domingo, 13 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XI


PROVÍNCIA DO MARANHÃO, OUTUBRO DE 1871

Eram duas da manhã quando ele virou o Largo da Forca Velha, tomando a rua do Mocambo; salvo por um ou outro transeunte, na maioria negros de ganho(1) ou tigres(2), a rua estava deserta; ajeitou o bornal no ombro e continuou, o passo lento e sem pressa. 



Chegou à Rua das Crioulas, iluminada apenas com a luz mortiça dos lampiões de gás; pensava se iam reconhecê-lo, se ainda lembravam de como ele era; ainda conservava as cartas da irmã, mas não tinha conseguido enviar as suas, pois durante a convalescença no hospital de sangue, não conseguira fazer contato com o correio para que as entregasse.


Vinha com a dor remanescente das feridas já cicatrizadas, mas algumas deixaram marcas mais profundas; recuperara-se a tempo de presenciar as batalhas de Peribebuí e Campo Grande, onde o exército paraguaio deixou de existir como unidade combatente; recorriam no desespero a mulheres, velhos e meninos; vira os cadáveres na rota para Assunção, destroçados por balas de canhão e metralha, rostos e corpos desfigurados pelo horror da guerra.



Avistou a casa da esquina, hesitando um pouco antes de retomar a caminhada; pensou no pai, sem trocar uma carta sequer desde que se alistara; pensava agora que teria sido melhor que não o fizesse; o espirito marcial como que o hipnotizara, sonhando em voltar coberto de glória e reconhecido como herói; de que valera? O que viu foi apenas destruição, morte e sofrimento; sentia-se afortunado em voltar, poder rever a todos e principalmente, a família.


Criou coragem e continuou.

Parou diante da porta de madeira escura, com uma aldrava de bronze se destacando no centro; pensou duas vezes antes de bater, imaginando como iriam recebe-lo; cofiou a barba negra, que crescera na convalescença; embora o ordenança quisesse escanhoá-lo, não quis; queria como que se esconder, mascarar-se depois de toda a aquela carnificina que presenciara; perdera amigos, colegas com quem estudara e com quem partilhara alegrias e conquistas; só restara a casa, diante dele, como que a admoestá-lo por partir para uma guerra que, agora, via como completamente sem propósito.

Bateu na aldrava três vezes, lenta e compassadamente; o coração batia mais rápido; quis correr dali, mas agora era tarde; talvez não devesse ter voltado, afinal; os pensamentos, porém, foram quebrados pelo clangor da fechadura sendo aberta e pelo ranger das dobradiças; viu o lampião de opalina branca, carregado por um vulto que, ao colocar a cabeça pra fora, reconheceu como Vicência, a governanta, que tinha sido ama-de-leite de Amália; a mulher levantou o lampião para ver melhor, divisando a figura barbada, vestida em um uniforme surrado e uma barretina puída.
- Que é que vosmecê quer aqui? Não temos nada não; é melhor vosmecê ir embora ou eu chamo o dono da casa;
- Eu mudei tanto assim, Vicência? – perguntou ele, enquanto tirava a barretina e punha o rosto à luz.

Vicência segurou firme o lampião, mas as forças faltaram no susto; ele a segurou, aparando-a com a mão livre; ela custava a acreditar no que via; o filho do seu patrão, dado como desaparecido, estava ali, na frente dela; o rosto estava encovado, parecia mais alto e mais magro, mas eram os mesmos olhos negros vivos, que ela reconhecera; ele amparou-a na porta e ela o fez entrar.
- Patrãozinho! O senhor tá vivo! O senhor tá aqui! Minhas rezas foram ouvidas! Pedi tanto pela proteção do senhor!
- Então tenho de agradecer, Vicência, por tudo; foi um longo caminho, mas estou aqui. Quero ver meu pai e minha irmã; como eles estão? Me fale, quero saber de tudo

Ela, então baixou a cabeça, como a não querer encará-lo. Lágrimas correram dos olhos da negra, e a custo conteve os soluços; ele a fitou com olhos inquisidores.
- Seu Aurélio tá na cama, Patrãozinho, dali ele não saiu mais desde que o noivo da sinhaninha Amália, seu Lucio, disse que o senhor tinha sumido na batalha; caiu estuporado; quase não fala, só faz sinal com a mão; tá que dá pena. A menina Amália foi ajudar D. Emiliana, prima do seu pai, porque a filha dela teve criança e quase morreu de mal-de-sete-dias; passou a noite lá mas volta daqui a pouco; a menina Agnes, filha do inglês brancarão vizinho nosso, ficou tomando conta do patrão;

Ele a acompanhou pela casa, seguindo o bruxulear da luz do lampião; nada mudara muito, a não ser uma espreguiçadeira na sala, que deveria ser por causa do pai; passou pelo corredor em passo silencioso, para não despertar o pai, que já devia estar dormindo
- Venha cá patrãozinho, deixe eu dar um jeito no senhor. Vou preparar um banho quente e trazer a navalha e o sabão de barba
- Queria ver o meu pai antes, Vicência, não ficarei tranquilo enquanto não fizer isso.
Ela tomou então a direção da alcova, onde estavam os aposentos do pai; nisso, outro lampião quebrou a penumbra e ele vislumbrou a figura de uma jovem de cabelos louros escuros, que vinha na direção contrária; lembrou-se da moça que a irmã falara, filha de Mr. Charlton, agente comercial inglês amigo do pai; vestia um camisolão azul claro, encimado por um peignoir também azul.
- Vicência, quem é esse homem? Não me lembro dele visitando o Sr. Aurélio; o que ele faz aqui a essa hora?
- Menina Agnes, esse é o seu Júlio, filho do patrão, o que o seu Lucio disse que tinha sumido na guerra; ele voltou! Está aqui com a gente!

Agnes aproximou o lampião e viu as faces encovadas, os olhos negros, o semblante emaciado, o uniforme em andrajos; lembrou dos daguerreótipos que Amália mostrara, um jovem sorridente e bem-humorado, vestido de forma elegante; tentou ver a correspondência entre as duas figuras. Mas parecia difícil reconhecer no que via o jovem dos retratos.
- Agnes, preciso muito ver meu pai; sei que a hora não é a mais propícia, mas preciso ao menos vê-lo para depois cuidar de mim; em outro momento conversaremos melhor.

Ela, então, o guiou para a alcova, onde o pai dormia pesadamente; mal o reconheceu; os cabelos tinham encanecido e rareado, a testa eivada de profundas rugas; um dos braços estava sobre o peito e o outro, paralelo ao corpo; ressonava pesadamente, parecendo não se incomodar com o bruxulear da chama do lampião; ele então ajoelhou-se ao lado da cama do pai , e, pela primeira vez desde que voltara, desabou em lágrimas...


(1) Negros de Ganho eram escravos que faziam venda de produtos para os seus senhores, mas, dentro de certos aspectos , tinham mais autonomia e recebiam uma porcentagem do produto das vendas; muitos economizavam para comprar a liberdade e acabavam virando pequenos empreendedores, dai viverem, no dizer da época, "No ganho"



(2) Tigres eram escravos que recolhiam, em tonéis chamados "cabungos", todos os dejetos das casas - como nas cidades ainda não havia um serviço de distribuição de água e esgoto, eles carregavam os tonéis e os despejavam nos rios ou em praias; na cidade de São Luís do Maranhão o ponto de descarga era em uma praia chamada Praia do Caju, que foi aterrada nos anos inciais do séc. XX para a construção da estação ferroviária, hoje sede da Secretaria de Segurança Pública; o nome Tigres foi dado por causa dos resíduos que escapavam dos tonéis e caíam no corpo, dando-lhes uma aparência "tigrada"


Imagens - Tumblr/Google Images

Um comentário:

  1. Uma das coisas que eu acho mais interessante, é a sua preocupação em explicar detalhes da época, e do vocabulário como tigres e negros de ganho.

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A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!