segunda-feira, 5 de maio de 2014

UMA ESTRANHA CONTRADIÇÃO

Nesses últimos tempos de ecoapologia, onde as verdades inconvenientes surgem, pra alerta de uns e desconforto de outros, a palavra “biodiversidade” tem sido mais que repetida: foi praticamente cunhada no nosso vocabulário para, acima de qualquer outra, justificar toda ação que reverta em qualquer tipo de impacto, para o bem ou para o mal, em nosso meio ambiente. Surgem a toda hora os chamados “paladinos da biodiversidade”, que mesmo a vida sacrificam pela manutenção de nosso amado ecossistema… Mas, em minhas andanças, observações e leituras tenho visto uma, essa sim, inconveniente contradição: os mesmos seres humanos tão preocupados em salvar o ecossistema querem, por força de influência, marketing ou mesmo o odiado bullying, reduzir a raça humana à uma tipologia monocórdica e “igual”, onde a consistência é trocada por uma “aparência” desconsistente, superficial e mesmo agressivamente cruel com quem ousa ser diferente. Passamos a ter vergonha da diversidade humana, raiva do que não é igual; viramos narcisos frustrados que, ao não acharmos espelhos nos quais possamos nos mirar, acabamos por querer destruir o que não nos faça reflexo; ou seja, viramos perseguidores de um ideal monocromático desestimulante e sem sentindo. O universo em que vivemos maldosamente prega uma imagem de respeito às diferenças, mas o que vemos é, na verdade, uma cruel agressão contra tudo o que transgrida o “ser ideal”, seja por causa de tipo físico, orientação sexual, opinião ou mesmo simplesmente o fato de existir sem traumas ou sequer complexos; nos vingamos de nossa infelicidade perseguindo quem é feliz; nos preocupamos – que me desculpem os ecologistas se de alguma forma eu os atinjo – em demasia com o “meio ambiente” e seus valores que nos esquecemos de cultivar a essência dos valores humanos. Daí nascem o preconceito, a omissão ante os problemas sociais, o completo desprezo e a desvalorização da vida humana. A vida humana tem menos valor, se pensarmos bem, que a de um mico-leão dourado ou mesmo quaisquer outros animais ameaçados de extinção; na verdade, a grande extinção que já se processa não é a de nenhuma dessas espécies, mas a da espécie humana enquanto tal; nos tornamos cada vez mais autômatos, escravos de valores que, longe de nos fazer mais humanos, nos maquinizam – e escravizam – cada vez mais. Ao exercitar a memória, me lembrei de uma campanha de certa entidade assistencial que, para despertar a consciência das pessoas para o descaso das crianças abandonadas, sem nenhuma perspectiva de progresso e de futuro, identificou cada uma delas com uma espécie em extinção; encarando o olhar carente dessas crianças, nos deparamos no final do anúncio com a frase muito apropriada, que me marcou muito desde então: "GENTE TAMBÉM É BICHO; PRESERVE"

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crônicas da Casa Alta 7 - Tempos de Aprendizado

Falei de tempos, de gostos, de sons, eu sempre atento a registrar tudo, memórias que são mais que isso: são o revelar de uma alma que sempre foi curiosa, inquieta e intensa em todas as suas coisas, que gostava de buscar tudo em todas as coisas que lhe caíam nas mãos. Era meu começo de aprendizado...Falemos então, dessas memórias... Minha mãe, sendo professora, alfabetizou-me em casa; ela viu o meu interesse pelos livros e logo passou a me introduzir às cartilhas e abecedários, com especial atenção para a caligrafia; minha mãe sempre teve - e ainda tem - uma caligrafia esmerada, aprendida com um amanuense que era amigo da família; assim ela passou igualmente esse conhecimento a mim, de modo que muita gente acha a minha maneira de escrever um tanto rebuscada, dizem alguns, mas tudo bem... Meu primeiro livro foi um livro de Julio Verne, chamado "Miguel Strogoff, o Correio do Czar", que falava das aventuras de um correio especial a serviço do czar, que recebe uma missão especial para tentar deter a rebelião que ameaçava destronar o monarca russo; li-o com tanta avidez - até demais para um menino de quatro anos - que eu pegava a lanterna e lia o livro debaixo da coberta da cama pra não acordar ninguém com a luminosidade. A paixão pela leitura - e igualmente por Julio Verne - não parou mais... Mas era chegado o tempo de enfrentar a prova de seleção para as escolas, e minha mãe optou pelo Marista, escola muito tradicional na cidade, famosa por ser a que mais tinha alunos bem colocados em faculdades e universidades Brasil afora - na minha cidade só havia a Universidade Federal - UFMA e a estadual - UEMA. Feita a escolha, no dia da prova de seleção fui, compenetrado, pra sala de testes, recebi a folha mimeografada com as questões - a prova ainda estava cheirando a álcool - e me entreguei ao teste. Somente dois dias depois é que minha mãe recebeu a notícia de que eu tinha sido aprovado e, pelas minhas notas - fui o segundo melhor colocado - tinha ganho o direito à bolsa. Começava aí minha história com o Colégio Marista
Meu primeiro dia foi de susto - eu era o menor da minha turma - mas essa impressão foi logo desfeita pelas primeiras amizades que fiz - Cláudio e Luiza, dois gêmeos que foram os meus primeiros amigos; depois os outros foram pouco a pouco se aproximando: César, o maior da turma, que era uma pessoa de coração de ouro; Antonio Pecegueiro, que já desde esse tempo era uma pessoa observadora e cheia de ideias para o futuro; Rogério e Lenka, dois irmãos que eram muitíssimo inteligentes e que se tornaram meus grandes companheiros de conversa. Assim se passaram os meus primeiros dias... Um lugar logo me tomou de assalto: a biblioteca da escola, uma das mais bem equipadas da cidade, rivalizando mesmo com a Biblioteca Pública do Estado, nela passava as minhas horas livres e alguns recreios, mas não pensem que eu era somente rato de biblioteca: sempre tempo tinha para as brincadeiras, embora o sempre atento irmão Jorge procurava impor um certo limite. Tenho ainda fortes lembranças dele, sempre andando pelos corredores, pra ver se os alunos se portavam, mesmo na saída para o recreio... Outra lembrança forte era a da cantina, onde seu Elias, um simpático libanês de sobrancelhas de taturana e espírito bonachão, tentava organizar a fila, ajudado na maior parte das vezes pela esposa, dona Vilma e pela filha Jacqueline , que idem estudava lá. Em todo o meu tempo de escola, jamais os vi sequer ter uma discussão; era uma família unida As professoras eram todas muito dedicadas e diligentes, mas três foram marcantes: Profa. Paula, minha primeira professora; Profa. Margarida, que ajudou , acima de tudo, a aprimorar meu interesse pela leitura e me fez ficar mais encantado ainda pelo francês, que eu aprendera na infância; e, finalmente, A Profa. Isabel, de Ed. Musical, que me abriu as portas de um novo e maravilhoso mundo, o da música erudita - eu já conhecida o jazz por causa de meu avô - e simplesmente me embeveceu os sonhos... A vida escolar me abriu os horizontes e me deu mais confiança pra muitas coisas, especialmente para reparar melhor o mundo que me cercava, a ponto de arriscar muitas coisas novas; um dia, minha mãe demorou muito a me buscar por causa de um problema no escritório,e, quando me dei conta de que passava do horário, assumi o risco de voltar pra casa sozinho; falei isso para a inspetora com tanta convicção que ela me deixou ir; quando eu cheguei em casa sem minha mãe, Maria do Carmo e minha avó tiveram um susto tal que ainda hoje lembro da expressão delas, embasbacadas com o meu feito; eu havia decorado todo o caminho da escola pra casa...

Crônicas da Casa Alta 6

Incrível como basta uma pequena memória para desencadear o caudal de recordações e episódios tão adormecidos em sua mente, sem sequer um aviso ou mesmo o menor laivo de pressentimento; eles simplesmente vêm, como uma pequena torrente no inicio, mas depois um pujante e poderoso afluente de lembranças... Eu falava antes dos paladares, dos gostos, dos sabores, que simplesmente se aderem aos nossos pensamentos como marcas indeléveis; agora, porem, falarei dos sons, dos barulhos, que, longe de ser incômodo que muitos adoram alardear, eram, na minha mente e no meu coração de criança, linguagens que eu procurava traduzir, para compreender o mundo ao me redor... O dia começava com a sineta do leiteiro, que batia de porta em porta pra vender o seu leite fresquinho; eu, que acordava primeiro, era que o via se aproximar no começo da rua e dava já o aviso pra minha avó que me dava o dinheiro pra pagá-lo e levar os vasilhames vazios, que eram trocados pro vasilhames cheios de leite fresquinho, que era fervido e servido no cafe da manhã; depois eram os sons dos pregoeiros que passavam vendendo as mais variadas coisas, desde carvão - que minha avó comprava para preparar a torta de camarão, concorridíssimo prato de almoço - até objetos feitos com latas de óleo, que iam desde lamparinas até plataformas de cozinhar arroz - que se colocavam no bico do fogão pra retardar o cozimento e evitar que o arroz queimasse; o som que eu mais amava, porém, era o do sorveteiro que vendia ou sorvete de coco ou o misto com bacuri, que eu amava de montão - olha aí o paladar entrando de novo na história...Daí os sons que vinham eram os da algazarra na escola, até por volta das cinco da tarde, quando eu voltava pra casa, de mãos dadas ou com minha mãe ou com Maria do Carmo; daí, então, se seguiam os do burburinho das conversas de minha mãe, minhas tias e minha avó e meu avô; então, já era hora de ir pra cama, e começar mais um dia...

Crônicas da Casa Alta 5

Caros Já que falamos de lembranças e sentidos e ainda estamos no paladar, deixem que eu fale de uma outro sabor, inconfundível e profundamente especial das minhas lembranças: falo da MANTEIGA REAL, que fez parte da minha infância e reforçou o maravilhoso sabor não apenas meu café da manhã, mas tantos outros pratos, doces e salgados, que margearam essa fase de minha vida; lembro da lata de cor peculiar e sabor sui generis, elogiados por todos os que tiveram a oportunidade de provar da iguaria que era e das demais outras que forma preparadas com ela; basta dizer que o bolo de tapioca já citado não era o mesmo sem ela, o pão massa grossa no café da manhã ficava sem alma, o manuê de milho ficava chocho e sem gosto, e mesmo aquele ovo frito ou mesmo o mais simples bife ganhava personalidade e glamour quando preparado com a tão gostosa manteiga Real... Assim era meu universo de sentidos no tocante a sabores..Há muito mais que farei todos os que lerem saber...Devagarzinho as lembranças se abrem, se descortinam, se descerram...Mais e mais as memórias da Casa Alta se fazem vivas... Um Grande Carinho