.
- Só levando uma lembrança do velho cinema, meu filho - disse, com um pedaço do ladrilho na mão - Vivi momentos muito felizes aqui.
O encarregado olhou para ele com um ar de estranheza, como se o achasse louco; saiu dali com pressa, com ar compngido. Tomou um táxi para o Cemitério do Gavião e, lá chegando, dirigiu-se à sepultura dela, trocando as flores e depositando o par de brincos junto com o buquê. Olhou para a foto dela na lápide, o mesmo sorriso que o encantara há tantos anos. Apenas a fitou e disse, com ar de alívio, como se tirasse o peso dos anos das costas; "eu encontrei, meu amor, eu encontrei". Uma leve brisa soprou e só então ele reparou que já era fim de tarde, o sol se pondo num vermelho intenso. Tomou outro táxi e voltou pra casa, pela primeira vez, sem tristeza no semblante, sem pesar. Ao dormir, sonhou que era o mesmo rapaz de antes, a esperá-la na porta do cinema; ao vê-la chegar, abraçou-a, beijou-a e, sem que ela pudesse dizer palavra, pôs nas mãos dela o par de brincos tão amados...