terça-feira, 11 de maio de 2010

Olympia


Ele não acreditava naquilo. A criada nigeriana, Madou, entregou apenas um bilhete que dizia laconicamente: "gostaria muito de conhecer seu talento, monsieur;não se demore! Atenciosamente, Marianne Duchamp".
A criada tinha vindo de carruagem, e ela os levou à Rue de Fleurus, a uma casa elegante com jardim, onde, se sabia, eram dadas algumas das festas mais elegantes de Paris. Ele adentrou o portão, sempre atrás de Madou, e depois de um lance de escadas, foi introduzido ao Boudoir de Mlle.Duchamp. Ela vestia apenas um negilgé em forma de asas de borboleta, debruado de dourado e negro.
- Bonjour, Monsieur Manet. Deve imaginar o motivo de eu tê-lo chamado assim, tão de repente.
Ela o fez economizar a pergunta. O olhar era firme, os olhos castanhos passando a firmeza de quem comandava com naturalidade, os ombros de curvas suaves, mas bem retesados, fazendo com que ele se sentisse como acossado.
- Fique à vontade Monsieur. Deseja um café, um licor, ou, talvez, conhaque?
- Um café será suficiente, Mademoiselle.
- Abstêmio, M. Manet?
- Não , Mademoiselle. apenas não bebo enquanto estou pintando. Mas, como dizia, a senhora chamou-me para...
- Quero comissionar um trabalho seu, Monsieur. Um trabalho de talento e intensidade.
Um arrepio lhe percorreu a espinha. Será que era uma proposta implícita, o começo de um affair? sabia-se que ela era uma das grandes cortesãs de Paris, e sua coleção de amantes faria corar uma amadora
no Quartier Latin.
- E quero que faça agora. Mas não quero nada acadêmico. Faça com que simplemente eu seja eu mesma. Sem enfeites, sem adornos...Apenas eu mesma. Agora.
Ele viera preparado. Após montar o cavalete e preparar a pallette, ela se despiu e recostou-se no divã. as mãos, febris, começaram a delinmear as formas, que eram reputadas. Era comentada a beleza de Mlle. Duchamp, por quem metade dos homens de Paris havia cometido suicídio, ou pereceram se batendo em duelos. Conservara os chinelos persas, um deles pendendo espontaneamente do pé direito.
As mãos, pousadas sobre o alto das coxas, não demonstravam languidez, mas uma sensualidade forte, onde nada ali queria dizer passividade. Era como se ela dissesse; "vocês, homens, são fortes, mas eu os tenho nas mãos". O olhar, longe do olhar enlevado de outras pinturas, encarava diretamente o artista, como a dizer que estava ali uma figura viva, pulsante, plena, não uma estátua ou um mero ornamento de biscuit. Era ela, A Mulher. Não uma simples corista ou dançarina, mas A Mulher. Ele delineava com afinco, como se, pela primeira vez, transcendesse o mero senso artístico.Os dias se seguiram, ele a revelá-la mais que pintá-la, cada acerto e cada retoque comos e fosse a proximidade, a intensidade que o fazia suar, arfar, enfim, se deixar dominar por quele encanto, como o absinto que sempre o seduzia, mas que ele domava sempre que ia pintar. Ela surgia, como um fonte de fogo. Era Ela, era Olympia. Num dos dias, a criada Madou trouxe uma bela corbeille de rosas rubras, de um perfume mais que sedutor, mágico, de uma aura de encanto como poucos. Ela leu o cartão, fez uma expressão como de banalidade, e entregou novamente a corbeille a Madou, mas achegada da criada compusera o retoque final, e, agora, ele concluía sua obra, e, quando finalmente ela contempla o resultado, ela rompe com sua laconicidade;
- Sabia que não me decepcionaria, Monsiuer Manet. Suas mãos têm mais que talento. Elas têm luz. Mas o senhor deve estar preocupado em saber o porque de eu tê-lo comissionado, e o senhor se surpreenderá ainda mais em saber o porquê dessa tela.
- Devo confessar minha curiosidade, Mlle. Duchamp
- Quero que esses porcos aristocratas - Ela disse isso entre dentes - Tremam ao me encarar, me encarar de frente, Monsieur. Eles se acham grandes pessoas, mas na realidade são podres.
A declaração dela, misto de revolta e desprezo, o surpreendeu. Mas ele entendia bem o que ela queria dizer. Ela, mesmo na tela, encararia a aristocracia de frente, sem medo nem hesitação.
Ele começara a se deliciar com aquilo, imaginava o frisson dos salões, ao sonhecerem a ousadia de Mlle Duchamp em se revelar ao claro, ao se mostrar inteira, nua, para o deleite não mais de uns poucos, mas esses poucos iriam sentir o nó na garganta, ao serem confrontados pela própria hipocrisia.
E assim foi. Na galeria na entrada de Montmartre, os "Ohh" e "Ahh", eram o que mais se ouvia no salão de exposições. Manet estava preparado para o que viria. De u lado, pessoas admiradas com o que para elas até então, não passava de descrições orais recheadas de imaginação; para outros, era a exposição ao constrangimento, pois , se ela era capaz de se exibir assim, o que mais ela poderia fazer? Ir aos jornais, ou mesmo a um desses pasquins de escândalos? Outros nem sequer se preocupavam , apenas admiravam extasiados aquela mulher, recostada no divã, sem o formalismo acadêmico, sem qualquer tipo de pose. Apenas ela mesma, com a criada a entregar as flores de algum admirador. Ela não apenas se mostrava , mas também olhava os admiradores de frente, como se , mesmo ali, na inatividade da tela, ela fosse uma vida, um ser pulsante de plenitude. Como Olympia da Antiguidade, ela também se mostrava altiva e nobre, sem nada nas faces anão ser a atitude de desafio, a beleza forte, a sedução intensa. Apenas ela mesma. Olympia de Manet é um marco. Pela primeira vez, uma mulher se mostrava sem máscaras, com a intensa luz de sua personalidade...

E aqui está ela

Uma História, um tempo

Alemanha ,Novembro de 1932
A atmosfera esfumaçada escondia as faces dos clientes, fazendo a diversidade parecer uniformidade. Cigarros, cigarrilhas em piteiras elegantes ou mesmo charutos eram as máscaras desse momento momento.As jóias, como competitivos adereços, eram parte daquela disputa de aparências. Todos queriam mostrar que tinham que possuíam, que eram L'élite. Todos estavam felizes, parecia que aquele momento iria durar pra sempre...
O mestre-de-cerimônias chega, maquiagem branca escondendo o rosto de muitos espetáculos, de muitas magias, de muitos talentos...Ele se aproxima, e, em gestos largos mas ágeis, faz uma mesura exagerada ao público enquanto se apresenta.
- Bem-vindos, meus amigos!Deixem suas tristezas lá fora!Aqui é lugar de diversão!Nada de lágrimas e sim, sorrisos! Bem-vindos ao KIt Kat Club!
Então, a canção de abertura. As coristas, ladeando o mestre de cerimônias, dançam ao som de "Wilkommen, Bienvenu, Welcome/Fremde,Étranger, Stranger/Gluklich zu sehen/Je suis enchanté/Happy to see you, bliebe, reste, stay.
/Wilkommen,Bienvenue, Welcome/Im Kabaret/Au Cabaret/To Cabaret"!

A dança excita, desperta sonhos, imaginações. Todos desejam aqueles corpos, aqueles movimentos; alguns mesmo já se imaginam com elas, em algum carro no Kufürstendamm ou mesmo em um quarto de hotel em Bad Wiesse. Assim era a Berlim antes da derrocada...
Mas todos, em verdade, a esperam. Ela. A voz. O corpo. A dança. A saudação entra em seu finale. Ninguém mais resiste. Assobios, gritos, delírio. Todos a querem
-Kitty Winters!Kitty!kitty!Kitty!
Ela se alimenta daquela ovação. Um arrepio quase orgástico a percorre. Ela se deixa levar pelos aplausos, pelos pedidos, e, como se embalada por algo invisível, as luzes se acendem, e ela desfia a voz:"Bye, Bye Mein Lieben Herr/Bye,Bye Mein Lieben Herr/You made me happy a lot/But now is over/You loved me so fair/But I need some open air/You'll go ahead/without me/Mein Herr..."A última sílaba parecia levitá-la, tão graciosos eram seus movimentos.
Ela se debruçava no pequeno palco, e os homens lhe
atiravam marcos, jóias, peles. Ensandecidos, alguns mesmo atiravam chaves de casas. Ela poderia ter tudo o que quisesse naquela noite...
Mas nas ruas, as danças eram outras. Danças da morte, Danças de poder. As milícias da Röttekampverband e das SA disputavam palmo a palmo cada centímetro de rua, cada beco. Do Unter Ten Linden ao Tiergarten, o sangue corria nas ruas. Uma era dava adeus. Uma efêmera era de intensidade artística dava seu adeus em sangue. Os nazistas ganhavam terreno...
Lá dentro, era um outro mundo. Ela, à luz dos refletores, era como uma deusa intocável, adorada por uma legião de fiéis enlouquecidos. Os cabelos negros, à la garçonne, eram um toque de desafio, uma transgressão que a fazia muito mais atraente. Os olhos grandes, de um verde translúcido, eram uma fonte de intensidade. E ela dançava, os bailarinos a tê-la no ar, como um pássaro em vôo triuinfal..Ela sentia algo mais, como se aquela noite, a mais especial de todas, fosse única...
A cidade, finalmente, eclodira o ovo da serpente. Não havia mais nada o que fazer. O inexorável avançava. Mas quem queria saber disso lá dentro do Kit Kat? Todos a queriam , todos a admiravam, e, mesmo a distância, tinham seus sonhos...
O mestre-de-crimônias a envolve num abraço por trás, culminando a descida dos bailarinos. Eles dançam uma coreografia de isílio, que se transforma em uma sedução intensa e forte, as mãos de ambos descobrindo, tateando, sentindo. É muito mais que L'Aprés-Midi D'un Faune, mais forte, mais insana até. Eles se deixam dominar, e, então os refletores amortecem a luz, com as sombras se fundindo em uma só...Rompe um uníssono aplauso na platéia, o nome dela como um hino:"Kitty!Kitty!Kitty!". Ela é carregada nos ombros, todos querem oferecer uma taça de champanhe, ou fazê-la compartilhar da mesa, mas ela elegantemente declina, e apressadamente se dirige aos camarins...
As suásticas são mais fortes que as foices e os martelos. Os últimos são completamente obliterados, não há mais sinais deles.
No camarim, ela retira a maquiagem, o batom, e,
simplesmente, passa a ser mulher. Ela sabe o que fazer , o que precisa fazer. O mestre-de-cerimônias, agora um rosto de expressão forte e olhos penetrantes, a fita sem nada dizer. Ela tenta dizer algo, mas ele a cala com um beijo. Os corpos agora não dançam mais eles se entregam a outro balé, mais intenso e desejado. Os dois parecem flutuar no ar, os movimentos como asas de borboleta, a serem levados pelo vento, que se trnasforma mais e mais em tempestade. Poesia de sons sem sentido, de gemidos de uma coreogrfia intensamente espontânea. Ele arrefece sua força, ela extenua no âmago de sua chama. Eles amortecem-se um no outro, os dois vivendo aquele momento como se fosse o último...
Eles deixam o clube pelos fundos, entre o movimento das ruas agitadas. Um carro os espera nos fundos. Não há palavras., Tdos sabem pra onde vão. A viagem é longa até o posto de fronteira. Ele olha ainda uma vez para a cidade, a cidade que fez dele o que ele era, e, ainda uma outra olhada para a sinagoga, e ele lamenta tristemente...
A cidade então mergulha em suas trevas. Trevas que serão mais do que escuridão. serão escuridão e tortura. Ela apóia a cabeça nos ombros dele, as lágrimas rolam nas faces. Ela se deixa entregar ao cansaço...
- Será que ainda voltaremos, Peter?
- A cidade que sempre conhecemos acabou de morrer, Liebschen. Jamais será a mesma coisa.
O carro atravessa a Brandemburgen Tor, na direção da estação ferroviária. Ela vê os grupos de jovens com as suásticas nos braços, a cantar a plenos pulmões seu hino, "Morgen Gehört Mi", "O amanhã me pertence". E rumarem para o centro. Ela chora, pois uma parte dela morre, ao mesmo tempo que a cidade...

sexta-feira, 12 de março de 2010

Um conto - Um Encontro

"O sertão estava diferente, de meio-vento, com um quê de dessemelhança; parecia que tudo estava assentado estranho, nem mesmo o rio parecia remolhar o seu correr de sempre; tinha coisa estranha ali...Foi aí que me atinei do cheiro, coisa de carniça velha, de couro mal curtido, de gente apodrecida no valer dos caminhos; a noite parecia como que do avesso; me esgueirei pelo capoeiral, me acheguei da lambedeira e peguei no punho com força; fui na direção do cheiro e, de repente, dei com Mariana, apoiada numa gameleira, olhos que pareciam vermelhos, esbrazeados; só então me pus reparo dela nua, ancas cheias, pernas tesas, e, por trás dela, outros olhos de fogo, mãos que pareciam de brasa, que se assenhoreavam dela sem nem mesmo ela gritar...encarei os olhos de fogo e parti pra cima, lambedeira mirando a garganta. Senti o tranco do safanão me jogar longe, e uma voz que parecia do fundo da catacumba me desafiou.
- quem é tu pra me fazer frente, desinfeliz ? tu sabe quem sou eu?
- Como sei, e se prepare seu coisa ruim que eu tenho faca de ticum!!!

Me engalfinhei com ele, de força maior que touro brabo; mas não tinha medo, tinha o amor de Mariana por força, faca de ticum na mão; de repente, ganhei força que não era minha, peitei aquele coisa-ruim e passei o ticum no bucho do peste, que se arregalou com se tivesse visto coisa mais forte que ele, e se desmanchou no escuro; tomei Mariana no braço, mas não antes de enfiar o ticum na terra, onde o cramulhão se desmanchara. "Fio da desgraça , tu vai gritar até o fundo da terra, mas Mariana tu não toma"...

Assim se falou pelas veredas do sertão...