sábado, 18 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O SUBSTITUTO - PARTE I


Manuel Fogaça estava celebrando.

O filho Jerônimo iria ingressar no curso de direito na famosa Faculdade do Largo de São Francisco e isso o deixava orgulhoso, pois sempre lutara muito pelo futuro dos dois filhos; Leandro, o mais jovem, se preparava para a carreira eclesiástica, sendo sua vocação desperta muito cedo; o irmão mais velho via aquilo como um desperdício, pois sentia a personalidade inteligente e sensível do irmão, mas a vocação dele saltava aos olhos e ele sabia que era o caminho que iria abraçar; aos treze anos, já era postulante no seminário do Caraça, um dos mais prestigiados que existia.



Era uma tarde refrescante, o vento agitando as janelas da casa de morada inteira na Praça Anchieta, no centro de Jacareí; a praça era dominada pela imponente matriz e pelo palacete do Barão de Santa Branca, o rico cafeicultor que dominava a economia e a política locais; A família de Jeronimo tinha relações com a do Barão e eram amigos de longa data; Manuel, juiz de Órfãos e Ausentes da cidade, tinha tido toda a carreira como advogado e depois como magistrado incentivada pelo Barão, que admirava a maneira dedicada como ele conduzia sua judicatura.


Pai e filho fizeram mais um brinde antes de se dirigirem à sala de jantar, onde Lídia, a mãe, preparara um guisado com vinho madeira, cujo aroma guiou os dois até a mesa, onde o irmão mais novo já esperava; o jantar foi servido e a conversa continuou animada, com o pai imaginando os passos do filho na carreira, até chegar a uma magistratura ou mesmo ao cargo de procurador, igualmente respeitado. A mãe observava o levantar de sobrancelhas e o sorriso amplo do marido, enquanto igualmente fitava a face feliz de Jeronimo, que ansiava já estar em São Paulo, começando os estudos e ajeitando a vida. Ficaria tudo mais fácil, pois a estrada de ferro já estava quase concluída, o que reduzia os rigores da viagem.


Jerônimo apenas dormitava quando a mãe entrou, carregando um castiçal na mão; ele conhecia bem aquele gesto, tantas vezes repetido quando queria abrir o coração com a mãe em coisas que sabia que o pai não poderia entender; dessa vez, porém, ele não precisou sinalizar para a mãe, numa linguagem que só eles entendiam; ela tomou a iniciativa de ir até o quarto dele, se aproveitado do sono pesado do marido e do filho mais moço; sentou-se no pé da cama , como sempre costumava fazer , desde os tempos em que ele era criança e Leandro ainda não era nascido
- Boa noite minha mãe, sua bênção
- Deus te abençoe meu filho, e te guie nessa jornada que vais começar – respondeu a mãe, sondando o filho – mas algo te inquieta, me diz o que vem no teu coração
- Apenas o receio de não ser tão devotado quanto meu pai, minha mãe; tenho medo de decepcioná-lo, de não ser o que ele espera.
- Teu pai sabe e confia em ti; se chegaste até onde chegaste não é porque tiveste menos. Tens talento e vais longe. Não precisas ter medo
- Mesmo assim, mãe esse receio não me abandona,
- É apenas o medo de ires a São Paulo que te assoberba. Dorme e isso passa.

Despediu-se do filho com um beijo e mais uma vez deu a ele a bênção; nada disse a ele, mas algo a apertava idem, o coração em presságio constante. Por isso tresnoitara e não dormira, pensando nesse inquietar que soava como aviso.

A primeira visão da capital da província o chocou, mas logo ele se viu na direção da faculdade de direito, o prédio imponente próximo ao Largo da Sé, cujas arcadas já tinham visto passar algumas gerações de estudantes que se não deixaram marca, só o fato de estar lá já os fazia parte de um clube fechado, seleto, de idéias e talentos; sabia que seriam cinco anos de estudo árduo, difícil, mas que o fariam trilhar um caminho que poucos faziam, com portas abertas para várias carreiras à escolha; queria, acima de tudo, orgulhar o pai, que o veria como o próximo juiz da cidade. Pensava no irmão Leandro, que uma semana antes tinha ido para o Caraça, onde só sairia ordenado; viu a mansidão no rosto, o traço resignado da fisionomia, enquanto a carruagem se distanciava; seu acenar de mão já parecia uma benção.


Os dois primeiros anos foram de precioso aprendizado; dominara bem o direito romano, a filosofia e as disciplinas específicas, tornando-se, se não o aluno mais aplicado, pelo menos um dos que não levaria bomba; a maior parte dos aluns não simpatizava com o estilo mais reservado dele; fizera amizade com poucos, um deles Joaquim Madeira, um maranhense de Caxias, que era filho de um comerciante de algodão e representante comercial de firmas inglesas da província; junto com ele, um carioca, Marcílio, de família influente em Valença, sendo o pai, assim como o de Jerônimo, Juiz de Órfãos e Ausentes da comarca.

A calma, porém, foi interrompida por um alarido que tirou os estudantes de suas salas; Joaquim vinha correndo com um jornal, que estampava na primeira página a declaração de guerra do Brasil ao Paraguai, por causa do apresamento do navio Marques de Olinda, juntamente com a prisão do Governador da Província de Mato Grosso; já circulavam rumores das tensões nos altos escalões da Corte; Manduca Medeiros, quartanista, cujo pai era um dos secretários do Barão de Penedo, Ministro dos Negócios Estrangeiros e amigo de infância do Imperador, trazia sempre algum disse-me-disse dos corredores do Paço Imperial, que o pai lhe contava em suas missivas.

Aquilo causou um efeito estranho em Jerônimo; parecia que nada seria como antes; se imaginava no meio daquele torvelinho todo; no meio dos combates, de uniforme, comandando tropas; pareceu a notícia transformá-lo em alguém completamente diferente do que jamais fora. De repente, os jovens se puseram de um frenesi de correria e gritaria, se dirigindo ao posto da Guarnição da Província, para se alistarem; Ele se aprumou na sobrecasaca, mas de repente, lembrou-se...

Teria de falar com o pai.

Não esperou; tomou o trem até Mogi das Cruzes e de lá uma caleça até Jacareí, onde tentava imaginar a reação do pai, e o que ele diria.

Não demorou muito para que soubesse.

- De jeito nenhum!! – Urrou o pai, enquanto esmurrava a mesa de jantar – Nenhum filho meu vai se esvair em sangue em terra estrangeira!!! E sua carreira? Seu curso? Vai largar tudo para correr atrás de bugre numa terra de bugres? Nem pensar! Proíbo-o terminantemente! E se insistires te deserdo! Assunto encerrado!
- Mas pai, é um dever cívico, servir a Pátria...
-Dever cívico uma droga que é!!! Seu dever é com o seu pai! Me obedecer, sem questionar! E, Jerônimo, aprenda uma coisa: Pátria, de verdade, é isso! – disse, apontando para a casa – É a nossa casa, o lugar onde vivemos!!! E não se fala mais nisso!!! Dormes aqui hoje, mas amanhã de manhã voltas pra São Paulo e de volta aos estudos!

O pai virou-se num átimo e, sem dizer palavra, saiu sem olhar para trás.

Só então Jerônimo divisou uma figura feminina, que vinha ao lado de sua mãe; tinha o rosto levemente arredondado, olhos expressivos e cabelos castanhos arrumados em um coque alto; usava um vestido que realçava ombros delicados e elegantes; o sorriso particularmente o encantou; segurava na mão direita um bastidor com um bordado por começar, o braço esquerdo no ombro de D. Lidia; aquela visão ajudou um pouco a desanuviar a raiva depois do encontro com o pai.


- Meu filho, deixe eu apresentar a Luiza, filha do Comendador Andrade, de Vassouras; a família está passando uns dias como hóspede do Barão de Santa Branca; temos um jantar em casa dele hoje; tomei a liberdade de dizer que irias; fiz mal?
- Não, minha mãe, não fez; irei com todos com prazer, só espero que o meu pai esteja melhor mais tarde; a senhora deve ter ouvido tudo. De qualquer forma, muito prazer, Luíza, encantado em conhecê-la. 
- O prazer é todo meu , Jerônimo. Sua mãe já havia começado a me falar de suas muitas qualidades; vejo que ela lhe fez plena justiça

Jerônimo ficou prestando atenção aos olhos dela, na maneira de expressar-se, procurando disfarçar o deslumbramento, mas o rubor do rosto o traíra. A mãe viu, ainda assim, a face ainda contrafeita do filho e procurou aliviar as coisas
- Meu filho, não entenda mal seu pai; ele apenas quer o bem de todos; apenas tenta te proteger de algo que, para ele, pode ser perigoso demais;
- Eu sei de mim, minha mãe, e sei do que sou capaz; é como se eu fugisse do meu dever.
- Ouça seu pai, meu filho, ele sabe o que é melhor –a mãe respondeu num tom manso, mas firme que ele sabia que era o sinal de que ela não prolongaria mais a conversa – vamos tomar um pouco a fresca da tarde, antes de nos prepararmos para o jantar.

Caminharam pela Praça da Matriz, conversando amenidades. Jeronimo encantou-se ainda mais com a voz de Luíza, suave , mas com o toque de firmeza que ele via na mãe; ela comentava das conversas que tinha com a família do Comendador Teixeira Leite, um dos homens mais ricos da região e do pais, e especialmente falou da filha deste, Ana Eufrásia, uma jovem que tinha um intelecto e uma cultura fora do comum, que deixava os pais orgulhosos, mas a mãe de Luíza dizia, pelas costas, “que ela devia esconder um pouco tais talentos, pois os homens não apreciam mulheres que sabem mais do que eles”; ela discordava, mas, não querendo desafiar a mãe, mantinha um silêncio rebelde,
- Com o que então queres ir à guerra; o que esperas encontrar no meio do campo de batalha, senhor causídico? – Perguntou com certa ironia.
- Quero ter a consciência tranquila de que cumpri meu dever cívico, apenas isso, não sei como dizer, mas isso me transformou; é como um caminho sem volta.
- O rataplã dos tambores o hipnotizou como o flautista de Hamelin, então; vai segui-lo até o fim do mundo se preciso for.
- Sei que não vai entender, mas é como se fosse, para mim, uma missão que tenho de cumprir;
- Que seja então – disse ela em tom sério, mas ainda assim suave – vou dar uma coisa a ti, para que te protejas na batalha.
Ela tirou do vestido um pequeno broche, de moldura prateada, onde uma imagem do Menino Jesus de Praga se destacava. Ela, então, prendeu-o na lapela direita dele, para depois segurar-lhe as duas mãos num gesto terno.


- Minha avó me deu esse broche quando nasci; ela disse que quem o usa tem a proteção do Divino Infante em todas as adversidades.
- E tu, como farás sem ele?
- Tenho minha fé; dei-te porque sei que precisarás; não sei por quê, mas sinto que essa guerra te fará uma transformação muito grande. Que o Menino Jesus te proteja e te guarde. Sei que não te conformarás com a decisão de teu pai, que acharás um jeito de fazer a tua vontade. Vamos voltar, que já tarda para nos arrumarmos para o jantar em casa do Barão.

(Continua...)





Créditos das ilustrações - Blog e Livro "Jacareí Tempo e Memória" de Ludmila Saharov