segunda-feira, 7 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE X


Walter examinou cuidadosamente o conteúdo do baú, as mãos percorrendo cada objeto como se fossem joias; tentava decifrar a mensagem implícita neles, sentindo a energia que parecia emanar de cada um; Eliza, à distância, contemplava-o com um misto de admiração e curiosidade; quando terminou de ver tudo, segurava a foto do pai dela junto com o idoso Antônio Ribeira, na cama da enfermaria do asilo.
- Então é isso – respirou fundo – o seu pai juntou todas essas coisas como uma forma de contar a história das pessoas que viveram isso, mas não conseguiu;
- Sim, foi desse jeito; ele me deixou com essa tarefa nas mãos – respondeu calmamente – até tentei continuar e segui algumas pistas, mas ainda penso que estou indo muito devagar – completou enquanto o abraçava.
- As coisas às vezes são assim, pensamos que podemos estar no caminho certo e de repente nos enganamos; mas sempre é tempo de voltar de onde erramos e fazer tudo certo.

O olhar dele se voltou para os maços de cartas dentro do veludo; todos tinham sido desatados exceto um, ainda com o laço de fita; mas, diferente dos que tinham sido desatados antes, este era atado com um laço de fita preta e as cartas, que nos outros maços estavam sem nenhum tipo de dano salvo os do tempo, estavam em parte rasgadas ou com manchas que pareciam chamuscos; olhando mais de perto viu que não eram chamuscos e, sim, manchas de um tom marrom escuro; em algumas a caligrafia era firme , em outras vacilante; pareciam ser da mesma pessoa , mas em momentos diferentes, como se não tivesse forças pra escrever; Walter desatou o laço, espalhou as cartas pela mesa e começou a ler...

“MONTEVIDÈO, 12 de fevereiro de 1866

Caros Pai e irmã

A urgência me fez escrever uma carta para os dois; os preparativos para a movimentação das tropas urgem, pois não teremos muito tempo até embarcar; aproveito e escrevo estas linhas de inopino, para saberem como as coisas andam e como estou indo.
Meu pai, sei que o senhor questiona minha atitude, mas pensei muito antes de me decidir; me senti no dever cívico de me alistar, pois não fomos nós que agredimos o Paraguai, mas ele nos agrediu; há relatos de muitas atrocidades na província de Mato Grosso e no Rio Grande do Sul; aqui os soldados andam uns nervosos , uns excitados, mas todos muito dispostos para lutar; comissionaram-me como tenente de um batalhão de voluntários, recrutados entre a vizinhança da faculdade de Direito e mesmo alguns segundanistas; muitos chegaram sem nem saber como segurar um rifle; tento da melhor maneira possível fazer com que fiquem treinados e azeitados para a frente de batalha.
Minha irmã, fiquei feliz com o seu noivado com o Lucio Faria; encontrei-o uma vez na Corte, recém comissionado para o Arsenal de Marinha; ele me parece muito entusiasmado, mas, pelo que eu me lembro, não ficaste tão empolgada quando o conheceste; recordo da tua frase que dizia que ele ‘nem tinha te feito arfar’, mas deves tê-lo conhecido melhor para te decidires.
Bom, tenho que interromper a missiva agora, pois sou chamado no posto de comando; espero ter melhor oportunidade para escrever mais longamente; a tropa já se prepara para partir; espero que essa carta encontre os dois em boa paz e que todos estejam bem.

Sem muito para dizer
Pedindo sua bênção, Meu Pai
E todo o carinho para ti, Minha Irmã
Do filho e irmão
Júlio”



Eliza e Walter examinaram com cuidado cada uma das cartas do último maço; algumas, de tão chamuscadas, não puderam ser lidas, pois se desmancharam ao toque; outras, porém, puderam ser manuseadas e finalmente puderam ser abertas; a ansiedade tomava conta dos dois, mas abriram uma de cada vez, para tentar preservar as que ainda podiam ser lidas.

“POSTO AVANÇADO DE CURUPAITI, 11 de outubro de 1867

Cara irmã

Espero que consigas receber esta carta antes de qualquer outra coisa; imagino que sempre deves ir ver se meu nome está na lista de mortos que, penso, devem estar afixando na porta do Jeremias tabelião; se meu nome não está lá, então não deixe de acreditar que eu voltarei;
Cheguei no dia em que aconteceu o desastre; só o que se via eram mortos amontoados e feridos agonizantes; um de meus colegas oficiais sofreu um colapso nervoso e não diz mais coisa com coisa; o resto da tropa está num estado tal que muitos podem nem sequer lutar, preferindo fugir a sequer vislumbrar o inimigo...
Uma novidade: lembra-se do Antônio Ribeira, que tinha levado uma encomenda minha a São Luís? Pois é, eu o encontrei aqui, alistado no regimento de caçadores como capitão; conversamos rapidamente, pois ele já estava engajado em combate com colunas móveis paraguaias perto de Humaitá; ainda aguardo ordens para seguir em frente, mas acredito que logo seguirei com os outros; reze por mim irmã, e diga ao meu pai que entenderei se ele não me responder.




Não sei se conseguirei enviar outra missiva tão logo; o correio aqui é um tanto irregular, mas farei o possível para mandar notícias assim que puder; diga a meu pai que peço a bênção dele.

Pedindo seu amor e suas preces
Seu Amantíssimo irmão
Júlio”

Walter separou outro grupo de cartas do maço; pareciam, dessa vez, desordenadas, como se arrumadas às pressas, num aparente estado de confusão; pegou-as com cuidado, desdobrando cuidadosamente, retomando então a leitura, com Eliza ao lado, atenta a tudo.

“HOSPITAL MILITAR DE CORRIENTES, 04 de novembro de 1867

Cara Irmã

Se lês estas linhas agora, é porque o cabo Terêncio segurou o meu braço para que eu pudesse escrever; desculpe minha letra sem alinhamento, mas é que não tenho muito jeito agora para segurar direito a pena; ainda não me recuperei bem dos ferimentos que recebi, mas posso asseverar que logo estarei longe disso e de pé de novo. O progresso das tropas é lento e difícil, pois não existem mapas precisos da região e somos presas fáceis de emboscadas e escaramuças; o Coronel Pena, comandante do regimento, tombou há dois dias, vitima de um riflero paraguaio; teimou em acender o cachimbo numa avançada à noite e não viveu para dar o primeiro pito; caiu com o fósforo ainda na mão...
Imagino que tenhas tentado escrever, mas não recebi tua carta; o cabo Terêncio diz que os estafetas têm sido atacados por piquetes paraguaios em busca de despachos dos comandos, mas mesmo assim esperarei por ela; sinto falta de notícias tuas e de nosso pai, mas acho que ele ainda não me perdoou por ter me alistado, mas as coisas são assim; apenas o tempo pode fazer algo; não sei ainda quando retornarei à frente de batalha, mas espero sair logo da convalescença; tentarei por qualquer meio te enviar esta, assim que for possível;

Pedindo seu carinho de irmã e suas preces
Seu amoroso irmão que te beija nas faces
Júlio”




Já era tarde quando Eliza e Walter se aperceberam do tempo; arrumaram as cartas em uma mesinha perto do baú e foram à cozinha preparar o jantar; teriam ainda um tempo juntos até que ele fosse embora, pois no dia seguinte o trabalho aguardava; desta vez, ele se encarregou do jantar; ela observava, da mesa da cozinha, o desdobrar de uma refeição preparada calma e apaixonadamente; aproximou-se e o abraçou por trás; os braços dela o enlaçaram e ele respirou fundo, enquanto dava os toques finais no prato...