sábado, 26 de julho de 2014

RESENHAS E AUTORES - VISÃO DE UM MARANHENSE SOBRE A ARTE DO BRASIL 2

A poeira da Copa baixou e agora buscamos outro rumo; deixamos a expectativa pra Russia 2018; vamos trocar a pinga pela vodka, tirar os casacos de dentro do guarda roupa e vamos embora..mas isso é pra 2018...
Por ora, vamos continuar nossa viagem textual por esse Brasil tão artista e tão especialmente vibrante, buscando seus sensíveis videntes e visionários, ou mesmo simples cronistas desse nosso tão diverso cotidiano...
Ainda neste post falemos um pouco mais de futebol, apenas pra fecharmos com um autor  que era mais que um simples comentarista; assim como um outro autor que mencionarei aqui, mas músico ao invés de escritor, este passou sua paixão para o que seria simplesmente a observação fria do esporte e o apontar de virtudes e defeitos; ele derramou sua prosa com uma habilidade sem igual, fazendo do espetáculo mais que isso; ele o fez literatura...Ninguém menos que Nelson Rodrigues...


Não falarei aqui do Nelson polêmico, do Suzana Flag das histórias que desnudam hipocrisias e pecados que os protagonistas delas sempre tentam esconder, mas que, mais cedo ou mais tarde, se revelam;  não vou falar aqui do Nelson achincalhado, vilipendiado como o "Tarado", o "destruidor da família", ou coisa que o valha...Ruy Castro, no seu excelente "NELSON RODRIGUES - O ANJO PORNOGRÁFICO", já discorre muitíssimo bem sobre o tema;
Falarei de outro Nelson, o do apaixonado por futebol, que trouxe uma verve nova ao texto esportivo, dando-lhe dimensão, intensidade e , acima de tudo, alma; tudo o que vemos dos modernos cronistas esportivos, desde osmarianas entonações, passando por grandiloquências lucianodovallescas até "galvãonices" nem sempre benquistas, devemos a esse grande escritor brasileiro chamado Nelson Rodrigues...Torcedor apaixonado do Fluminense, era de frequentar quase religiosamente os jogos, embora seus problemas frequentes de visão não o deixassem distinguir um time do outro, mas nem isso diminuía sua paixão e sua habilidade - marcou sua prosa futebolística cunhando expressões do tipo "complexo de vira-lata", frase que foi o símbolo da derrota brasileira em 1950 (confesso que sonhei com uma final Brasil x Uruguai nessa última copa, mas, seteaumescamente falando, melhor não lembrar). Junto com seu irmão Mário Filho, consumado editor - devemos a ele o vetusto porém dinâmico "JORNAL DOS SPORTS", ainda no seu clássico papel róseo - agitou a cena esportiva da época; mas deixemos que ele mesmo dê o seu recado, no livro (link abaixo) "A Pátria de Chuteiras", em outra de suas expressões lapidares...Mesmo sendo um tricolor apaixonado, sabia reconhecer a igual paixão de outros torcedores, como estas palavras sobre os rubro-negros, tradicionais rivais dos tricolores...






http://www.ediouro.com.br/lancamentosdenelsonrodrigues/livros/ImagePatriaDeChuteiras%20em%20Baixa.pdf



segunda-feira, 7 de julho de 2014

CRÔNICAS DA CASA ALTA 8 - UM CONTO



Ele esperava já com uma inquietação sem limites. Faltavam cinco minutos para o filme começar e ele já estava com os ingressos na mão, olhando de um lado para o outro da rua. Será que ela não viria? Já fora muito vencer a timidez para fazer a ela o convite , depois de um tempo de ensaios na frente do espelho; já fora igual desafio vencer as troças da irmã mais nova, vendo-o indeciso entre qual camisa ou qual gravata usar, o terno ou o sapato certo. Esperava, e esperava...
Lembrou-se então de quando a conhecera, quando foi comprar uma gravata nova na loja A Exposição, para usar no casamento de um amigo;  tinha aproveitado a hora do almoço, pois estava atulhado de serviço no Ministério da Viação, no qual recentemente tomara posse como servidor; o amigo era um dos mais antigos, o único dos de infância com quem ainda mantinha contato. Os outros ou tinham saído da cidade ou tinham suas vidas tão ocupadas que não havia tempo para um contato mais próximo.
Então, ela. 
Ele prestou primeiro atenção nos cabelos castanho-escuros arrumados num coque elegante, que emolduravam um rosto levemente ovalado, de olhos verdes vivos e um sorriso leve, que o fez corar. Ela igualmente corou, baixando o rosto, como que não querendo retribuir o olhar; o tempo pareceu parar entre os dois...
Compra feita, voltou para o trabalho, mas saiu da loja não mais o mesmo...e nem ela...
Depois foram as passadas pela loja sob as mais variadas desculpas, os "encontros casuais", no fim do expediente, até que trocaram as primeiras palavras, a conversa fluindo dia após dia, até que , reunindo toda a coragem que tinha, a convidou para ir ao cinema, na sessão soirée do Éden; antevendo a negativa, surpreendeu-se com a resposta sorridente.
- Por que não? Não tenho nada programado para essse fim de semana.
Não era a resposta que ele esperava. Sentiu-se um tanto constrangido, achando que ela só aceitara porque nada melhor havia pra fazer. Mal ele sabia que a resposta tinha sido porque não havia outra melhor; ela ansiava por isso, mas não queria mostrar-se "oferecida", lembrando-se dos conselhos da tia Arminda, que dizia que "moça de familia espera o homem fazer o convite e mesmo assim, demora pra dizer sim"...
A exasperação terminou quando ele a divisou virando a esquina, o tailleur azul delineando as formas, num passo calmo, não parecendo estar atrasada. A ansiedade nele desapareceu quando ela chegou; ele a beijou no rosto, avisando que faltava pouco para o filme começar. Tomando-a pela mão, acompanharam o lanterninha até os lugares do andar superior; o filme já estava nos créditos...
Assistiram a fita sem piscar, as cenas da história de amor tocando-os e fazendo se darem as mãos, ficando assim até que ele, numa inciativa, beijou-a ternamente nos lábios...Ela não resistiu; deixou-se levar, o beijo ficando mais intenso, até que se sentiram como se nada mais houvesse...
Saíram enlevados da sessão, de braços dados,  num andar sem pressa; já um pouco longe do cinema, ela percebeu que faltava o brinco da orelha esquerda; era um brinco de pérola que fora presente da Tia Arminda quando ela completara quinze anos, do qual tinha muita estima, Eles voltaram e encontraram o cinema quase fechando,mas ainda conseguiram falar com o lanterninha, pedindo que desse uma vasculhada nos bancos pra ver se não o encontrava. Depois de procurar por todas as partes, mesmo na platéia baixa do cinema, não encontrou o brinco. "Talvez tenham encontrado e levado", finalizou, sentido.
Ela sabia que Tia Arminda ia ficar chateada, mas, o que se há de fazer? Ele a tomou nos braços e ficaram por um tempo em silêncio, contemplando a luz dos postes da Rua Grande. Ela virou-se para ele e o fitou , ainda assim, contente.
- Perdi um brinco, mas encontrei um tesouro em você - disse, com um sorriso que o encantou.
- Então ambos encontramos. - ele respondeu ao sorriso com um beijo.
A vida foi seguindo, os dois cada vez mais juntos. Veio o casamento, a progressão da carreira dele, a aprovação dela como professora primária. Os filhos crescendo,  cada qual seguindo suas vidas; mesmo assim, o cinema jamais deixou de fazer parte, em todas as soirées de fim de semana, ou mesmo nas tardes, sempre um algo mais a ver, a sentir. Então vieram os netos, alegrando ainda mais um lar sempre feliz, até que a doença a levou, tão de repente que ele não teve nem tempo de chorar, se despedir...Chorou depois, na falta dela, a mão segurando o brinco, do qual jamais encontrara o outro par...Agora era a solidão, apenas quebrada pelos netos, que o alegravam e faziam-no ainda viver...
Os olhos marejaram com o que ele via. O simbolo de todo um passado, de toda uma história de vida, dele e dela, agora virava um amontoado de poeira e entulho. Era o fim de um tempo, O dono morrera e os herdeiros venderam o cinema a uma cadeia de lojas; a fachada fora preservada, mas todo o interior estava sendo demolido. Caixilhos das janelas, restos de vitrais, ventiladores estropiados jaziam em montes no interior do cinema, outros tantos objetos em caçambas de entulho. Ele entrou,  o lenço no nariz pra evitar o excesso de poeira; reconhecia cada parte daqueles escombros como se fosse alguém morto, ao qual se negara uma sepultura digna.
De repente, junto a um monte de bancos quebrados , pareceu ver algo que brlhava; afastou os pedaços de uma fileira deles, retirando os pedaços de madeira e reboco espalhados no chão. Quando conseguiu remover tudo, ele não conseguia crer no que seus olhos viam: diante dele, depois de tanto tempo, o brinco perdido!!! Nunca o conseguiriam achar , pois, ao cair, ele encaixara no ressalto de um dos bancos, ficando escondido todo esse tempo. Apenas quando os bacos foram removidos ele tinha se soltado, ficando ali sujo de poeira; ele limpou-o com o lenço, beijou-o e guardou-o no bolso. Um encarregado que passava viu-o e perguntou o que fazia ali.
- Só levando uma lembrança do velho cinema, meu filho - disse, com um pedaço do ladrilho na mão - Vivi momentos muito felizes aqui.
O encarregado olhou para ele com um ar de estranheza, como se o achasse louco; saiu dali com pressa, com ar compngido. Tomou um táxi para o Cemitério do Gavião e, lá chegando, dirigiu-se à sepultura dela, trocando as flores e depositando o par de brincos junto com o buquê. Olhou para a foto dela na lápide, o mesmo sorriso que o encantara há tantos anos. Apenas a fitou e disse, com ar de alívio, como se tirasse o peso dos anos das costas; "eu encontrei, meu amor, eu encontrei". Uma leve brisa soprou e só então ele reparou que já era fim de tarde, o sol se pondo num vermelho intenso. Tomou outro táxi e voltou pra casa, pela primeira vez, sem tristeza no semblante, sem pesar. Ao dormir, sonhou que era o mesmo rapaz de antes, a esperá-la na porta do cinema; ao vê-la chegar, abraçou-a, beijou-a e, sem que ela pudesse dizer palavra, pôs nas mãos dela o par de brincos tão amados...

sexta-feira, 4 de julho de 2014

RESENHAS E AUTORES - VISÃO DE UM MARANHENSE SOBRE A ARTE DO BRASIL



Quero, em primeiríssimo momento, brindar à sua presença como leitor e apresentar uma série especial de "resenhas", não de livros, mas de artistas (e seus interiores); não a leitura de linhas - embora eu apresente alguns excertos -  mas uma viagem ao coração e à alma destes, sejam escritores, pintores ou de outras estirpes da arte; coração e alma, as verdadeiras fontes da genialidade...
Comecemos então...
Vendo os jogos do Brasil na Copa e o futebol sendo a moda do momento, nada melhor do que começar essa resenha sobre um autor pouco lembrado em nosso tempo que, no limiar do século passado, já antevia o futebol como um esporte que cedo conquistaria terreno nos corações do povo, podendo falar disso mesmo em razões de sangue, porque dois dos seus filhos foram intimamente ligados com o futebol, fazendo-o experimentar "a dor e a delícia" , como tão bem o disse Caetano...


Falemos então do tão injustamente esquecido Henrique Maximiano Coelho Netto. O "Príncipe dos Prosadores Brasileiros" era um grande entusiasta do futebol quando o esporte ainda nem era chamado assim (era chamado "ludopédio", um nome pedante demais que nem os ingleses falavam), sentindo o potencial desse esporte de agitar as massas. Seus filhos, Emmanuel ("Mano") e João ("Preguinho"), se deram de corpo e alma a ele, a ponto de um deles, Emmanuel, morrer numa partida, quando uma bolada no abdomen lhe rompe o peritônio; mesmo na dor, a pena corre pra fazer nascer MANO, um livro de crônicas da vida desse filho tão querido, fluminense de coração, jogador de rara habilidade. O livro é mais; é a pena elegante de Coelho Netto a descrever a dor da morte e da saudade;

"...A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era contínuo. Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:
“Se eu dormisse uma hora!”
O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam - tantas noites despertos! - só não lhe chegava, a ele.
Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.
De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.
Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.
“Se eu dormisse uma hora...!” arquejava, cansado, o pobrezinho.
O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.
Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras tristes:
“Se eu dormisse uma hora...!”
E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!..."

Seu outro filho, João Coelho Netto, igualmente atleta magistral, teve a honra de ser o primeiro brasileiro a fazer um gol na história das copas, na Copa de 1930. Preguinho, como era chamado, mesmo depois da profissionalização do esporte recusou-se a receber qualquer incentivo financeiro por parte do clube, dizendo que jogava "por amor ao Fluminense e era o que o fazia ir em frente com o esporte". Priscos e tão saudosos tempos...
Gol de Preguinho (à direita) contra a Iugoslávia na Copa de 1930 (Fonte: Wikipedia)

Injustamente tornado em saco de pancadas dos modernistas, Coelho Netto foi em muitos aspectos mais modernista que estes, que encapsularam sua Semana de Arte Moderna sem sequer se identificarem com os ventos que agitavam o país nesse tempo. Muito mais antenado e centrado que os últimos, foi em defesa do movimento tenentista, que buscava  reformas políticas profundas no país, especialmente contra o sistema viciado da "política do Café com Leite", escrevendo mesmo um ensaio em defesa dos 18 do Forte, episódio que os "Modernistas de 22" passaram em brancas nuvens. O ensaísta e crítico Franklin de Oliveira , no seu texto "A Semana de Arte Moderna na Contramão da História" o redime.  Um autor que precisa ser mais e mais conhecido, neste Brasil de memória tão curta sobre sua própria glória...

Aguardem para a próxima: Nelson Rodrigues e a verve futebolística...