quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XIII


SÃO LUÍS, 1871

O choro acordou o pai.

Abriu os olhos, a vista se habituando lentamente à chama do lampião; virou a cabeça e, de início, não reconheceu a figura ajoelhada ao lado dele; sinalizou para Vicência, que cutucou Júlio de leve; o filho ergueu o rosto e contemplou o pai, sem logo demonstrar reação; ainda tinha na memória a indiferença, a ausência das cartas enquanto esteve na guerra, a discordância pelo fato de ter se alistado.

Tudo isso se dissipou quando o pai, movendo o braço esquerdo – o direito continuava inerte, paralelo ao corpo – buscou o rosto do filho; Júlio inclinou-se mais para perto dele, que tentava reconhecer os traços do filho no rosto que tocava; Vicência aproximou mais o lampião e só nesse momento os olhos de pai e filho se reencontraram; não houve palavras; o velho tentava balbuciar algo, mas Júlio o acalmou; abraçou-o então e os dois choraram; não havia mais naquele momento razão para mágoa ou mesmo ressentimento; as lágrimas corriam dos olhos do pai e do filho, o abraço como se contassem um ao outro a falta que sentiram, a ausência de cartas ou conversas; de repente, ele sentiu que as forças do pai faltavam; o abraço foi afrouxando, até sentir que ele não se sustentava mais; sentiu a respiração esmorecer até que ouviu o último suspiro...pousou-o suavemente na cama e cerrou-lhe os olhos; dentro de si, algo pareceu se quebrar; tonteou e, se rendendo à dor, desfaleceu no chão da alcova; parecia ouvir a voz da irmã...

Os olhos de Amália foram a primeira coisa que viu ao despertar; ela estava a colocar-lhe um pano úmido na testa, para refrescá-lo. Agnes permanecia junto à porta do quarto, em silêncio; ajudara a irmã dele a colocá-lo na cama e agora, depois das circunstâncias da chegada, podia observá-lo melhor;

- Acordou então, meu irmão – disse ela sem ênfase – poderia abraçá-lo por retornar vivo, mas não sei se posso fazer isso agora, principalmente depois do que aconteceu.

- A dor é igualmente minha, irmã;  pensar que ele pode ter se agarrado à vida achando que não ia me ver voltar vivo.

- Ele jamais acreditou quando Lucio disse que podias ter morrido em batalha; que estavas desaparecido; ele sempre acreditou que voltarias.

- Sabe como são as coisas no exército, minha irmã; nem o correio eles conseguiam entregar direito; nem todas as tuas cartas eu recebi; tenho algumas nos meus alforjes, assim como cartas que escrevi e nunca consegui te enviar; mas e o Lucio, como ele está? Pensei que já estivessem casados.

- Depois que ele trouxe notícias suas ao nosso pai, ele teve de cumprir um turno em Buenos Aires como representante do almirante Tamandaré, mas na cidade grassava uma epidemia de cólera e ele morreu em uma semana; tive igualmente minha cota de dor; não posso dizer que eu o amava, mas ele era um homem bom e decente e eu tinha por ele grande afeição.

Procurou não prolongar muito aquela conversa com a irmã; a dor era algo que se ia dissipando lentamente, a seu tempo e jeito; pediu a ela sabão de barbear e uma navalha, pois iria se livrar da barba que deixara crescer durante a guerra; pediu à Vicência que queimasse o dólmã, a capa, os culotes e mesmo as ceroulas, pois nada queria que tivesse as marcas de morte e sangue; preservou apenas a medalha de bravura que recebera, hesitando em se desfazer dela; escanhoou-se devagar, usando a navalha com cuidado, procurando recuperar o hábito há muito abandonado; deixou apenas as suíças, na altura do meio do rosto; não era mais o jovem imberbe de antes; preferiu adotar essa aparência para se distanciar do passado e encarar o futuro com um novo olhar. Levantou-se, tomou um dos ternos que deixara quando se alistou e percebeu que emagrecera a tal ponto que seriam necessários reparos para ajustar as medidas a um molde completamente novo.

Depois de tomar o desjejum, ajeitou-se e tomou um tílburi até o Cemitério dos Passos, passando pelo mercado e comprando flores para colocar na sepultura do pai; dormira um dia e meio derrubado pela dor e pelo cansaço, não conseguindo ser desperto para o enterro do pai; “talvez tenha sido melhor assim”, pensou, enquanto o tílburi sacolejava levemente; chegou no momento em que um cortejo chegava com dois caixões para serem sepultados; reconheceu no meio das pessoas um velho colega de Liceu, Amaro Gonçalves, ar contrito, chapéu na mão e caminhando devagar ao lado dos ataúdes.

- Meus pêsames; oxalá tivéssemos melhor circunstância para nos encontrarmos – disse Júlio, enquanto apertava a mão do amigo.

- Não somos senhores delas, não é mesmo? – respondeu sem muito vigor Amaro – pessoas vêm e vão; uns logo, outros um pouco depois - Hoje estamos enterrando dois amigos nossos que sobreviveram à guerra, apenas pra morrer de doença aqui; ao menos não morreram longe dos seus; não sei o que seria morrer em terra estranha, não ter um enterro cristão.

Júlio então viu, encabeçando o cortejo, dois casais de meia idade, em passo compungido, interrompido por choro e soluços; pensou nos que viu morrer lá no Paraguai, sem terem nem como ser enterrados, apenas deixados pra que os elementos os consumissem.

Desviando do féretro, se dirigiu até a sepultura do pai, no jazigo da família; os zeladores ainda arrumavam as corbelhas que haviam sido deixadas no enterro, organizando-as cuidadosamente ao redor da entrada; girou a chave e entrou devagar, vendo as campas do pai, do avô e do bisavô, com as respectivas datas de nascimento e morte; meditou em silêncio por longos minutos até depositar as flores na campa onde jazia seu pai; no silêncio, parecia sentir a presença dele e lembrou-se de como morrera em seus braços; vira a morte em batalha, tantas vezes que virara fato banal no dia a dia de campanha, mas nada o preparara para a dor da perda do pai, especialmente sem poder ter tido a chance de pedir perdão...

Voltou para casa pelo fim da tarde, ainda imerso em pensamentos; indagava por que tantos morreram e ele sobrevivera, apenas para ver o pai morrer; era algo que o agoniava, que não o deixava em paz, parecia corroer lentamente a alma.

Agnes e Amália estavam 
lendo na sala quando ele chegou; pousou o chapéu de feltro mole no mancebo do vestíbulo e a bengala de castão de prata no suporte abaixo do espelho; só então sentou-se na cadeira de espaldar alto que pertencera ao pai, ainda pensativo; Vicência, pressurosa, serviu a ele um cálice de licor, o qual ele agradeceu polidamente, antes de sorver um leve gole.

Agnes e Amália repararam nele de maneiras diferentes; a irmã via a transformação do semblante dele, antes de uma radiância que contagiava e , agora, parecia ter se perdido; em seu lugar, apenas uma profunda tristeza; Agnes via igualmente essa transformação, mas algo nela fazia com que quisesse ir na direção dele, como que a querer aconchegá-lo; nos olhos opacos e sem vida, o querer de iluminá-los...


(continua...)

domingo, 20 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XII


Eliza e Walter cuidadosamente arrumaram as cartas e as recolocaram no veludo; só depois notaram um outro pacote, amarrado com uma tira de couro macio; desamarraram-no e o conteúdo se revelou um novo amontoado, dessa vez de datas mais recentes, já do século XX; pareciam postais, junto de um grupo de cartões que, retirados, revelaram ser fotos de viagem, em diferentes lugares e situações; outro grupo revelou novas fotos, mas desta vez eram as de um jovem em uniforme militar que Walter reconheceu sendo da I Guerra, com o quepe e a bandoleira diagonal típicas da cavalaria da época; virando-a , pôde ler no verso, “Charlton Manor, Sussex, September 12, 1914, Lieutenant George Charlton Meira Crawford, Royal Yeomanry”. O jovem tinha olhar firme e o peito estufado demonstrava o orgulho com o qual a foto foi tirada. Outra foto o mostrava montado, com todo o equipamento, como que aguardando ordens; a legenda atrás dizia: “Bois de Quevrecháin, October, 22, 1914.


Entreolharam-se de forma cúmplice enquanto arrumavam tudo, deixando o pacote em cima da mesinha pequena ao lado da espreguiçadeira; o dia se revelara uma surpresa, mais uma entre tantas descobertas cada vez que se abria algo relacionado às coisas do pai dela;

Ela tirou um pendrive de uma gaveta e inseriu no aparelho de som; os acordes de “Rhapsody in Blue” de Gershwin preencheram a sala, enquanto os dois sentavam no sofá; recostaram-se um no outro, abraçados em silêncio enquanto a música enchia a sala; lá fora, o burburinho dos carros no trânsito noturno.


No dia seguinte, despediram-se na intensidade que os dois viviam cada vez mais plenamente; ela se surpreendia com a descoberta de sensibilidades que não imaginava possuir; ele se encantava com a maneira que o querer dos dois combinava; amaram-se mais uma vez antes de cada um seguir seu caminho, não sem antes combinar de se encontrarem logo depois do expediente; o olhar dela ansiava que ele ficasse; o olhar dele era a luta entre a vontade e a responsabilidade...

O dia no escritório foi de muito movimento; havia um recado da Secretaria de Obras da Prefeitura, sobre um workshop de Patrimônio com delegados da UNESCO; Eunice passava a agenda do dia enquanto ela revisava documentos sobre projetos propostos, assinalando os que tinham prioridade dos que não valiam nem uma passada de olhos; respirou fundo enquanto pensava nas pessoas que ainda tinham a visão leiga de que “arquitetos podiam fazer milagres”.

Ainda pensava em tudo que acontecera; o leve recordar de tudo arrepiou a espinha; parecia ainda sentir os toques, os beijos, o afago, a explosão e o arrefecer enlaçados; procurou voltar o foco para a agenda; Eunice notou algo diferente nos olhos da chefe, algo rápido, mas que a fez perder o prumo, recobrou-se igualmente e continuaram a organizar os compromissos do dia e da semana; depois de tudo arrumado, saiu para organizar as reuniões do dia e os relatórios de projetos; ao fechar a porta, lembrou-se da expressão nos olhos da chefe, poucos segundos que pareceram , para a jovem, significar muito; era por demais conhecedora das emoções, as vivia intensa e livremente e reconheceu aquele olhar mais que qualquer coisa.

Tinha certeza de que a chefe se apaixonara...

domingo, 13 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XI


PROVÍNCIA DO MARANHÃO, OUTUBRO DE 1871

Eram duas da manhã quando ele virou o Largo da Forca Velha, tomando a rua do Mocambo; salvo por um ou outro transeunte, na maioria negros de ganho(1) ou tigres(2), a rua estava deserta; ajeitou o bornal no ombro e continuou, o passo lento e sem pressa. 



Chegou à Rua das Crioulas, iluminada apenas com a luz mortiça dos lampiões de gás; pensava se iam reconhecê-lo, se ainda lembravam de como ele era; ainda conservava as cartas da irmã, mas não tinha conseguido enviar as suas, pois durante a convalescença no hospital de sangue, não conseguira fazer contato com o correio para que as entregasse.


Vinha com a dor remanescente das feridas já cicatrizadas, mas algumas deixaram marcas mais profundas; recuperara-se a tempo de presenciar as batalhas de Peribebuí e Campo Grande, onde o exército paraguaio deixou de existir como unidade combatente; recorriam no desespero a mulheres, velhos e meninos; vira os cadáveres na rota para Assunção, destroçados por balas de canhão e metralha, rostos e corpos desfigurados pelo horror da guerra.



Avistou a casa da esquina, hesitando um pouco antes de retomar a caminhada; pensou no pai, sem trocar uma carta sequer desde que se alistara; pensava agora que teria sido melhor que não o fizesse; o espirito marcial como que o hipnotizara, sonhando em voltar coberto de glória e reconhecido como herói; de que valera? O que viu foi apenas destruição, morte e sofrimento; sentia-se afortunado em voltar, poder rever a todos e principalmente, a família.


Criou coragem e continuou.

Parou diante da porta de madeira escura, com uma aldrava de bronze se destacando no centro; pensou duas vezes antes de bater, imaginando como iriam recebe-lo; cofiou a barba negra, que crescera na convalescença; embora o ordenança quisesse escanhoá-lo, não quis; queria como que se esconder, mascarar-se depois de toda a aquela carnificina que presenciara; perdera amigos, colegas com quem estudara e com quem partilhara alegrias e conquistas; só restara a casa, diante dele, como que a admoestá-lo por partir para uma guerra que, agora, via como completamente sem propósito.

Bateu na aldrava três vezes, lenta e compassadamente; o coração batia mais rápido; quis correr dali, mas agora era tarde; talvez não devesse ter voltado, afinal; os pensamentos, porém, foram quebrados pelo clangor da fechadura sendo aberta e pelo ranger das dobradiças; viu o lampião de opalina branca, carregado por um vulto que, ao colocar a cabeça pra fora, reconheceu como Vicência, a governanta, que tinha sido ama-de-leite de Amália; a mulher levantou o lampião para ver melhor, divisando a figura barbada, vestida em um uniforme surrado e uma barretina puída.
- Que é que vosmecê quer aqui? Não temos nada não; é melhor vosmecê ir embora ou eu chamo o dono da casa;
- Eu mudei tanto assim, Vicência? – perguntou ele, enquanto tirava a barretina e punha o rosto à luz.

Vicência segurou firme o lampião, mas as forças faltaram no susto; ele a segurou, aparando-a com a mão livre; ela custava a acreditar no que via; o filho do seu patrão, dado como desaparecido, estava ali, na frente dela; o rosto estava encovado, parecia mais alto e mais magro, mas eram os mesmos olhos negros vivos, que ela reconhecera; ele amparou-a na porta e ela o fez entrar.
- Patrãozinho! O senhor tá vivo! O senhor tá aqui! Minhas rezas foram ouvidas! Pedi tanto pela proteção do senhor!
- Então tenho de agradecer, Vicência, por tudo; foi um longo caminho, mas estou aqui. Quero ver meu pai e minha irmã; como eles estão? Me fale, quero saber de tudo

Ela, então baixou a cabeça, como a não querer encará-lo. Lágrimas correram dos olhos da negra, e a custo conteve os soluços; ele a fitou com olhos inquisidores.
- Seu Aurélio tá na cama, Patrãozinho, dali ele não saiu mais desde que o noivo da sinhaninha Amália, seu Lucio, disse que o senhor tinha sumido na batalha; caiu estuporado; quase não fala, só faz sinal com a mão; tá que dá pena. A menina Amália foi ajudar D. Emiliana, prima do seu pai, porque a filha dela teve criança e quase morreu de mal-de-sete-dias; passou a noite lá mas volta daqui a pouco; a menina Agnes, filha do inglês brancarão vizinho nosso, ficou tomando conta do patrão;

Ele a acompanhou pela casa, seguindo o bruxulear da luz do lampião; nada mudara muito, a não ser uma espreguiçadeira na sala, que deveria ser por causa do pai; passou pelo corredor em passo silencioso, para não despertar o pai, que já devia estar dormindo
- Venha cá patrãozinho, deixe eu dar um jeito no senhor. Vou preparar um banho quente e trazer a navalha e o sabão de barba
- Queria ver o meu pai antes, Vicência, não ficarei tranquilo enquanto não fizer isso.
Ela tomou então a direção da alcova, onde estavam os aposentos do pai; nisso, outro lampião quebrou a penumbra e ele vislumbrou a figura de uma jovem de cabelos louros escuros, que vinha na direção contrária; lembrou-se da moça que a irmã falara, filha de Mr. Charlton, agente comercial inglês amigo do pai; vestia um camisolão azul claro, encimado por um peignoir também azul.
- Vicência, quem é esse homem? Não me lembro dele visitando o Sr. Aurélio; o que ele faz aqui a essa hora?
- Menina Agnes, esse é o seu Júlio, filho do patrão, o que o seu Lucio disse que tinha sumido na guerra; ele voltou! Está aqui com a gente!

Agnes aproximou o lampião e viu as faces encovadas, os olhos negros, o semblante emaciado, o uniforme em andrajos; lembrou dos daguerreótipos que Amália mostrara, um jovem sorridente e bem-humorado, vestido de forma elegante; tentou ver a correspondência entre as duas figuras. Mas parecia difícil reconhecer no que via o jovem dos retratos.
- Agnes, preciso muito ver meu pai; sei que a hora não é a mais propícia, mas preciso ao menos vê-lo para depois cuidar de mim; em outro momento conversaremos melhor.

Ela, então, o guiou para a alcova, onde o pai dormia pesadamente; mal o reconheceu; os cabelos tinham encanecido e rareado, a testa eivada de profundas rugas; um dos braços estava sobre o peito e o outro, paralelo ao corpo; ressonava pesadamente, parecendo não se incomodar com o bruxulear da chama do lampião; ele então ajoelhou-se ao lado da cama do pai , e, pela primeira vez desde que voltara, desabou em lágrimas...


(1) Negros de Ganho eram escravos que faziam venda de produtos para os seus senhores, mas, dentro de certos aspectos , tinham mais autonomia e recebiam uma porcentagem do produto das vendas; muitos economizavam para comprar a liberdade e acabavam virando pequenos empreendedores, dai viverem, no dizer da época, "No ganho"



(2) Tigres eram escravos que recolhiam, em tonéis chamados "cabungos", todos os dejetos das casas - como nas cidades ainda não havia um serviço de distribuição de água e esgoto, eles carregavam os tonéis e os despejavam nos rios ou em praias; na cidade de São Luís do Maranhão o ponto de descarga era em uma praia chamada Praia do Caju, que foi aterrada nos anos inciais do séc. XX para a construção da estação ferroviária, hoje sede da Secretaria de Segurança Pública; o nome Tigres foi dado por causa dos resíduos que escapavam dos tonéis e caíam no corpo, dando-lhes uma aparência "tigrada"


Imagens - Tumblr/Google Images

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE X


Walter examinou cuidadosamente o conteúdo do baú, as mãos percorrendo cada objeto como se fossem joias; tentava decifrar a mensagem implícita neles, sentindo a energia que parecia emanar de cada um; Eliza, à distância, contemplava-o com um misto de admiração e curiosidade; quando terminou de ver tudo, segurava a foto do pai dela junto com o idoso Antônio Ribeira, na cama da enfermaria do asilo.
- Então é isso – respirou fundo – o seu pai juntou todas essas coisas como uma forma de contar a história das pessoas que viveram isso, mas não conseguiu;
- Sim, foi desse jeito; ele me deixou com essa tarefa nas mãos – respondeu calmamente – até tentei continuar e segui algumas pistas, mas ainda penso que estou indo muito devagar – completou enquanto o abraçava.
- As coisas às vezes são assim, pensamos que podemos estar no caminho certo e de repente nos enganamos; mas sempre é tempo de voltar de onde erramos e fazer tudo certo.

O olhar dele se voltou para os maços de cartas dentro do veludo; todos tinham sido desatados exceto um, ainda com o laço de fita; mas, diferente dos que tinham sido desatados antes, este era atado com um laço de fita preta e as cartas, que nos outros maços estavam sem nenhum tipo de dano salvo os do tempo, estavam em parte rasgadas ou com manchas que pareciam chamuscos; olhando mais de perto viu que não eram chamuscos e, sim, manchas de um tom marrom escuro; em algumas a caligrafia era firme , em outras vacilante; pareciam ser da mesma pessoa , mas em momentos diferentes, como se não tivesse forças pra escrever; Walter desatou o laço, espalhou as cartas pela mesa e começou a ler...

“MONTEVIDÈO, 12 de fevereiro de 1866

Caros Pai e irmã

A urgência me fez escrever uma carta para os dois; os preparativos para a movimentação das tropas urgem, pois não teremos muito tempo até embarcar; aproveito e escrevo estas linhas de inopino, para saberem como as coisas andam e como estou indo.
Meu pai, sei que o senhor questiona minha atitude, mas pensei muito antes de me decidir; me senti no dever cívico de me alistar, pois não fomos nós que agredimos o Paraguai, mas ele nos agrediu; há relatos de muitas atrocidades na província de Mato Grosso e no Rio Grande do Sul; aqui os soldados andam uns nervosos , uns excitados, mas todos muito dispostos para lutar; comissionaram-me como tenente de um batalhão de voluntários, recrutados entre a vizinhança da faculdade de Direito e mesmo alguns segundanistas; muitos chegaram sem nem saber como segurar um rifle; tento da melhor maneira possível fazer com que fiquem treinados e azeitados para a frente de batalha.
Minha irmã, fiquei feliz com o seu noivado com o Lucio Faria; encontrei-o uma vez na Corte, recém comissionado para o Arsenal de Marinha; ele me parece muito entusiasmado, mas, pelo que eu me lembro, não ficaste tão empolgada quando o conheceste; recordo da tua frase que dizia que ele ‘nem tinha te feito arfar’, mas deves tê-lo conhecido melhor para te decidires.
Bom, tenho que interromper a missiva agora, pois sou chamado no posto de comando; espero ter melhor oportunidade para escrever mais longamente; a tropa já se prepara para partir; espero que essa carta encontre os dois em boa paz e que todos estejam bem.

Sem muito para dizer
Pedindo sua bênção, Meu Pai
E todo o carinho para ti, Minha Irmã
Do filho e irmão
Júlio”



Eliza e Walter examinaram com cuidado cada uma das cartas do último maço; algumas, de tão chamuscadas, não puderam ser lidas, pois se desmancharam ao toque; outras, porém, puderam ser manuseadas e finalmente puderam ser abertas; a ansiedade tomava conta dos dois, mas abriram uma de cada vez, para tentar preservar as que ainda podiam ser lidas.

“POSTO AVANÇADO DE CURUPAITI, 11 de outubro de 1867

Cara irmã

Espero que consigas receber esta carta antes de qualquer outra coisa; imagino que sempre deves ir ver se meu nome está na lista de mortos que, penso, devem estar afixando na porta do Jeremias tabelião; se meu nome não está lá, então não deixe de acreditar que eu voltarei;
Cheguei no dia em que aconteceu o desastre; só o que se via eram mortos amontoados e feridos agonizantes; um de meus colegas oficiais sofreu um colapso nervoso e não diz mais coisa com coisa; o resto da tropa está num estado tal que muitos podem nem sequer lutar, preferindo fugir a sequer vislumbrar o inimigo...
Uma novidade: lembra-se do Antônio Ribeira, que tinha levado uma encomenda minha a São Luís? Pois é, eu o encontrei aqui, alistado no regimento de caçadores como capitão; conversamos rapidamente, pois ele já estava engajado em combate com colunas móveis paraguaias perto de Humaitá; ainda aguardo ordens para seguir em frente, mas acredito que logo seguirei com os outros; reze por mim irmã, e diga ao meu pai que entenderei se ele não me responder.




Não sei se conseguirei enviar outra missiva tão logo; o correio aqui é um tanto irregular, mas farei o possível para mandar notícias assim que puder; diga a meu pai que peço a bênção dele.

Pedindo seu amor e suas preces
Seu Amantíssimo irmão
Júlio”

Walter separou outro grupo de cartas do maço; pareciam, dessa vez, desordenadas, como se arrumadas às pressas, num aparente estado de confusão; pegou-as com cuidado, desdobrando cuidadosamente, retomando então a leitura, com Eliza ao lado, atenta a tudo.

“HOSPITAL MILITAR DE CORRIENTES, 04 de novembro de 1867

Cara Irmã

Se lês estas linhas agora, é porque o cabo Terêncio segurou o meu braço para que eu pudesse escrever; desculpe minha letra sem alinhamento, mas é que não tenho muito jeito agora para segurar direito a pena; ainda não me recuperei bem dos ferimentos que recebi, mas posso asseverar que logo estarei longe disso e de pé de novo. O progresso das tropas é lento e difícil, pois não existem mapas precisos da região e somos presas fáceis de emboscadas e escaramuças; o Coronel Pena, comandante do regimento, tombou há dois dias, vitima de um riflero paraguaio; teimou em acender o cachimbo numa avançada à noite e não viveu para dar o primeiro pito; caiu com o fósforo ainda na mão...
Imagino que tenhas tentado escrever, mas não recebi tua carta; o cabo Terêncio diz que os estafetas têm sido atacados por piquetes paraguaios em busca de despachos dos comandos, mas mesmo assim esperarei por ela; sinto falta de notícias tuas e de nosso pai, mas acho que ele ainda não me perdoou por ter me alistado, mas as coisas são assim; apenas o tempo pode fazer algo; não sei ainda quando retornarei à frente de batalha, mas espero sair logo da convalescença; tentarei por qualquer meio te enviar esta, assim que for possível;

Pedindo seu carinho de irmã e suas preces
Seu amoroso irmão que te beija nas faces
Júlio”




Já era tarde quando Eliza e Walter se aperceberam do tempo; arrumaram as cartas em uma mesinha perto do baú e foram à cozinha preparar o jantar; teriam ainda um tempo juntos até que ele fosse embora, pois no dia seguinte o trabalho aguardava; desta vez, ele se encarregou do jantar; ela observava, da mesa da cozinha, o desdobrar de uma refeição preparada calma e apaixonadamente; aproximou-se e o abraçou por trás; os braços dela o enlaçaram e ele respirou fundo, enquanto dava os toques finais no prato...