sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

O General, o Artista e o Jovem Erudito

Platô de Gizeh, Egito, 1798


A fumaça se dissipara. Os velhos templos, que haviam testemunhado tantas batalhas, testemunharam mais uma: naquelas areias, junto às pirâmides, jazia o orgulho egípcio, os tão engalanados mamelucos, senhores das artes eqüestres, a furusiyia, as velhas artes de batalha, com seus fogosos ginetes e suas reluzentes iatagãs. Caíram pela pólvora e pela baioneta, e, mais uma vez, os francos – al-faranj – são os senhores do deserto. Seu general, olhos frios e mente ao longe, inspeciona o campo de batalha.
O general mameluco, Murad Bei, custa a crer no que vê. Seus melhores homens, sua elite, morta e destroçada antes mesmo de travar combate. Os quadrados de batalha dos europeus vencem a coragem mameluca. “Francos Covardes”, pragueja, de si para si, antes de, consternado e derrotado, retirar-se. Morrerá na perseguição que lhe moverão os estrangeiros...
Ao lado do jovem general corso, que logo vai inscrever seu nome na história, um homem franzino toma notas e desenha. Seus olhos apurados vêem o que, ao néscio, passará despercebido. Seus olhos não deixam escapar o menor detalhe, mesmo diante da fuzilaria da batalha e do clangor do aço. Velhas efígies de antigos deuses, velhas colunas, mudos vigilantes dos séculos, nada é fugidio de sua pena e de seu olhar agudo e incisivo.
Quanto aos demais, resta a paz dos cemitérios. Outras batalhas se travarão, outros registrarão feitos; mas as inexoráveis areias removerão marcos, pegadas e trilhas...
O general corso guindar-se-á à história; o artista trará à luz uma civilização que, para muitos, sempre pareceu lendária, ou mesmo fantasiosa; e é a um jovem erudito que caberá fazê-la falar, contar sua epopéia...

Mas isso será outra história...

sábado, 8 de dezembro de 2007

UM CONTO INTENSO

LAURINDA E O SABRE

Era uma noite comum naquela fazenda. Apenas se ouvia o barulho dos grilos e mais nada. Os pássaros há muito dormiam, e o som que se notava era apenas o dos grilos e, de vez em quando, o estrilos das corujas, chamadas pelo povo de “rasga-mortalha”, que as beatas, quando as escutavam, faziam o sinal da cruz, de tão agourento que era aquele som.
Mas Manuel Borralho não dormia. Inquieto, se remexia e virava de um lado para outro, a mulher dormindo do outro lado da cama. A vista foi para os quadris da mulher, que eram largos e cheios. Levou a mão no querer de acordá-la, mas se deteve. Sabia a razão daquela inquietude.
Iria resolver logo aquilo. E já.
O caminho até a vila dos empregados era de mais ou menos de dez passos da sede, mas eram dez passos que pareciam dez léguas, tal era a ansiedade de Manuel Borralho. Muitas vezes matutava: “por que não acordava Justina, ora essa”. Ela era mulher dele, se casara bem, era boa esposa, uma mulher como poucas. Mas a vontade dele era outra, e ele sabia bem a causa...
Na vila, numa das casinhas de tijolo cru feitas lado a lado, feito casinhas de boneca, Laurinda cosia uma saia, que se rasgara quando ela fora buscar ovos no galinheiro. Era moça de prendas, a única que havia ficado quando os escravos, depois do 13 de Maio, deixaram a fazenda. Ela foi uma grata surpresa para os homens que chegaram depois, sujeitos altos, brancarões, cabelos e olhos claros, falando uma língua estranha pra ela. Iam ficar no lugar dos negros? Iam no eito trabalhar? Um monte de perguntas zoava em sua cabeça. Mas ela não se deixava levar, resistindo, mesmo em alguns momentos claramente contra a vontade, mas Laurinda tinha seus próprios planos...
Ele chegou sem falar muito,apenas entre sussurros de voz e entrecortes ofegados. Ofegava de vontade. O cheiro de café no bule só lhe aumentava a gana. Entrou abrupto, com ares de domínio.Ainda se considerava dono, mesmo já vinda a Abolição e a italianada de meeiros da fazenda, ainda se via como o pai e o avô, senhor, mesmo, de vida e de morte.Ela estava na porta dos fundos, no coser da saia, a dar o arremate dos últimos pontos. Ia devagar, no compasso de uma canção ensinada pela avó, um costume quando trabalhava.
Ele a tomou nos braços sem aviso, sem trégua. Ofegava sentindo o cheiro da pele fresca, rematada longe de alecrim. O vão da porta parecia, ali, pouco para ele. Queria mais, parecia que a vontade dele se espalhva na casa toda. Arrastou-a devagar, cada parte lhe fazendo ir quedando a roupa. Ela negaceava de leve, isso atiçando-o ainda mais, fazendo-o se despir das últimas reservas de pudor. Ela o despe, revela a luxúria em riste, de um homem agora ensandecido. Ela se deita, as coxas em arco, revelando a mulher cheia de carnes, em ver de quereres. Plena. Fêmea. Ele não é mais senhor de si. Apenas o ardor do macho o guia. Ele sente o cheiro de mulher, cheiro de viço, de cio. Ele a beija, se deleita, o gosto como de banguê, desvario de doce, de aguardente de cabeça, de melaço, de perdição. O lugar se torna pequeno pra tanta vontade.
Os dois, unidos, parecem dançar, quando ele chega ao âmago do prazer, as forças a se esvaírem quando ele jorra dentro dela, cada parte como algo dele a escapar, quase a abandoná-lo, a desertar dele. Sente pela primeira vez o peso do próprio corpo, o torpor de si, o cansaço da saciedade.. Ela ri frouxo. Longe de se ver parada, ela o puxa para si, . Uma. Duas. Três. Ele finalmente se rende. O corpo, antes ágil, pende pesado, sono de animal regalado.Ela se levanta bem devagar, passo pequeno, de seriema no bote. Ele nada ouve, mergulhado no sono do gozo. Ronca forte, onça cevada de caça. Ela pega o sabre do pai há muito morto, corajoso voluntário no Paraguai, e vem, pé ante pé. Os passos , curtos, se achegam. Nos olhos não há a vontade de antes. Os olhos agora têm as chamas do ódio. Ódio frio, vingança. A imagem da mãe,pegada à força no eito, sujeitada, e depois vendida. Ela ,pequena, vendo tudo. O pai, em seu desespero. A fuga. Notícias dele na guerra. Morte. A única coisa que a ela restou foi o sabre, entregue por um companheiro do pai, sempre bem escondido, jamais descoberto. Ela chega perto. O homem ressona, sem de nada se dar conta. O sabre na mão direita, perto, mais perto. Ela o ergue, o segura com as duas mãos, e, com toda a sua força vingativa, dá a estocada. Ele não acorda nem mesmo quando o aço lhe trespassa o coração, atravessando o colchão de crina e fincando no chão. “Se vingue, meu pai”, diz ela, quando tudo termina. Ela toma a trouxa e sai de fininho, os primeiros raios do sol tomando a fazenda. Os italianos despertam, indo trabalhar no cafezal. Ela passa a porteira, tomando o rumo da estrada. Havia cumprido sua, de há muito tempo feita, promessa. Seria a última escrava a passar por aquela porteira, mas ela faria seu senhor pagar, nem que, para isso, tivesse que, como de fato fez, se deitar com ele. Ela ia longe, cantarolando a mesma canção da avó, dessa vez com um jeito diferente. Pela primeira vez na vida, se sentia, enfim , verdadeiramente livre...

segunda-feira, 29 de outubro de 2007

A Saga dos Sahtov -Willingthorpe parte IV

NO VAPOR AMETHYST, PRÓXIMO À BAHIA DE HONG KONG, 1895
A agitação crescera, depois da longa viagem, e era necessária alguma distração. Ela surgiu num incidente corriqueiro, quando um major do regimento de Lanceiros de Bengala começou a provocar uma passageira indiana do vapor. Horace Lambert-Foyle detestava o serviço na Índia, mas tinha obrigações de família e dívidas a prendê-lo, pois era um jogador compulsivo, e a ruína da família fé-lo aceitar a oferta de servir nas colônias. Mas logo detestara a rotina militar os acantonamentos e, sobretudo, o calor escaldante
Um jovem oficial da marinha, de cabelo castanho e olhos azuis, se aproximou calmamente, e indagou o motivo daquela confusão toda. Lambert-Foyle o empurrou para o lado e retrucou
- Não se meta, janota de azul; esses assunto é meu!
O oficial o empurrou o pé direito na direção de Lambert-Foyle, e ele caiu no chão, todos no tombadilho a rir-se dele. Depois de fuzilar o jovem oficial com os olhos, disse a ele
- Esta é a hora e o lugar. Aqui, Agora
O jovem oficial imediatamente aceitou o desafio, mais para ver se dava uma lição em Lambert-Foyle. Ele era um bom esgrimista, e não precisou de muito tempo para desarmar o inglês, em três golpes fazendo o pulso dele sangrar...Lambert-Foyle se esforçou muito para fazer uma mesura, admitindo a derrota.
- Posso saber o seu nome, senhor? Perguntou entre dentes, ainda ruminando ódio
-James Shatov-Willingthorpe, oficial da Marinha Real, adido militar na China..
A menção do nome fez Lambert-Foyle quase gaguejar. Os Shatov-Willingthorpe eram uma lenda na Marinha Real, desde os tempos de Crommwell até o presente, com Lord Nigel Willingthorpe. Ele simplesmente estacou, deu um passo para trás e se retirou. Haveria tempo para o revide, pensou
O Amethyst atracou suavemente no ancoradouro da Baía das Pérolas, e os passageiros, calmamente uns, celeremente outros, desembarcaram no Porto de Vitória. James apanhou sua bagagem pessoal e entregou a um carregador malaio que estava a postos, já pressuroso a ajudar. Ele procurava um rosto entre os que estavam no porto, mas tal estava logo atrás dele.
- Meu amigo, há quanto tempo eu não o vejo!
- Sempre imprevisível , não é? Bom vê-lo, amigo.
Aquele encontro demorou uma geração para acontecer. De um lado, James Willingthorpe, neto de Nigel Willingthorpe, e, de outro, Kwai Sao Feng, neto de São Feng, grande amigo de Nigel, e que foi muito próximo dele há sessenta anos. Voltaram a se encontrar muito antes, quando, numa de suas viagens à África, o encontrara m Durban, onde o chinês dirigia um negócio de cultivo de chá e especiarias. Era o reencontro de gerações, mais que de amigos
- Me fale, amigo James, e seu pai e seu avô?
- Meu avô morreu há dez anos. Meu pai agora rege os negócios da família. Minha tia-avó está bem idosa, mas ainda regendo as coisas no Brasil.
- Honorável avô morreu há cinco anos, mas ainda é presença forte na lembrança de meu povo aqui. Mas vamos a minha casa, amigo James, e vamos descansar; depois me conte o que o traz aqui.
A comitiva de Riquixás, que levava passageiros e bagagens, seguiu adiante até a parte alta da cidade, onde ficava a casa de Kwai Sao Feng.. Lá, criados já esperavam na varanda, para pegar as bagagens e conduzir o hóspede a seus aposentos. Mais tarde, ele e Kwai Feng conversaram sobre a situação que se avizinhava.
- As coisas voltam ao estado de tempestade, amigo James. Depois do flagelo taiping, agora, isto...
Kwai falava da rebelião taiping, que há quarenta anos tinha devastado quase a China inteira, uma verdadeira ameaça ao poder imperial, que teve de ser sufocada por tropas mercenárias, comandadas por um inglês, Charles George Gordon, um antigo conhecido de seu pai e avô que ganhou o apelido de “Chinês”, nos círculos da imprensa britânica. Mas agora havia outro perigo, de dentro para fora. O novo imperador, Kwang-Hsu, era de espírito reformador, um modernista, mas enfrentava oposição dentro da própria corte, e entre as figuras-chaves estava a Imperatriz Cixi, a viúva do Imperador Hsi, que era violentamente nacionalista. Dizia-se que ela estaria por detrás do controle imperial, em verdade
- Novamente, então, o trono está ameaçado – falou, em tom preocupado.
- Isso, e também outra ameaça séria, a dos boxers
Ele se referia a uma organização secreta, que distribuía poemas malfeitos incitando à rebelião aberta contra os estrangeiros, que, segundo se dizia, era apoiada e financiada por certos setores da nobreza imperial, que queriam a expulsão dos estrangeiros da China. Eram chamados de boxers porque alguns de seus membros praticavam artes marciais, daí o nome. De início apenas um aborrecimento, eles passaram a chamar mais atenção quando começaram a atacar missões estrangeiras em território chinês, o que deixou as potências em alerta.
James se preocupou bastante com aquelas notícias. Sania que sua missão como adido seria difícil, mas não calculara o tamanho das dificuldades. Sabia do crescente movimento antiestrangeiro na China, mas sempre houve surtos, e não passaram disto. Mas desta vez as coisas eram mais sérias, e havia real risco de mais massacres. Tomou, então, sua decisão. Pediria uma audiência com o príncipe Tuan e o general Jung-Lu, comandante das forças armadas imperiais, para se inteirar da situação. Por ora , iria dormir um pouco. Teria muito que fazer até Sir Roger MacDonald, do corpo diplomático, chegar.
A manhã se apresentou bonita na saída de James até o Palácio Imperial. A audiência fora deferida e o príncipe Tuan iria recebê-lo às dez, juntamente com o general Jung-Lu. Ele entrou pelo portão dos Ventos Serenos até o patamar construído para as audiências. Ele estranhou não haver guardas imperiais presentes. Ele estacou no lugar reservado aos que pediam audiências, as não fez o kowtow – a reverência com a cabeça ao chão, como faziam os demais dignitários chineses ante ao Imperador.
- Então, comandante Willingthorpe, qual a razão da audiência? Não teremos a manhã inteira. – O príncipe Tuan, começou a conversa com um tom de contrariedade.
- Apenas quero o apoio de Vossa Excelência para conter essas manifestações – disse ele com firmeza- precisamos nos unir mutuamente para conter essa ameaça.
- Comandante, o senhor pode contar com meu apoio, mas não posso controlar muito a resistência de meu povo...O senhor sabe que os ânimos dos chineses se exaltam com dificuldade, nossa paciência é extremada – disse entre dentes o príncipe Tuan
- A paciência é uma virtude, Príncipe Tuan. Conto com o senhor.
- Já tem a minha resposta, Comandante. Agora pode ir.
James se dirigiu ao portão, mas já sabia e já tinha idéia do que viria. Os príncipes antiestrangeiros deixariam a torrente dos rebeldes correr, para, depois, assumir o comando. Ele se dirigiu ao riquixá quando de repente, uma turba o cercou, gritando palavras de ordem,; uma pedra atingiu seu ombro, enquanto a turba fechava o cerco. Mas ele foi salvo pela providencial ajuda dos homens de Kwai Feng , que o estavam seguindo desde então.
- Entre senhor, saia daí!!!
Ele rapidamente soltou dentro do veículo, que rapidamente voltou à parte alta, e James contou a Kwai Feng o que acontcera na audiência...

domingo, 28 de outubro de 2007

A Saga dos Shatov-Willingthorpe - Parte III

SEAGATE MANOR, PORTSMOUTH, ABRIL DE 1862
Da janela leste, Nigel contemplava o oceano. A vista do mar sempre era o mecanismo por ele usado para pensar, pôr as coisas em ordem. Sempre fora assim, jamais deixara de ficar ao menos um pouco perto do mar, onde sabia que seus pensamentos sempre o levavam a uma solução.
Muitos anos haviam se passado desde que retornara do Brasil. A mãe, condessa Ludmila, morrera em paz, cercada pelos filhos e netos. Parece que esperara até o último suspiro a chegada de Nadejda, para só então, como foram suas últimas palavras, “juntar-se ao Thomas na eternidade”. Depois, como última vontade, quis que se fizesse uma tumba igual à dela, mas com o nome do marido, a seu lado. Nigel, ao perguntar o motivo, teve com resposta o seguinte;
- Não seremos nós, meu filho... Não seremos nós.
Agora, ele esperava a chegada do filho, Robert, que vinha de uma missão na África. Acompanhara a carreira do filho, e sentia que era ele uma ave de vôos altos, sempre se esforçando pra superar limites. Ele era diferente. Mais calculista e fleumático, sempre esperara o momento certo, mas não Robert Monforte Shatov-Willingthorpe. Ele herdara a alma latina da mãe, e também o talento para o bandolim e para os fados que Leonor continuava a cantar, dando mais cor à casa, ainda pesadamente enlutada.
Dois dias antes, recebera uma carta de seu colega no Bureau Naval, Almirante Aitken, de que “Robert era um excelente marinheiro, um comandante hábil como seu pai, mas sua acuidade e sagacidade o faziam candidato perfeito á compor nosso quadro de inteligência”. Ele não sabia se isso era um elogio apenas ou uma maldição disfarçada. Por gerações os Willingthorpe tinham se dedicado ao mar, sempre em comandos no mar, com apenas intervalos em funções, mormente diplomáticas.
Agora, Robert voltava da África, onde já haviam começado conflitos entre os colonos ingleses e Boers, descendentes de holandeses que povoaram extensas áreas da planície sul-africana, e fundado várias repúblicas ao longo do vale do Orange. Mas os choques aumentaram, porque havia sido descoberta uma grande jazida de diamantes e um veio de ouro na região de Kimberley, o que fez com que o número de estrangeiros – uitlanders, na língua bôer - aumentasse consideravelmente, desde caçadores de fortunas a bandidos da pior espécie. Com isso, os choques de fronteira na região da Colônia do Cabo estavam ficando cada vez mais sérios.
A carruagem parou exatamente na área central do pátio, sendo que Nigel não esperou na varanda. Foi direto até o filho, estendendo os braços, num abraço que foi intensamente correspondido por Robert
- Que bom que está de volta meu filho. Tenho novas a contar
-Também tenho muita coisa a contar, meu pai. Mas vamos para dentro, que a viagem foi assaz exaustiva.
- Vamos, sim. Sua mãe também sentiu demais sua falta.
O abraço de Leonor foi mais afetuoso ainda, cobrindo o filho de mimos e beijos, pois , para ela, ele ainda era o bebê rechonchudo que o pai ajudara a trazer ao mundo. Acomodou-o, trouxe-lhe chá e escutou, toda ouvidos, o relato de suas aventuras na África...Ele falara dos encontros com o Dr. Livingstone, um jovem pregador que lutava ainda contra o constante tráfico de escravos no continente, mais sendo um explorador do que um missionário, descobrindo sempre novas rotas dentro das selvas daquele continente, e com Sir Samuel Baker, geógrafo da Real Sociedade Científica e caçador rematado, e suas explorações na área do Rio Zambeze.
- Que coisas passaste, meu filho, mas ainda bem que estás em casa e perto de mim...
Robert sorriu, continuando a contar suas aventuras, as patrulhas dentro dos rios largos, como o Nilo e o Niger, as cidades da costa Oriental, meio africanas, meio árabes. Dormiram tarde aquela noite, pois Leonor, pressurosa, queria ouvir todas as narrativas do filho... As novas teriam de esperar mais um dia...
No dia seguinte, já refeito, Robert encontrou Nigel na biblioteca, onde conversaram um pouco mais sobre a África do Sul e sobre os acontecimentos que rodeavam a família. Robert perguntava sobre notícias da tia, que escrevia constantemente e era uma das razões de alegria, sempre que chegava alguma carta do Brasil. Nigel, então, falou sobre as novidades e da carta do Almirante Aitken, que surpreendeu pelo fato de Robert já estar informado a respeito.
- Sei do que se trata, meu pai. Fui eu quem pedi que o Almirante lhe escrevesse, pois não tive tempo de tratar disso antes de ir a África
- O que resolveu?
- Resolvi que vou aceitar, meu pai. Identifico-me com o trabalho.
- Eu jamais duvidei disso. Quando será sua primeira missão?
- Parto para o Brasil dentro de duas semanas. Mas não irei de uniforme. Para todos os efeitos, serei um agente comercial, representando uma firma inglesa.
- Mas porque o Brasil?
- Por causa da inépcia de um ministro, as relações entre nós e o Brasil estão tensas além do limite.
Nigel sabia do que se tratava. Por causa de dois incidentes ocorridos no ano anterior, as relações diplomáticas entre Brasil e Inglaterra estavam ficando muito tensas e rumavam em terreno perigoso, por causa do ministro inglês William Dougall Christie, que, exorbitando de suas funções, criou um sério problema diplomático. Os incidentes foram a prisão de dois oficiais ingleses, à paisana, que desacataram policiais num posto de aduana da Tijuca; o outro, o saque da carga de um navio inglês, o Prince of Wales, naufragado no litoral sul, perto de Santa Catarina; Christie, usando de pressão diplomática e tendo sob ordens duas fragatas da Marinha Real, havia apresado quatro navios mercantes brasileiros. Isso causou grande indignação no governo imperial, que exigia um pedido formal de desculpas, coisa igualmente exigida pelo ministro inglês. Nigel sabia disso porque tinha recebido, secretamente, uma carta do Imperador, cientificando-o da situação.
- Com que em quinze dias partes... Sua mãe vai ficar preocupada de novo.
- Não pretendo deixar que nada me aconteça, meu pai. Serei apenas um observador.
- Sei disso, mas eles também ficam na linha de tiro. Tome cuidado. Se possível, visite sua tia e mande minhas recomendações a ela e minhas saudades.
- Farei isso, meu pai, não se preocupe.
A viagem foi sem incidentes, os mares calmos e promissores. Apenas quando Robert adentrou a costa brasileira que pôde ver as fragatas da Marinha Real fundeadas na Barra, os navios mercantes apresados atados pelo gurupês. Ao desembarcar no cais Pharoux, pôde perceber a hostilidade com que a população tratava os ingleses em geral, a ao ministro Christie em particular. Charges maldosas dele estavam por toda a parte, assim como anedotas circulavam na cidade, sempre fazendo chacota dos ingleses. Robert tratou de hospedar-se no Hotel dos Estrangeiros, que lhe dava fácil acesso ao resto da cidade. Depois de tomar banho e descansar um pouco, foi acordado por batidas na porta, e um dos criados do hotel lhe avisava que um cavalheiro de uniforme queria vê-lo. “Seria o comandante Brotheridge?”,pensou. Mas seu chefe aqui só iria se apresentar daqui a dois dias; andou o criado avisar que em minutos ele iria descer. Quando chegou ao saguão, qual foi a surpresa em deparar com o primo Lucas, engalanado em um uniforme de dólmã azul e calça brancas de cavalaria, a julgar pelo sabre pendendo do cinto.
- Primo Robert! Que bom vê-lo! Que boa companhia faremos um ao outro aqui! – falaram em português, pois se sabia da hostilidade aos ingleses naquele período, e qualquer palavra poderia significar ofensa.
- Como soube que eu viria?Não escrevi a ninguém.
- Você, não, mas seu pai escreveu a minha mãe, e ela me escreveu. Estou num regimento de cavalaria sediado na cidade, o 26º. Vim vê-lo assim que informei da tua chegada. Como vê, quando se tem as amizades certas, não há nada que, nesta cidade, não se saiba – disse , num sorriso de canto de boca.
Encontrar com o primo foi uma coisa positiva, que ajudou a quebrar o gelo da cidade. Lucas o levou a todos os lugares, e, da mesma forma que seu pai, apaixonou-se pela cidade do Rio de Janeiro, que tinha um calor todo especial, mesmo com a atmosfera sombria que a Questão Christie criava. Robert contou de suas aventuras na África, das viagens com o Dr. Livingstone, e dos costumes diferentes que conhecera. Como confiava no primo, pôde contar o que o trouxera ao Brasil, o que o deixou assaz aliviado.
- Esse problema é café pequeno diante do verdadeiro problema, primo, isso eu asseguro.
- como assim?
- A raiz do problema está em nossa fronteira sul, não aqui. O real problema está no Paraguai, eu te digo.
- Me explique isto, primo.
- Simplesmente um ditador, Francisco Solano Lopez... Fala pra quem quiser ouvir que quer restituir ao Paraguai seu direito de navegação do Prata, e para isso está reaparelhando seu exército a um nível que jamais vimos., e construindo fortalezas no curso do rio Paraguai. Isso, caro primo, é se preparar apara a guerra.
Robert escutou atentamente as explicações de Lucas, anotando cada detalhe do que o primo falava com acuidade, pois não se daria ao luxo de anotar. Um problema não previsto, esse Solano Lopez. Teria de consultar seu superior , comandante Brotheridge, sobre o assunto. Mas ele não se surpreendia, pois já havia colhido aqui e ali alguns informes sobre esta situação.As explicações do primo lhe firmaram a idéia. Precisaria ver de perto, para ter relatório mais preciso.
- Fique para o jantar, meu primo. Faria-me muito feliz.
- Bom, terei de me apresentar somente amanhã de manhã. Aceito, sim, seu convite.
No jantar, Lucas lhe explicou a situação no Prata, onde os conflitos entre Buenos Aires e os países vizinhos tinham ameaçado a estabilidade da região sul, com as disputas políticas entre blancos e colorados, ou, lendo-se melhor, as disputas entre a aristocracia fundiária e uma emergente classe de comerciantes que demandava maior participação política. Anos antes, estas disputas tinham cristalizado em guerras, nas quais o Brasil teve de intervir, para que a paz fosse mantida na região. Robert casou tudo que ele tinha ouvido com as explicações do primo, encaixando-as para formar, em sua memória, um mapa completo da situação. Robert pôs Lucas a par de sua missão no Brasil, no que o primo até se mostrou disposto a colaborar, pois não era bom para o país esse cabo de guerra com os ingleses.
- Com o que então veio como espião – Disse, troçando, Lucas – Espero que se saia melhor sempre.
- Acho que a troça faz bem mesmo, pois me deste uma luz sobre uma situação nova no país, que acho que devemos estar mais atentos.
- Certamente, primo.Acho que, igualmente para a Inglaterra, não interessa um continente instável, é mau para os negócios – disse
Despedindo-se, Lucas convidou Robert a ir à estância do Lagar, quando tivesse oportunidade, para conhecer a situação de perto.Ele não deu garantias, mas assegurou que iria fazer tudo por onde cumprir a visita.
Mais tarde, no quarto, ele escreveu várias cartas. Uma para o pai, descrevendo o encontro com Lucas e o convite para visitar a tia, além de informações gerais sobe o país. Outra foi escrita para a companhia, que era na verdade uma fachada para as atividades da inteligência naval. Esta, antes de escrever com tinta normal foi preenchida com escrita de sumo de limão, que só seria vista se aproximada da chama, e ainda assim cifrada, pois, se fosse interceptada, seria impossível de se saber o conteúdo. Outra foi para o Almirantado, em linguagem clara, explanando os ânimos naquele período.
No dia seguinte, o estafeta entregou a ele três mensagens. Uma era de seu primo, agradecendo o excelente jantar e reiterando o convite para visitar a estância. Outra era um telegrama do comandante Brotheridge, avisando-o que “se detivera em Recife, por motivo de uma gripe forte, e que se demoraria por uma semana, e o liberava para, de acordo com a iniciativa, observar os aspectos mais gerais, especialmente do panorama político”. Isso viria a calhar...A terceira foi até estranha; dizia que uma dama o aguardava no saguão, e que não se importava em acompanhá-lo ao desjejum. Vestiu-se, desceu, e, quando chegou ao saguão, encontrou a esperá-lo uma mulher de meia-idade, trajando um vestido cor azul-celeste, com faixa de um tom mais escuro à cintura, com um chapéu elegante à guisa de moldura do rosto triangular.
- Meus Respeitos, senhora, mas a quem tenho a honra de receber?
- Venho em nome de minha patroa, a Condessa do Barral. Ela deseja falar-lhe.
- Posso fazer meu desjejum primeiro?
- Tenho ordens de esperá-lo.
Após terminar o desjejum, acompanhou a senhora até à rua, onde uma carruagem o esperava. Na porta, uma pala preta cobria o que parecia ser um brasão. A pessoa que queria falar com ele era, sem dúvida, importante, mas preferia passar incógnito pela cidade.. Após percorrer a zona portuária, a carruagem tomou o rumo da Tijuca, passando por uma fazenda de café, que Robert achou interessante por ficar ao sopé da montanha, meio que encarapitada. A carruagem , por fim, parou numa elegante casa com jardim, cuja quietude convidava ao relaxamento. A senhora conduziu-o ao alpendre, onde um jovem o levou para o vestíbulo da casa, elegantemente decorado com tapeçarias de fino gosto, e podia ver cristais finos em uma cristaleira estrategicamente colocada num canto da casa.
- Aguarde aqui, por favor – disse, com voz baixa, a senhora.
Quinze minutos depois. Um homem adentra o salão, e Robert o reconheceu rapidamente. Seu pai falara dele, de quando o conheceu, um garoto de quatorze anos, assustado e talvez temeroso de suas responsabilidades. Mas o homem que Robert via ali era um homem na quintessência de sua personalidade, a personificação do poder moderador do império. Mal o viu, fez uma mesura e se inclinou, mas o homem levantou a mão, contendo o gesto.
- Com que então o filho de meu amigo vem a este país. Como está seu pai, O Comandante Nigel?
- Almirante agora, Majestade. Ele me falou muito do senhor.
- Tanto tempo, tanto...Me lembro da última vez que conversamos. Ele me aconselhou a sempre fazer o melhor para o país, e é o que tenho sempre feito. Minhas desculpas se me cerco de um aparato como este. Pena que não pudemos ser apresentados em circunstâncias mais favoráveis.
- Também lamento isso, Majestade, e a minha missão aqui é avaliar as coisas para que se possa por um fim a isto. Saiba que o ministro Christie não é de voto unânime no Parlamento.
-Sei disso, meu jovem. Também possuo meus olhos e ouvidos. Permita-me apresentar o Barão de Penedo, nosso representante na corte de St. James
Logo depois adentrou um homem na faixa dos trinta e cinco anos, com uma sobrecasaca de corte elegante e gravata púrpura, de porte tão altivo quanto o Imperador
- E então, meu jovem, quando finalmente esta, como direi...indisposição vai ter fim?
- Sou apenas um observador, sr. Barão. Isso vai depender de como meu governo interpretará meus relatórios.
- Eu espero que eles tenham bom senso, falando com franqueza.
Ambos sabiam que a situação chegava a um impasse, que não seria resolvido facilmente. O Imperador já havia recorrido à arbitragem internacional, um gesto sábio, mas que faria com que a situação ficasse apenas mais atritada. O árbitro escolhido, o rei da Bélgica, era famoso por ser muito escrupuloso nesses assuntos, e dera ganho de causa, com algumas ressalvas, ao Brasil, mas os ingleses não se deram por satisfeitos, e, como a maioria no parlamento era de conservadores, forçaram ainda mais a situação, ordenando o apresamento dos navios brasileiros.
- Mas as coisas não andam sempre como queremos, não é capitão?
- Temos apenas de tirar sempre o melhor proveito de tudo.
- Observação sábia. Acho que temos um diplomata de valor aqui, Majestade.
- Disso eu jamais duvidei. Muito obrigado, Barão. Agora, se nos der licença...
O Imperador e Robert ficaram a sós, e puderam descontrair um pouco. Robert deu notícias do pai, e não ficou surpreso em saber da correspondência entre os dois, cuja amizade era sincera e profundamente recíproca.
- Com que então seu pai está bem. Folgo em saber, meu jovem. Mas me conte de sua viagem. Já reencontrou seus parentes aqui?
- Ainda não, Majestade.. Devo fazer isso em breve.
- Então fará uma coisa para mim, em nome da amizade com seu pai. Poderá fazê-lo?
- Se não for contra meu país, farei sim, Majestade
- Então, sejamos mais francos ainda. Quero que tu verifiques a situação do Prata para mim. Sei que já deves estar informado do que acontece lá.
Robert então contou das observações que andara fazendo sobre a região do Prata, especialmente o Paraguai, que iniciara uma expansão militar que preocupava os países fronteiriços. Isso era algo providencial demais. Uniria o útil ao agradável, além de ter a oportunidade de visitar sua tia Nadejda.
- Posso contar convosco, meu jovem?
- Claro que sim, Majestade. Será uma honra para mim
- Então, meu jovem, seja célere. Que Deus o acompanhe. Sempre que quiser manter algum contato , escreva aos cuidados da Condessa do Barral. Ela me encaminhará tudo o que enviares.
- Está certo, Majestade. Assim será feito
Robert tomou o barco que o levaria a Porto Alegre no fim da tarde, fazendo a viagem com o Pôr-do-Sol. O pai estava certo. Mesmo o entardecer nesta terra era diferente. Sentiu-se identificado, não somente por ter nascido nela, mas, um pouco por parte da mãe, ter herdado a sensibilidade tão presente na cultura do povo, como o pai descrevia a ele. A chegada a Porto alegre foi uma mostra de quão grande era a diferença entre os vários cantos de um país tão grande. Era uma azáfama diferente do lufa-lufa barulhento do Cais Pharoux. Havia um fluxo diferente de pessoas, que ele logo reconheceu, pelo acento, serem alemães, com seus rostos circunspectos e sua fisionomia fechada. Mas logo essa atmosfera foi quebrada pela chamada do primo, que já o esperava.
- Robert! Primo! Que bom que chegou! O que vai preferir? Ir a cavalo ou de carroção? Vamos ter mais ou menos um dia e meio de viagem até a estância. Sugiro que vá no carroção, ficará melhor.
- Não, primo, preferirei ir a cavalo. Assim conversamos melhor.
- Não está querendo fazer figura, não, primo?
- Não. Ainda me garanto em uma sela.
E assim foi. Cavalgaram juntos, trocando informações e pondo a conversa em dia. Lucas falou a ele mais da situação da região, que, até aquele momento, vivia uma paz tensa, com a ameaça da expansão militar paraguaia. O orçamento do país estava todo comprometido com operações militares e gastos com defesa. Tudo indicava que haveria guerra, mas ninguém havia ousado derramar o primeiro sangue.
A conversa tornou a viagem mais curta, e, um dia depois, uma tia saudosa recebeu Robert no alpendre da estância, abraçando-o calorosamente, beijando-o nas faces e na boca, como fazia quando ele era criança
- Mas que homem você se tornou, Robert! Seu pai deve estar orgulhoso...Me conte dele, como ele está? Leonor, me fale dela, ainda se preocupa com você como se tivesse dez anos?
- Ainda, tia Nadejda. Ainda
- Me perdoe se seu tio não está aqui, é que ele está em viagem de negócios a Rio Pardo, e só estará aqui amanhã; Mas entra, vem, toma um banho, descansa, e depois conversaremos...
A conversa seria bem longa...
Então contou de sua missão na áfrica, o que tinha vindo fazer no Brasil. A família era um laço de confiança, e ele sabia que podia confiar em sua tia. A seguir, contou das peripécias na Índia e na China, e, depois, mais discretamente contou à tia a sua verdadeira missão. Além disso, contou o encontro que tivera com o Imperador e com o Barão de Penedo, na casa da condessa do Barral.
- Fizeste bem em aceitar, meu sobrinho. O Imperador tem grande estima por teu pai. Mas vamos, vamos comer aquele assado que tanto gostaste, da última vez que vieste aqui, ainda garotinho.
O assado foi comido com gosto, e Robert realmente relaxou, depois de uns bons goles de vinho.No dia seguinte, daria uma cavalgada pela região. Pois precisaria se aclimatar a ela logo, logo.
Nesse ínterim, no Rio de Janeiro, o governo inglês, mesmo perdendo a causa com arbitragem justa, recuou-se a enviar qualquer pedido de desculpas ao governo brasileiro. Isso resultou no imediato rompimento de relações diplomáticas com o Brasil, e a chamada do ministro Christie para Londres. As coisas estavam todas ao ponto de explosão, o que não demoraria a acontecer...
Robert e Lucas tomaram o caminho da porteira assim que o sol clareou. Precisava tomar conhecimento da terra, saber como viviam as pessoas e como era a sua economia. Mas, do mesmo jeito que se apaixonara pelo Rio, também caiu de amor pela campanha, era uma região que pareia não ter fim, seus campos cortados aqui e ali por árvores isoladas. Aquela paz logo seria envolvida pela névoa da Guerra..
No Paraguai, Solano Lopez armava cada vez mais o seu exército. A todos dizia que era para garantir a defesa contra qualquer ofensiva vinda de Entre-Rios e Corrientes, que viviam em luta com Buenos Aires pela Supremacia da região. Intervia inclusive nas disputas políticas entre blancos e colorados visando desestabilizar ou um lado ou outro. Mas ele tinha mais simpatias com os colorados, e fomentava o descontentamento deles.
A primeira coisa que Robert notou, em sua cavalgada pela região, era que ela era um “vazio topográfico”, pois não havia mapas precisos da região, e isso constituía um enorme risco para as operações militares. Quando perguntou a Lucas o porquê dessa negligência, recebeu uma resposta um tanto indignada dele, pois se sentia um pouco frustrado por saber que, embora houvesse um grupamento topográfico em Rio Pardo, eles nada fizeram além de medir as fazendas dos aristocratas , em vez de mapearem a região ao redor. Isso teria um custo grande em vidas.
- Mas isso é um absurdo! – comentou à larga Robert, imaginando como seria lutar em um terreno sem ter nenhum mapa.
- Claro que é, meu primo, mas o que se pode fazer? Aqui as coisas ainda são ditadas pelos caudilhos locais, todos oficiais da Guarda Nacional, mas acima de tudo caudilhos. Meu pai é um dos que pensa diferente, mas ele é uma voz isolada.
- Mas a Guarda Nacional estará preparada? Ouvi dizer que ela é apenas uma força decorativa, sem qualquer experiência
- Veja por mim, meu primo: onde acha que estou? Estou no exército, exatamente porque a Guarda Nacional é o que é: um bando de pomposos incompetentes.
Robert agora compreendia o quanto a situação era séria. Era realmente necessário dar uma verdadeira reviravolta para que o exército e a Guarda Nacional fossem forças dignas do nome. Mas seria necessário, igualmente, uma pessoa que tivesse uma grande personalidade, para que essas mudanças fossem realmente implementadas..
Dois dias depois, Lucas Almada, o pai, chegava À estância do Lagar. Trazia novidades de Rio Pardo e alguns jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, e se alegrou ao ver Robert na estância.
- Buenas, rapaz.. Vejo que o garoto que eu vi da última vez se transformou num homem.
- Apenas responsabilidades demais. Mas tudo bem. São os ossos do ofício.
Abraçou o tio e, depois, puseram-se a conversar sobre as coisas que ele via acontecer, os preparativos militares paraguaios , tudo isso era assunto de bar e de cantina. Podia-se dizer que Solano Lopez era menos sabedor dos seus planos do que muita gente que rodeava por aí. Mas ele estava alerta, assim como o comandante Brotheridge faria, mas ele estava em Recife ainda acamado. Então, resolveu agir por sua própria iniciativa.
Iria procurar o Almirante Tamandaré, a mais alta autoridade imperial da região, e iria ter uma conversa séria e talvez ele não quisesse , mas ele iria tentar receber alguém que tem algo precioso para dividir com ele.
A primeira impressão que teve sobe o Almirante Tamandaré não foi das mais positivas. Parecia mais um burocrata do que um oficial comandante, e a voz macia não parecia inspirar autoridade. Mas ele percebeu que ele era um comandante competente, apenas não era carismático, como tantos que conhecera em serviço.
- Com que então está acompanhando os planos de Solano Lopez. Não deverias estar tentando superar esse imbróglio que seu governo e o nosso criaram?
- Isso os diplomatas vão resolver, almirante. Minha missão aqui é outra.
- Sei da sua missão aqui, meu rapaz. Fui instruído a colaborar consigo no que for pertinente e possível.
- Com que então o senhor sabe dos preparativos de Solano Lopez.
- Sei tudo que preciso saber no momento, meu jovem. Ao menos seus compatriotas não nos incomodam aqui.
Ele se referia às três fragatas comandadas pelo almirante Deakins, Medusa, Argus e Ájax, que patrulhavam o Atlântico Sul Baseadas em Santa Helena, que eram famosas caçadoras de navios de tráfico de escravos na rota de Madagascar, e, agora, com o fim do tráfico, protegiam a rota para a Índia.
- Mas e as operações no Rio da Prata?
- Nos apenas monitoramos o tráfego dos barcos na foz do rio, e fazemos combate ao contrabando. Não queremos causar incidentes
- Concordo com isso,mas não seria interessante que tivéssemos um homem lá em Assunção?
- Seria óbvio demais um brasileiro, já que Solano Lopez instiga contra o Brasil. Mas um cidadão inglês, acima de qualquer suspeita...
- Entendi, e acho uma boa idéia, apenas avisarei meu primo e minha tia de que farei uma viagem pela região.
- Como queira, mas me mantenha informado.
Depois, na fazenda, ele contou a seu primo os planos que tinha engendrado com Tamandaré, e o alcance deles até Assunção. Explicou que ficaria hospedado na casa do ministro inglês, Thornton, e que sempre os manteria informados. |Descansou aquela noite, pois a viagem para Assunção seria longa e difícil...
Assunção, capital do Paraguai, era uma cidade onde a cultura espanhola e índia andavam muito juntas. Na chegada, Robert notou que a cidade tinha aquele clima de apreensão típico de lugares assaz vigiados. Notou que era seguido, mas logo foi chamado ao sair do embarcadouro.
-Señor Willingthorpe! Señor Willingthorpe! Aqui, por favor
- Quem é você? Não era esperado. Onde está o ministro?
- Está naquele coche, señor.
O empregado carregou as bagagens de Robert e empoleirou-se na traseira do veículo, enquanto Robert entrava era recebido por Sir Andrew Thornton, representante britânico em Assunção.
- Fez boa viagem, capitão? Espero que sim
- Muito boa, Sir Andrew. Mas notei algo estranho, como se...
-Estivesse sendo seguido? Esbirros de Lopez. Todo estrangeiro que chega, mesmo nós, que temos investimentos e estamos mecanizando seu país, é vigiado por sua policia secreta, os chamados “orejas”. Não se engane com o país. É um local extremamente fechado.
Enquanto a carruagem se dirigia para a casa se sir Andrew, Robert pôde sentir a atmosfera. O país, sob dois ditadores, tinha ficado isolado, sem muita comunicação a não ser pelos rios, que eram as artérias comerciais mais utilizadas da região. Sob Francia e Carlos Antônio Lopez, pai de Solano Lopez, o país tinha se voltado pra dentro, e não havia nem mapas precisos, pois Os ditadores temiam a facilidade de invasão, e procuraram fazer do país um desconhecido, um borrão na geografia da região.
Quando chegaram, Sir Andrew convidou Robert a partilhar do chá antes que fossem tomar banho. Sabia que tinha de conversar com esse enviado, pois tinha informações preciosas a passar, antes que fosse tarde demais. Depois que o chá foi servido, conversaram inicialmente amenidades, e, entre elas, sempre trocavam alguma informação. Assim, Robert soube que, mesmo dentro da casa eles eram vigiados, pois Solano Lopez não confiava em ninguém, e mesmo entre os empregados havia “orejas”.
- Bem, haverá um jantar esta noite, em homenagem aos diplomatas no Palácio Presidencial. Ele gosta de fazer isso pra conhecer os que servem no país, para sentir sua simpatia ou não pelo governo. Mas lhe aviso. Ele é um homem difícil, e tem uma mulher que é uma verdadeira eminência parda. Você a conhecerá na festa.
- Quero estar a par de tudo, pois tenho muito o que relatar ao governo
À noite, envergando uma casaca civil, acompanhou Sir Andrew até o palácio presidencial, onde um fluxo de carruagens e tílburis já se amontoavam em frente da entrada principal, entrando sempre na ordem de três por vez. Eram anunciados, e depois adentravam ao salão, onde , postado num pedestal alto, com baldaquino, estavam o presidente e a mulher que Sir Andrew havia comentado. Um a um, os diplomatas foram se aproximando e rendendo respeitos a Solano Lopez e a Elisa Lynch, a cortesã irlandesa que ele trouxe ao Paraguai e que já amealhara uma imensa fortuna em terras e jóias, algumas delas ostentadas por ela naquele momento.
- Señor Presidente, permita representar Robert Willingthorpe, representante comercial da Empire Steel Company
- Mucho Gusto, señor Roberto – disse em espanhol, embora se soubesse que ele dominava perfeitamente o inglês – Bienvenido al Paraguay
Robert viu Solano Lopez mirá-lo de alto a baixo, como que a analisar sua figura, tentando saber se ali estava um representante comercial ou algo mais...Depois, dirigiu-se para o centro do salão, e fez um sinal para a orquestra, posicionada no andar de cima, para que a música se espalhasse. Os acordes de uma mazurca encheram o salão, e os pares começaram a dançar. Sir Andrew iniciou uma conversa com o embaixador americano, e Robert observava o salão, quando foi interpelado por um toque suave em sua manga.
- A curiosidade intrépida é uma característica inglesa? – disse uma jovem de olhos e cabelos negros, que emolduravam o rosto trigueiro.
- Sempre quando nos sentimos adversos. Nos leva pra frente.
- Leve-me para dançar. Ficará melhor para falarmos. Confie em mim
A mazurca passou a uma valsa, onde ele finalmente ficou frente a frente com aquela jovem mulher, de um tipo diferente de beleza, os traços hispânicos encontrando a tenacidade dos índios.
- Não tivemos ainda a oportunidade de sermos apresentados, señorita...
-Maria Isabel Pulido Almará
- Robert Shatov-Willingthorpe
- Sei quem você é. Meu tio foi avisado da sua vinda
- Como assim?
- Seu superior imediato não é o comandante Brotheridge?
- Sim, é ele, mas como sabe de tudo isso?
- Meu pai era um dos informantes dele aqui. Mas ele teve de fugir para não ser fuzilado
Na dança, para não atrair curiosidade, ela contou do pai, que era um político local, Julian Pulido, que fazia oposição a Lopez, até que , preso, teve seus bens confiscados, e ela teve de viver com um tio. Depois, ajudado pelos ingleses, o pai dela tinha conseguido fugir, levando uma parte da fortuna que Lopez não tinha conseguido pôr as mãos, e usando-a para financiar a filha e uma rede de agentes antilopiztas.
- Aqui não é seguro. Todos os empregados do baile são “orejas”. Lopez não confia em ninguém. Vamos conversar amanhã. Meu tio enviará a você um convite pra almoçar. Lá, cavalgaremos e poderemos nos falar melhor
- Aguardarei, então.
Depois, ao recolher-se pra dormir, não pôde deixar de pensar nela. Era uma bela mulher, de colo farto, ombros sensuais e voz idem. Era uma espécie de bálsamo na crueza daquela missão. Lembrava dos cabelos e olhos negros, das sobrancelhas em arco, pronunciadas, que davam a ela um igualmente sensual toque de autoridade. Era completamente diferente de sua mãe, Leonor, que possuía aquela altivez melancólica típica das mulheres portuguesas, que enganava quem observasse superficialmente. Maria Isabel tinha o olhar firme, direto, de quem parecia estar acostumada a comandar, e jamais ser questionada. A ansiedade o dominou, e, por muito pouco, não passou a noite em claro...
No dia seguinte, depois de cumprir a agenda com Sir Andrew, pediu que selassem um cavalo, pois iria se dirigir à hacienda dos Pulido, que ficava a umas duas milhas da cidade. Era um lugar aprazível, situado à beira do rio, com as plantações de mate se desdobrando na encosta. Sabia que estava sendo seguido, pois notou o cavaleiro pouco depois da saída da cidade. Ficou a imaginar como vivia o povo, com essa constante vigilância. Assim que chegou ao portão da hacienda, foi saudado por Ernesto Pulido, tio de Maria Isabel, um dos grandes fazendeiros de mate da região.
- Saludos, señor Roberto! Bienvenido!
- Saludos, señor Pulido!Es un gran honor adentrar su casa
- Mi casa es su casa, señor Roberto. Bienvenido.
- Gracias, señor Pulido
-Por nada. Mucho gusto en tenerlo en mi casa

Depois das apresentações, Ernesto o convidou a entrar , e, já dentro da casa, começaram a conversar em inglês; Ernesto explicou a situação do país, e os contatos da rede antilopizta, que tinha ramificações nos países vizinhos. Eram paraguaios exilados por Lopez, para silenciar a oposição a ele. Alguns foram mesmo assassinados, pois eram as vozes mais eloqüentes. Alguns minutos depois, Maria Isabel apareceu, usando um vestido de cor violeta, com uma faixa branca na cintura.
- Hola, Roberto¬! Venga! El Almuerzo se está servido!
- Gracias, Maria Isabel
O almoço foi regado a um excelente vinho, e, enquanto almoçava, Robert prestou mais atenção nela. Tinha curvas sinuosamente suaves, mas por detrás delas parecia existir uma força que, longe de afastar, cativava. Cada gesto parecia impregnado dessa força, mesmo os mais simples, dando a ela uma atmosfera intensamente apaixonante. Tal olhar não passou despercebido a Ernesto Pulido, que, de si para si, se divertia com a corte sem palavras que Robert fazia à sobrinha...
Depois do almoço, Maria Isabel e Robert cavalgaram juntos, ela a mostrar a extensão da fazenda, as plantações de mate – Ernesto fornecia mate ao exército, e , numa raridade, era bem pago por Lopez, que costumava ser mau pagador – e o riacho de águas cristalinas que movia a roda d’água da fazenda. Conversaram sobre várias coisas, sobre a Inglaterra, sobre a vida dela, sobre as missões dele na África
- Com que então é um aventureiro, Robert
- Apenas uma pessoa viajada, creio eu.
- As pessoas viajadas geralmente dão vazão a suas paixões. Você faz isso? – Perguntou, a intimidade já nascida da proximidade.
- Vivo a vida sem muitas perguntas. Já é trabalhoso viver, quanto mais questionar a vida.
- Isso são palavras que meu pai diria. Ele é assim como você, Robert. É mais importante viver que questionar como se vive.
Voltaram da cavalgada no final da tarde, e Ernesto convidou-o para passar a noite, pois, mesmo com a alardeada de que “no Paraguai não havia bandidos”, era melhor pernoitar e, na manhã seguinte, seguir viagem de volta a Assunção. Robert foi instalado no quarto de hóspedes, onde havia uma janela na qual ele podia observar o rio correndo por entre a propriedade. Recostou a cabeça no travesseiro e se sentiu, como há muito não se sentia, feliz, pois, de alguma forma, ela adentrara em seu coração. Não tinha tido grandes aventuras amorosas. Claro que houve os casos passageiros com as moças de sua região, alguns flertes nas cidades coloniais e ocasionalmente, uma ou outra modelo, mas jamais se apaixonara.
Súbito, ouviu um ruído de passos, lentos mas decididos. Vinham se aproximando com calma, cuidadosamente, do seu quarto. Será que alguns dos empregados do señor Ernesto seria, também, um “Oreja”. Puxou a pequena pitola do bolso secreto da sobrecasaca e esperou..Uma silhueta parecia definir-se nas frestas da porta, e, quando a porta ia se abrindo lentamente, Robert, num puxão, trouxe a figura quarto adentro, derrubando a candeia que carregava. Mal se recuperou da investida, reconheceu a figura de Maria Isabel, apenas em roupas de dormir.
- Está com medo dos “orejas”, Roberto? Não se preocupe, não sou um deles.
- Confesso que estou receoso, depois de tentarem me seguir, e notei que nos seguiam quando estávamos cavalgando.
- Sei disso, mas vem, e não tenha mais medo..
Ela o envolveu num abraço longo, forte, que o fez se render ao que há muito já era parte dele... Ela, mais que ele, parecia conduzir cada toque, cada vontade, cada beijo. Ele quis dizer algo, mas ela o calou com o mais longo dos beijos, e recebeu toda a intensidade dele dentro dela, a cada estocada mais forte, mais intensa, ela absorvendo cada parte dessa intensidade, como um torvelinho a carregar tudo dentro de si, com os ventos fortes do amor...então, os dois juntos se deram, e um abraço mais forte, um beijo mais intenso simbolizou a união dos amantes, a semente dele fazendo parte das entranhas dela....
No dia seguinte, ele tomou o caminho de volta a Assunção, mas já não era mais o mesmo homem. Era um homem apaixonado, coração pertencendo, agora, a Maria Isabel, o que fazia a ternura invadir seu peito e se alastrar ser adentro...Mas seus instintos não o deixavam, e logo percebeu que estava novamente sendo seguido, mas de forma mais próxima. Esporeou o cavalo para ter mais velocidade, e rapidamente dobrou uma encosta da ravina, e, após esconder a montaria, subiu a encosta, vendo ao longe o outro cavaleiro que o seguia. Quando este se aproximou, ele pulou e derrubou-o da sela, tirando a pistola da sobrecasaca e apontando para a cabeça do homem.
- Porque me siegues, hombre?- disse em espanhol – Quien es tu jefe?
-Òrdenes – respondeu – de El Supremo – usou um dos títulos pelos quais Solano Lopez era conhecido – Los extranjeros sán espias.
Ele não podia fazer nada. Seu segredo poderia ser descoberto, e os riscos para Maria seriam terríveis. Usando a própria corda do chapéu do homem, o estrangulou, e jogou o corpo no rio, onde, se sabia , era infestado de piranhas. Cavalgou mais rápido e chegou a Assunção, onde sir Andrew o esperava, e mais alguém. Logo reconheceu os bigodes e a barba espessos do comandante Brotheridge, que foi o primeiro a cumprimentá-lo
- Parabéns, meu caro, venho aproveitar esta cidade para pormos a conversa em dia. Sir Andrew me falou muito de você e de seu desempenho aqui. As informações que me transmitiu são muito preciosas. Uma boa notícia: foi promovido a comandante.
- Obrigado, Comandante Brotheridge
- Somos colegas agora, rapaz. Chame-me de Lionel
No jardim, um dos poucos locais mais reservados da casa, Robert contou de seu entrevero com um dos esbirros de Lopez, e que teve de matar o tal. Sir Andrew lamentou, pois qualquer coisa que provoque a ira do ditador teria represálias terríveis, Robert pensou em Maria Isabel, e temeu por ela...
Nos meses que se seguiram , o contato entre eles ficou mais forte, mais ardente, onde cada um parecia antecipar os desejos do outro, em intensidade e vontade. Ele igualmente se desempenhava nas suas funções d inteligência, ora fazendo contatos dentro de Assunção, ora nas províncias. Descobriu que Solano Lopez governava com um estado policial de maior envergadura que ele imaginava, com agentes em todos os cantos, monitorando especialmente os estrangeiros, mesmo os que estavam trabalhando no país, especialmente os brasileiros, alvo das maiores campanhas de Lopez.
Numa das visitas a Ernesto e Maria Isabel, ele ventilou a possibilidade de tirá-los de lá, pois a situação estava recrudescendo, e vários diplomatas e oposicionistas de Lopez estavam sendo presos.
- Mas para onde iremos? Não temos outro local além desta fazenda.
- Minha tia tem uma estância, a Estância do Lagar, a algumas milhas de Porto Alegre, na província do Rio Grande, a uns dez dias de viagem, parte pelo rio.
Ernesto pensou um pouco, matutou, depois respirou fundo, olhando as terras da varanda da casa. Depois, encarou seriamente os dois e aquiesceu.
- Assim seja...Se Deus assim quiser, voltarei a ver minhas terras.
E assim foi. Ernesto Pulido, Maria Isabel e muitos outros deixaram o Paraguai, agora um feudo pessoal dos Lopez. Tudo estava armado para o confronto, faltava apenas, como em todos os conflitos, algo que deflagrasse, a centelha final...
Na estância do Lagar, as coisas estavam tensas, agitadas, com a volta de Lucas de rio Pardo, em suas viagens de negociação do gado, que já havia suspeitas de uma grande movimentação de tropas paraguaias na região de Corrientes, em vias de invadir a região. Robert passara alguns dias supervisionando a instalação de Ernesto e Maria Isabel nos aposentos de viagem da estância, reservados para hóspedes em passagem. Robert quis se responsabilizar pelos Pulido enquanto estivessem lá, mas Lucas se recusou terminantemente.
- Meu sobrinho, se eles vem de coração, de coração ficarão, e não se fala mais nisso. Agora vá cuidar da sua tia, que morre de saudades de ti.
Ele se aprestou a ver a tia, que simplesmente o esperara este tempo todo, Nadejda parecia ainda mais bela na maturidade, com madeixas grisalhas já aparecendo no cabelo preso em coque. Mas ainda assim, ela era de uma essência rara, daquelas pessoas que sabiam e sentiam cada coisa no coração e na alma.
- Com que então meu sobrinho se apaixonou... Quem é a felizarda, posso saber?
- Acho até que a senhora já sabe, minha tia
- A sobrinha do senhor Pulido? Ela é uma bela moça, de caráter forte.
- Sim, minha tia, e eu a amo.
- Isso está na sua cara. Mas me diga, como está meu irmão , seu pai?
- Bem, as notícias que recebi dele na Inglaterra são que ele irá se reformar
- Para ele, não é nada bom. Seu pai sempre foi um homem do mar, jamais aceitará ficar em terra.
Conversaram mais e mais sobre Maria Isabel, ela a notar o brilho dos olhos dele, ele a falar do seu amor por ela, ela a se lembrar do amor do marido intenso mesmo nestes anos. Ela não sentia saudades da Inglaterra. Sabia que aquele lugar era seu lugar, que aquela era a sua casa, sem mais lembranças de outras vidas. Minutos depois, Maria Isabel chegou na sala, e os olhares se dirigiram pra ela.
- Perdones, señora, no tuve la intención
- No hay lo que perdonar, mi flor. Estábamos a hablar de ti
- Mas pero…
Então ele falou da conversa com a tia, e de quanto a amava nessa vida, e que não poderia mais viver sem ela.. Maria Isabel e Nadejda trocaram um olhar cúmplice, no que uma sabia do coração da outra, e esse olhar valia mais do que mil palavras...
O casamento se deu debaixo de uma figueira florida, no terreiro da estância, e teve a presença de Lucas, que estava de serviço em Porto Alegre, vindo com a esposa, Marilia, a filha do seu comandante de regimento, coronel Campolargo. Maria Isabel vestia o vestido de noiva de Nadejda, que o cedeu pra dar sorte, enquanto que Robert se vestiu à maneira da região, de chiripá de listras e ceroulas bordadas, com botas de fole e chapéu de barbicacho. A cerimônia foi celebrada pelo padre Winter, da paróquia vizinha, e foi depois uma festa só, tão divertida que ninguém se deu conta que os noivos escaparam discretamente...Nadejda se sentia feliz, pois mais uma vez viria um amor para unir a família...
E, finalmente, a centelha havia aparecido...
Depois de dois anos de paz tensa, a chama do conflito foi acesa.
Ao seguir viagem para assumir o governo da Província de Mato Grosso, o Presidente da Província, Frederico Carneiro de Campos, foi detido pelas autoridades paraguaias e o seu navio, o Marquês de Olinda, apresado. As autoridades paraguaias alegaram que o navio fazia contrabando e que a viagem do Presidente da Província era apenas cobertura. Uma delegação brasileira se dirigiu a Assunção, para tentar negociar uma solução diplomática, mas foi recebida friamente e convidada a se retirar, e os diplomatas considerados persona non grata no país, com a assertiva de que já existia “estado de guerra”. O maior conflito militar da América do Sul estava começando, e os Willingthorpe teriam seu papel nele...
No momento em que a guerra começava, Robert estava na estância, quando recebeu duas mensagens, uma do comandante Brotheridge, e outra do Alm. Tamandaré; abriu primeiro a de seu comandante, que dizia , em tom lacônico:
“Você estava certo e eu errado. Agora você observador do conflito”. Instruções acompanhar Almirante Brasileiro. Nada mais, Brotheridge”
A mensagem de Tamandaré era mais lacônica ainda. Dizia apenas pra se apresentar em Porto Alegre o mais rápido possível, para fazer parte, como observador, do estado maior do almirante. Quando chegou, Lucas já o esperava, pois estava reunindo os esquadrões de cavalaria da Guarda Nacional, e , desespero à parte, isso o consumia demais, pois simplesmente os batalhões e esquadrões se recusavam a prestar serviço, pois alegavam que a Guarda servia apenas a “questões internas”, e não à segurança externa, o que, diziam eles, era “problema do exército e da marinha”. Lucas não ficou surpreso.
A Guarda Nacional, criada por decreto do Regente Diogo Antônio Feijó, era um corpo militar formado para servir como força auxiliar, no combate às rebeliões que grassavam no Norte e no Sul do País. De início, era uma organização levada a cabo pelos políticos provinciais, que hauriam para sim postos e poder, criando uma organização que iria perdurar por mais de cem anos, transformando os senhores rurais, que compunham seu oficialato, em poderosos mestres político-militares, os “coronéis”. Amolecida por esses aristocratas, a Guarda se tornou uma força amorfa e acéfala, mais interessada em perpetuar poder político do que ação militar. Assim, se recusaram a entrar em ação, não deixando a Lucas outra opção senão recrutar os poucos soldados existentes, cuja lealdade era questionável, pois, além de não receberem o soldo havia três meses, não havia uniformes e munição. Mas já era tarde...
A máquina de guerra de Lopez já se movia. Seus alvos eram o Rio Grande do Sul e Mato Grosso. Mas pareciam muito mais uma turbamulta de saqueadores do que um exército invasor...
Ainda em Porto Alegre, Robert se reuniu com o Almirante Tamandaré, que coordenava as operações navais. Já se havia feito o bloqueio do Prata, impedindo navios paraguaios de terem acesso ao mar. Mas era preciso bloquear e controlar o curso baixo do rio, mas os oficiais se depararam com uma realidade dura. Não havia mapas hidrográficos detalhados da região, nem mesmo topográficos. Francia e os Lopez, na ânsia de isolar o país, haviam proibido qualquer tipo de expedição geográfica ao Paraguai, com receio de que os mapas fariam a facilitação das invasões . A campanha começaria com os aliados – que já se sentavam à mesa de negociações – geograficamente cegos...
Na estância do Lagar, a situação era apreensiva. Lucas, o pai, já havia voltado de vender gado em Rio Pardo, e já tinha visto a movimentação das tropas e de material. Já havia informes de Lopez avançando rapidamente, eliminando uma colônia militar em Mato Grosso e ganhando terreno em direção a Uruguaiana, que, embora ficasse a certa distância do Lagar, era um lugar próximo o suficiente para se ficar alerta. Nadejda antes dele, já havia providenciado a estocagem de alimentos e viveres no Torreão, para qualquer caso. Os empregados já haviam recebido ordens, e estavam alertas, piquetes sempre percorrendo os limites da fazenda, a fim de relatar qualquer movimento das tropas paraguaias.
Maria Isabel ajudava Nadejda em tudo, sendo uma segunda em comando naquela azáfama toda. Aprendera a admirar a irmã de seu sogro, a seguir-lhe os passos onde quer que fosse, muitas vezes tomando à frente das coisas. Queria se ocupar, até porque, quando parava, o pensamento a levava até Robert...Amava aquele homem, mais do que qualquer coisa na vida...
A invasão do território brasileiro se de em dois eixos: por Mato Grosso e por Uruguaiana, no rio Grande do Sul. O que Lucas mais temia havia acontecido: sem tropas preparadas, os paraguaios passaram rapidamente a fronteira e se concentraram em MatoGrosso, que era a mais isolada das províncias do Império. No Rio Grande do Sul, as tropas paraguaias facilmente contornaram os arroios que circundavam a região e entraram na cidade, mas foram expulsos, e então montaram uma estratégia de cerco...
Enquanto isso, os aliados, Argentina Uruguai e Brasil, se organizavam e montavam suas cadeias de comando. Tamandaré ficou responsável pelas operações navais, já que a marinha brasileira era potencialmente a maior; Mitre e Flores se revezaram, nas primeiras fazes da guerra. Tinham uma difícil tarefa pela frente: transformar uma turbamulta desordenada em uma força de combate.
Na estância, Nadejda e Maria Isabel organizavam a estocagem de provisões, arranjavam a colocação da pólvora e das munições e se preparavam para o que desse e viesse. Os piquetes de peões davam conta dos movimentos ao redor, tentando ver os paraguaios antes que fossem vistos. Depois de alguns dias , a Estância do Lagar estava preparada para deter qualquer paraguaio afoito que se aventurasse. Maria Isabel , por um instante, pareceu cambalear. Sabia o que estava acontecendo. Suas regras não tinham chegado, e ela era precisa como um relógio.
- Com que então esperas um filho, minha flor? `- Perguntou Nadejda, ansiosa. – desde quando sabes?
- Minhas regras não vieram, mas quis me certificar mais pra poder dizer. Mas Nadejda, ter esse filho, em meio a essa guerra...
- Na minha família tem sido assim, Maria Isabel Eu mesma nasci em meio a uma batalha, na qual meu pai morreu.
- Meu Deus! Espero que não seja assim com meu Robert...
-Queira Deus não ser – pensou ela, não sem certa apreensão
No estado-maior de Tamandaré, Robert constatava uma dura realidade: mesmo a marinha brasileira possuindo belonaves modernas e de bom poder de fogo, e já efetivado o bloqueio do Rio da Prata, não poderiam avançar para apoiar as tropas, principalmente porque, mas adiante, não se conhecia a calha do rio, e, dentro do território paraguaio não havia mapas detalhados, e nem um levantamento hidrográfico, o que queria dizer que se teria de confiar em prático e guias locais, cuja lealdade era sempre questionável. Juntando isso, era uma situação caótica, mas ainda assim Tamandaré resolveu mandar uma força de fragatas rio adentro, a fim de aprofundar o bloqueio, sob o comando do Almirante Barroso
- Vai com ele. È um marinheiro de escol e um comandante bem capaz – disse Tamandaré – Mantenha-me informado.
Assim, Robert Shatov – Willingthorpe começaria sua participação na guerra...
No começo, nenhum dos exércitos aliados era bem equipado, treinado e muito menos organizado. No Brasil, as tropas provinciais e a Guarda Nacional eram despreparadas e muitas unidades se recusaram a combater. Em muitos lugares, o recrutamento forçado era regra, e ao lado dos Corpos de Voluntários da Pátria – criados para substituir os rebeldes Guardas Nacionais – também havia os “Voluntários da Corda” , soldados trazidos pelo recrutamento forçado, de todas as partes do país, sem treinamento nem equipamento, o que aterrorizava o Marechal Polidoro Ferreira, ministro da Guerra
- Esses pobres-diabos nem sabem disparar um fuzil! Vão se escafeder quando virem o primeiro paraguaio!
Nas proximidades de Uruguaiana, Lucas Almada comandava um piquete de cavalarianos que, como ele, era habituado ao rigor da Campanha, e percorria quilômetros sem arregar da sela. Havia observado os paraguaios de posição privilegiada, acompanhando todos os movimentos. Tinha ordens expressas de não se engajar em combate, mas era outro piquete, e quaisquer prisioneiros podiam ser fonte de informação. O piquete paraguaio se movia sem preocupação, aparentemente desconhecendo a presença de tropas brasileiras naquele local. Não portavam lanças como os cavalarianos de Lucas, mas clavinas, penduradas num boldrié ao lado da sela. Ele estudou o grupo. Eram doze homens, contra quatorze dos seus. Mas se fossem vistos antes do tempo, os inimigos poderiam sacar suas clavinas e acabar com a aventura.
Decidiu, então, pelo contorno. Havia um grupo de umbus que disfarçava seus cavalos e homens, e eles contornaram por aquela passagem. Agora estavam a mais ou menos dez passos dos paraguaios, mas ele não deu ordem de ataque, até que estivessem de prontidão. Os inimigos estavam mascando tabaco, sem se aperceber que logo cairiam em uma armadilha. Quando chegaram a uma distância ideal, Lucas desembainhou o sabre e gritou “Carga!” e os catorze cavalarianos atacaram, lanças e sabres em riste, pegando os paraguaios de surpresa, sem tempo de sacar suas clavinas. Muitos foram abatidos a pontaço de lança, enquanto outros caíram sob os golpes de sabre de Lucas. No final, apenas três dos doze sobreviveram, isso porque largaram as armas e se renderam. O butim – tabaco e armas – foi dividido entre os homens. O interrogatório revelou que os paraguaios não tinham como receber reforços, além de estarem esgotando os víveres da cidade. O comando ia gostar de saber disso
Na estância, todos os cuidados eram tomados, com os peões alerta a qualquer tentativa de invasão. Lucas comandava, junto com Nadejda, as providências a ser tomadas. Ele olhava para ela e se lembrava da jovem que conhecera na Inglaterra, das vezes que cavalgavam juntos, das tantas vezes que se amaram...Parecia que nada mudara; era uma mulher de forte personalidade, mesmo como mulher tinha aquele quê de intensidade que fazia com que ele a amasse mais ainda...Ela ficara ainda mais bela na maturidade, com olhos mais intensos e expressão mais e mais apaixonante. Ele sabia que, enquanto vida ele tivesse, ele pertenceria a ela...
Robert via a preocupação no rosto do Almirante Barroso. A progressão da flotilha era lenta demais, pois não se conhecia a calha do rio, e era-se obrigado a seguir um patacho de menor calado, que ia fazendo a sondagem da calha , para o curso seguro da flotilha.. Robert informara ao Almirante Barroso que os paraguaios teriam de confrontá-los mais adiante, pois tinham instalado chatas armadas nos largos do arroio Riachuelo, para interceptar a flotilha. As chatas armadas eram um perigo porque, tendo baixa silhueta, poderiam disparar antes que fossem localizadas e silenciadas. Eram ancoradas nas curvas do rio, de modo que só fossem observadas na proximidade, o que as tornava muito perigosas. O almirante dobrou a guarnição das gáveas, atentas a qualquer outro sinal.
Maria Isabel contava os dias com uma determinação ferrenha. Amava Robert, e não queria que nada detivesse aquele amor, que estava sempre além dela, além de sua própria compreensão. Nadejda observava-a com ar de lembrança, pois era assim mesmo em seu amor por Lucas. A gravidez ainda não era muito visível, mas ela já sentia o vigor do fruto que trazia em seu ventre
- Tem a força de do pai – dizia ela.
A flotilha se aproximava do Arroio Riachuelo, observando cada curva de rio, que podia conter desde minas até mesmo as temidas chatas armadas, mas até então nada havia se visto. A flotilha paraguaia estava do outro lado do arroio, esperando... Teriam o elemento surpresa, pois atacariam antes que a frota brasileira tivesse tempo de se organizar. Robert estava no tombadilho do Amazonas, a nau capitânia da flotilha, seguida de perto pela Jequitinhonha, que navegava cautelosamente. Todas as peças se posicionavam para a batalha...
Por um erro crasso, os paraguaios perderam o elemento surpresa Um dos barcos da frota paraguaia, o navio brasileiro capturado Marquês de Olinda disparou um tiro contra o Amazonas, sem muita gravidade, o que alertou a todos e deu tempo para a flotilha se preparar. A frota paraguaia, então, atacou, com uma velocidade que surpreendeu, cercando o Belmonte, o Jequitinhonha e o Paranaíba na passagem de Rincón de Lagraña. Os navios brasileiros lutaram bravamente, não se rendendo nem quando tiveram de encalhar para não afundarem. Cercado pelos três lados, o Parnaíba lutava para sobreviver. Quando um marinheiro paraguaio tentou arriar a bandeira imperial, um marinheiro brasileiro, Marcílio Dias, matou o paraguaio a golpes de cutelo, mas também ficou seriamente ferido. A vantagem parecia pender para os paraguaios...
No convés do Amazonas, o almirante Barroso gritava ordens, tentando disciplinar os homens. Via a balança pender para o lado dos inimigos, quando, de repente, chamando seu prático, um argentino chamado Guastavino, deu uma ordem seca
-Arremeta pra cima deles! Agora!
-O senhor tem certeza? Questionou o prático
- Calro que tenho! Sinaleiro!
- Sim, almirante
- Pendure no penol da caranguejeira a seguinte mensagem: “O Brasil Espera Que Cada Um Cumpra O Seu Dever”, agora mesmo!
E assim se fez. Com o sinal hasteado, a capitânia brasileira, se valendo de seu calado menor e ser movida por rodas, começa a abalroar os navios paraguaios, adernando-os e forçando-os a encalhar. Robert comandava uma turma de abordagem, pronta a capturar quaisquer navios menores que forçassem passagem. Ocasionalmente trocava tiros com o pessoal de terra, que ficava entocado na margem
- Ao que eu saiba, capitão, o senhor é tão somente um observador – Disse, em tom de ralho, o almirante Barroso.
- Dessa maneira observo melhor, almirante – respondeu
- Então apronte-se , que ainda não acabou!!!
A ação do Amazonas mudou o rumo da batalha. Antes em vantagem, os paraguaios bateram em retirada, deixando a passagem de Rincón de Lagraña livre, com a flotilha brasileira em vigilância para bloquear aquela parte do rio. Robert supervisionava os danos. Afora os encalhes, as caldeiras tinham ficado intactas, não tinham sido atingidas seriamente. Os brasileiros perderam 124 homens. A flotilha não tinha sido completamente destruída, mas aquela ação isolou o Paraguai do exterior, com o bloqueio da frota brasileira. Mas ainda havia a rede de fortaleza nas passagens restantes, de Estero Bellaco para diante, essencialmente Humaitá, que protegia Assunção.
- Então, meu jovem, acho que vais ter um relatório cheio pra escrever – disse em tom peremptório o Almirante Barroso – Vamos ver aonde nos leva essa guerra.
Só depois que Robert assentou do trabalho de controlar as avarias e receber os relatórios de seção, é que ele havia notado que sofrera um ferimento à bala no braço esquerdo. O cirurgião de bordo cuidou disso, retirando um bom pedaço de estilhaço de artilharia de seu braço, enfaixando-o cuidadosamente.
Depois desse episódio, a guerra chegou a um impasse, pois havia um conflito entre os oficiais da Tríplice Aliança, pois havia muita animosidade entre eles, especialmente entre argentinos e uruguaios. Somente com achegada dos generais Luís Alves de Lima e Silva, Barão de Caxias, e Manuel Luis Osório, é que se chegou a um ponto de disciplina. Soldos foram pagos, soldados reequipados e armados, e sofreram um exaustivo treinamento para se adequarem às condições de batalha. A guerra tomava novo rumo...
Cada vez mais adiantada, a gravidez de Maria Isabel era acompanhada de perto por Nadejda, e cada vez mais ela sentia o adiantado do estado dela. Já se haviam passado oito meses, e logo aquela criança viria...

Nas cercanias de Uruguaiana, o Capitão Lucas Willingthorpe Almada continuava a sua guerra de fustigação contra os paraguaios que cercavam a cidade. Já tinha havido notícias de um exército imperial rumando pra lá, a fim de levantar o cerco, mas ainda não era tempo. Os paraguaios não se aventuravam mais tão longe, e os cavalarianos chegavam cada vez mais perto, fazendo ataques surpresa e se retirando depois de provocar o maior numero de baixas possível.
Maria Isabel, finalmente, deu o primeiro sinal de que seu filho já ia nascer. Uma contração, seguida de um jorro forte, era o sinal de que mais um Willingthorpe chegaria ao mundo. Ela olhou firme nos olhos de Nadejda, que respondeu ao olhar de temor com outro de confiança, e chamou Militina, a mais experiente parteira da estância, para ajudá-la. Aquilo era assunto de mulheres, e disso os homens de nada entendiam. Ao contrário, só atrapalhavam...
Robert voltara ao estado-maior de Tamandaré, entregando o relatório, enquanto o comandante o lia, cofiando a barba branca. Parecia mais um vigário anglicano do que um almirante. Mas aquela expressão escondia uma pessoa de caráter ferrenho e uma personalidade idem, sempre assertivo, o que causava problemas, de vez em quando.
- Com que então o Barroso deu – lhes uma surra de exemplo. Muito bm feito, meu jovem.
- Almirante, com todo o respeito, ainda faltam as fortalezas ao longo do rio, especialmente Humaitá.
- Esse assunto já está resolvido, meu jovem. Vamos posicionar a frota e destruir em duas horas as baterias daquela fortaleza, e Assunção será nossa !
- Almirante, posso ser franco?
- À vontade, jovem.
- O terreno ali é instável e difícil para os cavalos, e somente soldados a pé passam, mas eles terão de contornar uma área de alagados –mostrou a marca no Mapa. Esta aqui
O nome do marco se chamava Curupaiti.
Na estância , a azáfama era por conta do nascimento do filho de Maria Isabel, que movimentava Nadejda, Militina e duas outras mucamas, trazidas do serviço de casa pra ajudar. Ela era uma mulher corajosa, mas havia momentos m que as forças lhe faltavam, e era Nadejda que comandava tudo, ajudando, incentivando ou mesmo ralhando um pouco com ela, quando ela enfraquecia
Os preparativos para a Batalha de Curupaiti já hvaiam comçado. Parte d frota se deslocou para posições próximas a Humaitá, onde concentrariam seu fogo. Do outro lado, as tropas comandadas por Mitre, presidente da Argentina e grande líder político e militar, avançavam em meio aos canhonaços. Mas ainda os esperava algo pior. Escondidos em trincheiras rasas, as tropas paraguaias aguardavam apenas um sinal para começarem a fuzilaria. Os soldados aliados avançavam no pântano com dificuldade, com água até quase às coxas, alguns afundado com o peso dos equipamentos. A um sinal, a fuzilaria tomou conta do campo. Os paraguaios, conhecedores do terreno, passaram a atirar de cima pra baixo, abrindo grandes claros nas companhias e pelotões.Onda após onda era derrubada pelo fogo certeiro dos fuzis paraguaios A derrota dos aliados foi atroz...Cerca de três mil homens perderam a vida, entre brasileiros, argentinos e uruguaios. Humaitá ainda resistia, e seria difícil tomá-la...
Maria Isabel completara o trabalho de parto. Mais uma vez, dois gêmeos para o mundo dos Willingthorpe. Nadejda segurava um dos bebês, uma menina, que era a expressão dela própria, ou mesmo da condessa Ludmila. O menino chorava forte, recebendo o colo da mãe e se acalmando lentamente...
- Como serão seus nomes, Maria Isabel?
- Ludmila, para a menina, e James, para o menino. Uma homenagem à avó de Robert
Nadejda sorriu. Mais dois Willingthorpe para agitar este mundo, pensou ela..
A guerra prosseguia num impasse, não pelo fato dos exércitos aliados serem derrotados por Lopez, ou que este se impunha, mas era assim por uma combinação de fatores geográficos e de logística, pois, não dispondo de mapas precisos, eram obrigados a confiar em guias locais sem muito crédito, e o avanço das tropas era caótico, pois não havia coordenação nem sintonia entre os exércitos.
Em Uruguaiana, os Paraguaios passaram de sitiantes a sitiados, as reservas da cidade minguando e em qualquer chance de receberem reforços. Lucas Almada, comandando uma seção de cavalaria, fustigava constantemente a linha de suprimentos do inimigo, não deixando que se abastecessem. .
Enquanto isso, Robert, integrando o staff do Almirante Tamandaré, enfrentava um dilema. As ordens que tinha limitavam seu papel ao de observar, mas ele sentia falta de alguma ação... Tinha visto ação em Riachuelo e Curupaiti, e perdera um amigo lá, Dominguito Sarmiento, filho de um lugar-tenente do General Mitre, comandante das tropas argentinas. Recebia, naquele momento, a mensagem da derrota de uma grande força paraguaia em Tuiuti, numa batalha de atrito em que os paraguaios fizeram um ataque surpresa, mas a formação dos aliados estava a postos, rechaçando cavalaria e infantaria.
Na estância, as coisas continuavam em estado de alerta, mas isso era suavizado com a presença dos gêmeos, que eram sempre brincalhões e divertidos. Nadejda se esmerava ainda mais no cuidado com os bebês, como se fossem seus próprios filhos. Via-os crescer, serem crianças, pois nessa fase o exercício da infância é fundamental.
As batalhas batiam o exército paraguaio, mas não cortaram seu aceso a Assunção, protegido pela fortaleza de Humaitá. Tamandaré foi afastado, sendo substituído pelo Marques de Inhaúma, igualmente ortodoxo e sem iniciativa, acabou perdendo inúmeras oportunidades de tomar a fortaleza de assalto, depois do desastre de Curupaiti
Mas a superioridade militar e a pujança econômica dos exércitos platinos fez a diferença, e Humaitá acabou sendo tomada, com Lopez fugindo para Assunção Robert, ainda no estado-maior de Inhaúma, verificava todos os aspectos e remetia as missivas a seu pai, ao comandante Brotheridge, e a Maria Isabel, sendo que a dla mais enfática, dizia
“Meu Amor
Sei que é difícil, assim como tem sido pra mim, conduzir as coisas sem a tua presença.. A tua falta me corrói por dentro, e só a certeza de voltar me põe de pé e com ânimo para seguir em frente. A luta, mesmo sendo favorável a nós, tem sido difícil, não por conta do inimigo, mas pelos obstáculos naturais e todas as outras coisas. As baixas por doença tem sido maiores que as das balas inimigas. Acho que me encontrarei com meu primo Lucas dentro em breve. Ele segue com as colunas de cavalaria que perseguem Lopez país adentro. , sinto muito a tu falta, e m al posso esperar para te abraçar , te beijar e aos pequenos James e Ludmila.
Teu Sempre a Te Amar
Robert “
Enquanto isso, Lucas Almada seguia em patrulha, rastreando possíveis paraguaios extraviados. Tinha entre os seus um guia que trabalhara em uma fazenda de mate da região, e dera preciosas informações. Por pouco não tinham pegado o próprio Lopez, que se refugiara perto, mas ele lhes escapara das mãos. Mas desde muito Lucas era outro homem. Vira massacres demais, perdera toda quase toda sua tropa em escaramuças com os paraguaios. Num dia, vira chegar no acampamento uruguaio caixas marcadas “Departamiento Electoral”. Perguntando por tais caixas, recebeu uma seca resposta do encarregado: “es para las elecciones de nuestro pais, pues ustedes esclavistas, nos las tienen?
Isso o aturdiu. Vira vários regimentos formados, em seu exército, somente por ex-escravos, alistados simplesmente para substituir seus senhores, em uma promessa incerta de liberdade. Muitos lutaram corajosamente a seu lado, e isso o inquietava muito. Sabia que na estância, muito por insistência dos pais, não havia mais escravos, apenas pessoas livres trabalhando, mas apenas lá, e no resto do país. Muitas idéias fervilhavam em sua cabeça, e ele precisava pôr as coisas em ordem para formar uma opinião coerente. Mas ainda havia uma guerra por vencer, e ele, por ora, pôs os pensamentos de lado.
Um ano depois, a guerra terminara. Solano Lopez morrera em Cerro Corá, encerrando cinco anos de conflito e morticínio, que tinham reduzido em muito a população do Paraguai e transformado o país em um deserto. Mas a guerra não apenas era de mortes, mas de mudanças. Muitos achavam contraditório lutarem pela liberdade e virem de um pais maciçamente escravocrata. Muitos mesmo já começavam a questionar mesmo o regime imperial. Entre estes, o capitão Lucas Willingthorpe Almada.
Robert partira com Maria Isabel, e seu tio retomara as terras de sua hacienda, que até então tinha sido transformada em hospital. Lucas, agora, tomava mais e mais os rumos da família no Brasil, e, da guerra, voltara outro, com novas idéias novos momentos, ainda por vir..Nadejda e Lucas, pai, apenas observavam a mudança no caráter do filho, cujas idéias eram, a seu ver , conseqüência de todo aquele banho de sangue...Mas novos tempos ainda iriam surgir, e mais aventuras para os Shatov-Willingthorpe...

A saga dos Shatov-Willingthorpe - Parte II

BAÍA DE NAVARINO, GRÉCIA, 1827

As duas frotas estavam à vista. Nenhuma delas tomou a iniciativa de disparar. A frota turca, com seus navios de velas triangulares, tomou formação de semicírculo, aguardando a iniciativa inimiga. Mas ela não vinha. No tombadilho do HMS Longbow, um jovem oficial de cabelos castanhos e olhos azuis vivos perscrutava a linha de navios com sua luneta, vendo a disposição dos navios inimigos. A frota turca impressionava pelo tamanho, mas ela talvez não tivesse a habilidade nem o treinamento dos marinheiros europeus ali reunidos. Ingleses, franceses e russos estavam prontos para desafiá-la, a chamado dos insurgentes gregos, que em desespero clamaram a embaixadas e consulados no mundo inteiro.
- Ansioso pela luta, jovem Willingthorpe?- Perguntou o oficial alto, de suíças grisalhas, ao se aproximar dele.
- Como qualquer um deles, senhor, assentiu com um gesto de cabeça.
Assim estava Nigel Shatov-Willingthorpe, segundo em comando no Longbow, capitaneado por Simon Travers, o mesmo que serviu como aspirante de seu pai em Trafalgar, e que tinha sido o último a vê-lo com vida antes do seu navio, o Spearhead, afundar na batalha. Travers tinha sido o mentor de Nigel na Academia Naval, e acompanhava com interesse sua carreira. Trouxera-o para a divisão experimental, onde eram testados os novos barcos, e ele se sobressaíra como um hábil e disciplinado oficial, a imagem de seu pai. Simon se sentia em débito com o pai de Nigel, como se quisesse fazer pelo filho o que não pôde fazer por ele..
Mas a calmaria havia acabado. Um disparo de artilharia de costa, feito contra o navio francês Gallimard, começou a refrega. Os canhões turcos, ainda de alma lisa, nada podiam contra as armas de alma raiada dos navios europeus. O Longbow, sozinho, já pusera fora de combate ou afundara pelo menos oito embarcações, enquanto franceses e russos faziam um estrago ainda maior. Nigel teve seu batismo de fogo quando destruiu, com os canhões de vante, uma chalupa turca que tentava abordar seu navio. A batalha, depois de quinze minutos, estava terminada. A Grécia não era mais Otomana.
Nigel se perguntava onde estaria o amigo Byron, seu colega em suas folgas da academia. Sua mãe, a condessa Ludmila, não o aprovava muito, mas não proibia sua amizade com Nigel. Na Suíça, ele conhecera a irmã de um dos amigos de Byron, Mary Shelley, mulher de cabelos longos e loiros, alta e altiva, que formava, junto com o irmão, Percy, e um amigo, Keats, uma espécie de “elite intelectual” inglesa na Suíça.. Ela o atraiu muito, e viveram, mesmo brevemente, uma história apaixonada... Mas as responsabilidades falavam alto, e ele deixou a vida idílica para voltar à Academia Naval. Ele ainda não sabia que Byron morrera de febre, em Missolonghi, e Keats morrera afogado num lago próximo à sua casa, e Mary e Percy tinham viajado para o Egito. Agora, ele voltava suas atenções para a batalha, e para novas histórias, e elas estavam apenas começando...


MAR DA CHINA MERIDIONAL, 1838

A bruma impedia a visão da costa, mas ele sabia bem onde estava Não era a primeira vez que cruzava aquelas águas, mas a atenção tinha de ser redobrada, pois a situação não somente do mar poderia ficar tensa, mas a do país também. A sua missão era, com o HMS Serapis, levar o alto comissário britânico para a China, sir Henry Poittinger, a fim de resolver um impasse. Impasse este que seu próprio governo criara, ao substituir a prata com que negociava com os chineses por ópio. Ele já vira os malefícios que aquela droga terrível causava, ao ver seus amigos Percy Shelley ,Keats e Byron se destruírem.
Mas a balança de pagamentos em prata estava causando prejuízos à Companhia das índias Orientais, que procurava uma forma de reverter essa situação, e a forma encontrada foi o comércio de ópio. Mas, para não se ver completamente envolvida, a companhia passou a contratar os serviços de “privateers”, que traziam o ópio da Índia – seu monopólio era ciosamente guardado – para ser negociado na China. Desde a viagem de Lord McCartney, em 1794 – o pai de Nigel, Thomas, tinha sido comissionado para a viagem – tinham sido impostas regras rígidas para o comércio com os chineses. Só se podia comerciar com agentes comissionados pelo governo imperial os chamados “Co-Hong”, e apenas se podia comerciar produtos que os chineses assim aprouvessem. O semi-isolamento fez desses agentes pessoas extremamente corruptas – e ricas – num circulo vicioso que estava longe de acabar..
Um desses “privateers”, que iria se encontrar com Nigel naquele ponto do mar da China era Malcolm Struan, um escocês de rosto largo e olhar duro, fundador e “Tai-Pan” – Senhor Das Riquezas, em chinês - da Casa Nobre, a mais antiga casa comercial no Extremo Oriente. Ele já havia arrancado dos chineses – com um misto de força e persuasão convincente – uma faixa de ilhas na foz do Rio das Pérolas, mais precisamente uma ilha rochosa desabitada, denominada Hong Kong, e ali estabeleceu a sede de seu império pessoal. Controlava uma grande frota de contrabando de ópio ao longo da costa. Tinha barcos armados que faziam a segurança de seu negócio e era um homem famoso por não ter meias palavras.
Não demorou muito para que os mastros de uma Lorcha – embarcação mista de casco de desenho ocidental e velas de quarto com varas – tipicamente chineses – despontasse por entre a bruma. Com a luneta, pôde ver a figura de Malcolm Struan na proa, a mão apoiada na amurada. Ancorando a uma distância segura, Struan, de escaler, aproximou-se do HMS Serapis e sinalizou, pedindo permissão para subir a bordo. Uma escada foi baixada e em questão de minutos estava a bordo do navio inglês.
Sir Henry Poittinger, alto comissário do Parlamento, o esperava no tombadilho. Os dois trocaram olhares e se cumprimentaram secamente, antes de adentrarem a cabine principal. Nigel observava a cena. Imaginando até onde poderia ir a conversa entre os dois. A primeira vez que vira Struan tinha sido dois anos antes, quando quase abrira fogo contra ele, mas depois se tornaram – até certo ponto – amigos. Ele não concordava com o que ele fazia, mas guardava essa reserva para si.
Numa conversa de quase duas horas, Struan cientificou – ao menos por um lado – o que ocorria com o comércio com a China. Falou das ações de um comissário chamado Lin Zexu, que começara uma campanha sem precedentes contra o consumo e o comércio de ópio, ameaçando até mesmo as legações estrangeiras, em Tientsin e Xangai. Ele seguia pelo país, com tropas armadas, com total autoridade concedida pelo imperador, desalojava comerciantes e punia severamente quem estivesse negociando ou escondesse ópio em sua casa. Agora, ele chegara ao extremo de cercar as legações estrangeiras, exigindo que fossem entregues as caixas de ópio ali armazenadas.
Nigel escutara a conversa com uma expressão pétrea. Não concordava com a atitude governamental para com o ópio, mas era dever de ofício obedecer a ordens superiores. Numa de suas últimas visitas a Londres, ele conhecera no Navy and Army Club um jovem oficial que tinha idéias muito pouco ortodoxas a respeito da política. Seu nome era Charles George Gordon e tinha acabado de chegar da China, e falava pra quem quisesse ouvir o descaso e a cupidez dos ingleses em relação aquele país. Aquilo cheirava a insubordinação, mas ele escutou atentamente o jovem oficial, e, em algumas partes, não deixou de dar razão a ele.
Após o fim da conversa, Struan retornou à lorcha e tomou o rumo de Hong Kong. Nigel navegou para Shangai, onde já o esperava Sir Charles Sommerville, comandante da esquadra do Extremo Oriente. Ainda não havia uma representação diplomática propriamente dita; assim, Sir Charles era a mais alta autoridade britânica na região, e poria Sir Henry Poittinger a par de outros pormenores da situação. Sir Henry não confiava em Struan nem por um minuto. Sabia que esses “privados”, muitas vezes, excediam as prerrogativas, e causavam muita confusão naquelas paragens.
Logo após desembarcar Sir Henry e providenciar os devidos alojamentos – Ele e sir Charles teriam muito que conversar – cerificou cada detalhe do navio antes dele mesmo desembarcar. Um vulto familiar já o esperava. Sao Feng, mercador de chá de Hankow, era amigo de Nigel desde que ele o salvara de piratas há um ano, e era uma amizade tal a ponto de São Feng – homem rico e de um grande coração – ceder uma de suas propriedades a Nigel para que ele não tivesse de usar os alojamentos da marinha. No início, ele recusara polidamente, mas acabou aceitando, pois era um solitário naquele lugar, e São Feng, irredutível, apenas respondia: “a dívida de uma vida não tem preço que se calcule, Honorável Willingthorpe”. Tornaram-se grandes amigos. Mas Sao Feng, desta vez, trazia uma expressão apreensiva.
- Honorável Willingthorpe, desculpe o rosto de chuva, mas verdadeiramente há tempestade a caminho.
- Como assim, Sao Feng?
- O cerco às legações, honorável amigo, era antes uma obra de espionagem, agora, ao que parece, será ação militar direta. Lin Zexu apenas aguarda uma deliberação do Imperador.
Caminharam até a saída do porto, e tomaram um riquixá até a casa de Nigel. Estranhamente, não estava surpreso. Isso explicava, em parte, o encontro de Sir Henry Poittinger com Malcolm Struan em águas internacionais. Qualquer um dos dois poderia simplesmente negar aquele encontro, se as coisas chegassem a um nível crítico. São Feng se mostrava preocupado, e não sem razão. O imperador Daoguang, que sucedera ao longo reinado de Qianlong, era um governante bem intencionado, mas não tinha a força nem a personalidade de seu pai, que simplesmente não deu importância para a expedição de Lord McCartney, em 1794, respondendo secamente que “meu povo não tem necessidade de suas engenhocas industriais”. O governo de Sua Majestade não iria permitir uma afronta dessas durante muito tempo.
- Vá à minha casa esta noite, Honorável Willingthorpe, haverá alguns amigos meus que acho que gostará de conhecer.
- Estou um pouco cansado, amigo Sao Feng, mas acho que irei, sim.
Ela atraía atenções onde quer que fosse. Não somente pela beleza – tinha cabelos castanhos e olhos azuis muito vivos – mas porque passava longe dela a frivolidade ou a futilidade. Era uma mulher que, longe de permanecer circunspecta e esperar a iniciativa, era ela a iniciativa em pessoa, e nada escapava ao seu ímpeto. A mãe, ao tentar domá-la, apenas recebia a resposta “é nosso sangue, mamãe, somos feras da tajgá”, dizia ela, e desarmava a mãe, pois Ludmila sabia de onde vinha todo esse ímpeto. Era o mesmo ímpeto que fizera o pai se apaixonar por ela, muito tempo antes. Agora, ela o via representado na filha.
A condessa estava preocupada com a situação na China. Sabia que a missão do filho era delicada; ele não dizia nada nas cartas, mas ela sabia, em seu íntimo, o quanto era perigosa a situação. Também recebia correspondência regular de seu irmão, que a informava dos acontecimentos. A filha, atenta à preocupação da mãe, a observava curiosa
- Nigel é corajoso e esperto, Mamitschka, ele se sairá bem.
A mãe confiava no filho, mas ela sabia o que era estar longe, e receber, apenas por augúrios, uma notícia boa ou ruim. Lembrava do seu amado Thomas, morto em Trafalgar, quando o vento cortante e frio entrou na casa, avisando-a da morte dele quando seus filhos acabavam de nascer. Sentia falta de Lady Claire, sua sogra, que havia morrido há onze anos. Ela foi a fortaleza que a apoiou e ajudou-a a criar os dois filhos, e que, sem ela, talvez não tivesse conseguido. Jamais se casara de novo; ela casara por amor, apaixonada, e apaixonada trouxera seus filhos ao mundo
Agora, ao ver a filha diante dela, via como tinha sido afortunada; eles cresceram belos e inteligentes, Nigel se destacando em sua carreira como oficial, e Nadejda – que ela chamava de Nadya – uma bela e deslumbrante mulher – talvez até deslumbrante demais – que desarmava qualquer homem diante dela. Ludmila imaginava se algum dia ela ia se deixar domar pela paixão. Ela freqüentava as rodas de intelectuais e poetas da moda – muitas vezes ela fazia reuniões desses artistas em Seagate Manor; mesmo Byron e Mary Shelley um dia lá estiveram – e não se deixava levar pelas opiniões dos que diziam – mais por inveja do que qualquer outra coisa – que ela devia “conhecer seu lugar e se portar como uma dama”. O que acontecia era que, na verdade, os homens a temiam por ser exatamente o que eles jamais esperavam – uma mulher com a determinação mais intensa do mundo...
Depois de descansar um pouco, Nigel resolver ir ao jantar oferecido por Sao Feng. O riquixá o deixou pontualmente às oito no portão, onde ele foi conduzido por um dos criados ao grande salão da casa. Archotes iluminavam o caminho de pedras que conduzia à área central da casa, onde estavam Sao Feng e seus convidados. O grupo era bastante variado, constituído, em grande parte, de clientes que negociavam chá com o anfitrião. Uma figura chamou imediatamente a atenção de Nigel. Ela possuía um rosto gracioso, arredondado, olhos verdes e penetrantes. Estava acompanhada de um senhor de barba grisalha hirsuta, de compleição física robusta, de olhos também verdes, mas de aspecto mais duro, sem o brilho da mulher que o acompanhava. Mal viu Nigel, Sao o conduziu ao centro.
- Honorável Amigo! Que bom vê-lo aqui! Permita que eu apresente alguns bons amigos. Este é o senhor Estevão Monforte, de Macau, e sua filha Leonor.
- Encantado, senhor Monforte. E igualmente encantado, senhora Leonor.
Estévão Monforte surpreendeu-se de Nigel dominar o português. Mas Nigel dominava a língua porque a aprendera em suas viagens pela costa ocidental da África, quando caçava navios negreiros. Uma vez, numa de suas missões de apresamento, conhecera um marinheiro chamado Matias, e este deu-lhe um livro de presente, chamado “Marília de Dirceu”, de um poeta brasileiro chamado Tomás Antônio Gonzaga, que havia sido exilado por conspirar contra a coroa portuguesa. Nigel apaixonou-se pelo idioma, que parecia conter uma alma em cada palavra, um brilho em cada sílaba e preposição.
Ele conhecia Estévão Monforte, porém, de outras razões. Ele era um dos mais intrépidos traficantes de escravos da costa Ocidental da África, e era imensamente rico. Com a campanha do reverendo Wilbeforce pela libertação dos escravos e com a decretação do “Bill Aberdeen” – o mandato de autoridade da Marinha Real para capturar ou mesmo afundar navios negreiros - Monforte rapidamente mudou seu negócio, reciclando sua frota de navios para o comércio do chá, e, ocasionalmente, algum ópio. Ainda era conhecido, em sua terra natal, como “O Negreiro”. Nigel só não sabia que ele era pai de uma filha tão bela... Os olhos verdes de Leonor eram como esmeraldas de um fulgor raro... O rosto, emoldurado por cabelos negros e brilhantes, parecia irradiar algo que o deixava completamente à mercê dela...
Naquela noite, o sono não o encontrou. Embora estivesse frio, ele suava. Sabia dessa sensação. Tivera-a quando do romance com Mary Shelley, uma sensação que o tirava de esquadro, o desorientava. Ainda tinha na mente os olhos verdes e brilhantes, os cabelos negros, como um manto de seda. Leonor. Um nome tipicamente português. Um nome que, para ele, era mais que um significado. Ainda estava com o perfume dela em suas mãos, uma rara combinação de essências, na qual o jasmim predominava... Sentia-se ainda enlevado pela lembrança dela a dançar com ele, como se mais ninguém estivesse ali. Pela segunda vez, alguém penetrava a muralha de seu coração. E ele sentia que, dessa vez – algo dentro de seu ser dizia – não seria efêmero o que sentiria...
O dia, porém, revelou-se como a tempestade que Sao Feng havia previsto. Atendendo a uma ordem do Imperador, tropas comandadas por Lin Zexu apertaram o cerco contra as legações estrangeiras, para que entregassem o ópio estocado nos armazéns. A estratégia usada por ele foi cortar qualquer suprimento às legações, fazendo com que o ópio fosse entregue em troca dos suprimentos. O cabo de guerra estava já em seu ponto de ruptura, e nenhum dos lados queria ceder. A casa de Nigel ficava fora do quarteirão das legações, e ele tomou rapidamente um riquixá para o porto, onde os ânimos já estavam exaltados. Os chineses tinham um ódio velado pelos estrangeiros – embora uma dinastia estrangeira estivesse no poder;os manchus que a compunham não eram chineses – e qualquer oportunidade para extravasá-lo era aproveitada. Procurou inteirar-se do que acontecia, e encontrou Sir Henry Poitinger de pé, acompanhado de uma guarda armada.
- Esses demônios nos cercaram! Exigem que entreguemos o ópio que está armazenado.
- E o que está sendo feito?
- Estamos tentando ganhar tempo e parlamentar, mas não sabemos o que pode ocorrer
- Vou ao meu navio e ficarei a postos
- Faça isso. Tentarei ver o que posso fazer.
Nigel sabia que as legações estavam numa enrascada. O corpo militar a serviço das legações não tinha mais que mil homens, e Lin Zexu contava com mais de trinta mil homens espalhados pelas cercanias da cidade. A situação começava a se tornar insustentável, com a fome e a sede começando a se tornar conselheiras. As potências se dividiam entre entregar ou não o ópio. Ele podia dar algum apoio de artilharia com seu navio, mas isso não adiantaria muito. A superioridade em homens de Lin Zexu acabaria por selar a sorte de todos. Tinham de jogar com o tempo, com a sorte e com o destino...
Por fim, Nigel já estava na ponte do Serapis, no aguardo dos acontecimentos. As tropas de Lin Zexu já se posicionavam ao redor do quarteirão das legações, apenas aguardando ordens. Ele sabia que seria apenas uma questão de tempo até que os soldados imperiais batessem a pequena tropa de guarda das legações, invadissem o quarteirão e capturassem os armazéns. Poderia dar algum apoio de artilharia com os canhões do navio, mas o risco de atingir casas era muito grande. Podia, quando muito, adiar o inevitável. Ele se perguntava onde estariam Estevão Monforte e sua filha...
Suja divagação foi interrompida por um aviso do oficial de vigia, sobre um nadador misterioso a caminho do navio. A guarda de bordo se aprestou a tomar os fuzis e disparar, mas uma ordem de Nigel, eles estacaram. Ele reconheceu o nadador. Era Chen, um dos criados de Sao Feng. Mandou que jogassem uma corda, e, em minutos, o criado estava a bordo.
- Trago notícias de meu senhor, Honorável capitão.
- Muito Obrigado, Chen. Agora se seque e descanse.
- Obrigado, honorável.
Abriu o pacote de couro que o homem trazia, que continha uma carta de Sao Feng, avisando de outra concentração de tropas mais ao norte das legações, pronta a agir. Lin Zexu não estava brincando. O prazo dado por ele – setenta e duas horas – estava se esgotando, e os diplomatas estrangeiros estavam irredutíveis. Tudo poderia se transformar num massacre em questão de horas...
A visita do Capitão Travers foi uma das mais agradáveis surpresas. Tanto Nadya quanto Ludmila tinham em alto conceito esse oficial, filho do Almirante Travers, que foram superior de Nigel há dez anos. O pai havia morrido de uma síncope fulminante, e sempre fora um grande amigo da família, sendo ele que deu a notícia da morte de Thomas, pai de Nigel, em combate. Mas, dessa vez, ele não vinha sozinho. Junto com ele, um jovem alto, de cabelo escuro e tez trigueira, que parecia ser espanhol. Seus olhos negros eram intensos, com uma permanente chama de intensidade. Os cabelos, longos, caíam nos ombros com uma simetria que, a ela, parecia exoticamente atraente.
- Meu amigo!!!Há quanto tempo!!!Que surpresa agradável!!! – Nadya o abraçou e o beijou nas faces, enquanto o conduzia pra dentro. A condessa Ludmila o aguardava na entrada.
- Desculpem meus maus modos, mas esse é o meu amigo Lucas Almada, da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, no Brasil.
- Muito prazer, senhorita Nadya, a sua fama a precede – falou ele, com um inglês de acento um pouco carregado – Lucas Almada, a seu serviço.

Era o que os franceses chamavam de coup de foudre – O encanto à primeira vista – que os aproximava agora. Os olhos negros dele encontraram os azuis dela, parecendo antecipar cada parte em que estavam, cada pensamento, cada palavra, cada ação. Era como se já estivessem por se amar, embora ainda não se conhecessem...
A condessa Ludmila rompeu o enlevo, chamando-os para dentro. Ela o seguia com o olhar, pousado nos longos cabelos negros. Ele não parava de contemplar os cabelos castanhos e os olhos azuis dela, ansiando-a de coração e alma. Era uma coisa nova para ele, e queria descobrir até o âmago deste sentir...
- É verdade que seu país está em guerra, senhor Almada? – perguntou a condessa, percebendo as emoções da filha.
- A minha província, condessa, luta contra os desmandos do Imperador, que quer reduzir os negociantes de minha terra à miséria.
- Como assim? – Desta vez, foi Nadya a curiosa.
- O governo imperial cobra taxas abusivas dos estancieiros do sul, mas com pra o gado uruguaio e argentino sem taxas! Isso revoltou nossos fazendeiros – meu pai inclusive – e nos colocou em colisão com o Império. Daí a guerra, que se arrasta há três anos. Os imperiais não conseguem nos vencer, porque conhecemos nosso terreno e eles não. Nossos cavalarianos são nascidos e criados lá, conhecem a região e as manhas dos animais.
Ela pôde comprovar isso nos dias seguintes. Ele era um impecável cavaleiro, além de um atirador certeiro. Mas não era apenas isso. Ele era um sensível, leitor de poesia e cultor de música. Mas ela sentia também, dentro dele, uma força e uma intensidade que a chamavam pra perto.
Um dia, a cavalgar juntos, ele a tomou nos braços e a beijou. Já havia sido beijada antes, mas não com aquela intensidade, aquele ardor, que venceu qualquer reserva que tivesse. Agora, a paixão mandava, a vontade de amar prevalecia... Mãos, lábios e corpos se buscavam, como um desconhecido a tatear no escuro. Naquele dia, gritaram juntos, pois ele rendia-se ao primeiro amor, e ela dava seu primeiro grito de mulher... Queria aquele homem para ela, nem que tivesse de lutar contra o mundo inteiro...
Quando voltaram, a condessa a esperava. Se contava com um olhar de reprovação, encontrou os olhos e braços ternos da mãe a abraçarem, a senti-la, a dar seu apoio. Ela sabia. Lera nos olhos da filha. Já não era mais uma questão de se, mas de quando. Ela se lembrava do que ele recitara para ela, quando arrefeceram do amor...Um poema que ela não compreendia, mas que ela repetiu, embora de forma trôpega, pois não dominava o idioma;
“Vem, Marília Bela;
Façamos do feno brando leito
Para gozarmos o viço
Dos sãos amores”
Ele já não mais se sentia senhor de si. Sabia-se pertencer a ela, e assim o queria pra sempre. Queria-a no limite de suas forças, e além delas. Jamais tinha sentido isso por alguém. As aventuras amorosas perdiam o sentido para ele completamente, pois se frustrara em não encontrar o que mais buscava...Amor profundo, como o que Tomás Antônio Gonzaga, de quem recitara a ela o poema, nutria por sua amada Marília. Mas não Nadya. Ela era o Sol, as estrelas e a Lua, tudo isso junto. Sabia, dentro do seu coração, que a amaria pelo resto da vida.
A mãe sabia. O olhar dizia tudo. O mesmo olhar que ela, ao amar seu Thomas, tivera. A mesma paixão intensa, o mesmo ardor, a mesma vontade de pertencer. A filha tentou dizer-lhe algo, mas ela a calou com os dedos.
- Viva seu amor, minha filha. Jamais o deixe morrer...
A filha a abraçou, numa cumplicidade de não mais mãe e filha, mas de duas mulheres que sabiam o que o amor significava. Duas mulheres fortalecidas pelo amor. Mais fortes que qualquer intempérie que desabasse. Fortes para o resto da vida.
Naquele momento, a situação nas legações havia chegado a um impasse. De prontidão, Nigel aguardava ordens, enquanto cada vez mais as tropas de Lin Zexu apertavam o cerco. O contingente das legações se preparava para resistir, quando, de repente, chegou outra mensagem de Sir Henry, ordenando que se cessasse qualquer tipo de ação ofensiva, e que fosse mandada uma mensagem a Lin Zexu, informando-o que o ópio seria entregue e as legações seriam evacuadas.
O que se viu depois foi uma cena sem precedentes. Todo o ópio estocado nos armazéns das legações – dizia-se um montante de trezentas toneladas – foi todo esvaziado e jogado nas águas da baía, com Lin Zexu dirigindo uma prece às “entidades das águas”, para que o perdoassem por essa intrusão em seu meio. As legações foram evacuadas, e os diplomatas em seus respectivos navios. A mesma mensagem dizia que ele deveria se juntar, em Macau, a uma frota de mais navios que chegaria em breve. Navios de várias nacionalidades formavam uma frota heterogênea, com um único objetivo: a guerra, o controle da costa da China para o tráfico.
Nigel tomou o rumo de Macau, mas, a meio caminho, encontrou a frota, que tinha à testa o HMS Warrior, na direção da costa da China. As ordens dadas a Nigel eram desembarcar o Alto Comissário em Calcutta e depois seguir para se juntar à frota em direção à China. Os dias do navio à vela haviam passado, e, embora elas ainda fossem usadas, o eram de forma secundária, pois a máquina a vapor viera para tomar seu lugar. A marinha chinesa ainda possuía juncos e canhões de alma lisa, enquanto que o navio de Nigel, o HMS Serapis, já era equipado com canhões de carga pela culatra e alma raiada, que aliavam maior precisão e maior alcance.
Ele, na realidade, se sentia dividido quanto à condução daquela guerra. Os chineses não teriam a menor chance, e seriam fragorosamente derrotados. Ademais, o maior motivo dessa guerra, para ele, não tinha razão de ser: o pernicioso comércio de ópio, que simplesmente arruinava milhares de vidas para o lucro de poucos. Custava acreditar que a Marinha Real mandara uma frota para proteger traficantes de ópio. Parecia que tudo o que ouvira do jovem Charles George Gordon tinha sua razão...
Em retorno, passara por Macau, mas não tivera notícias de Estevão Monforte e sua filha. Logo se juntou à frota, que apresentava suas exigências ao governador de Xangai.. Mas a aparência de parlamentação era simplesmente uma manobra diversiva, pois os navios já desembarcavam soldados na outra margem, com a intenção de atacar de surpresa. O contingente inglês era de longe o maior, e Shangai foi tomada em questão de horas. O navio de Nigel recebeu a missão de escoltar os transportes com a força auxiliar franco-alemã. No caminho da península de Kiaoutschou, recebeu sinais de um barco aparentemente avariado. Eram sinais irregulares, como se a pessoa não tivesse a menor idéia do que estivesse enviando. Ordenou alerta de combate, enquanto o navio se aproximava...Logo identificou-o como uma Lorcha, das que serviam aos contrabandistas de ópio, mas ela não estava armada. Tinha um dos mastros avariados e estava aparentemente sem direção...
Imediatamente, juntou uma equipe de abordagem e encarregou-se pessoalmente do assunto. Não era sempre que um capitão se encarregava de tais assuntos, mas um pressentimento estava se moldando em seu coração, e ele era alguém que sempre acreditava neles – mais de uma vez eles salvaram sua vida – assim, ele tomou a dianteira do grupo, e agilmente escalou a amurada. O homem a fazer sinais aparentava ser não o capitão, mas seu imediato. Quase cambaleando, se dirigiu ao encontro de Nigel
- Graças a Deus que o encontramos, senhor – disse ele em português, entre arrancos – achava que iríamos morrer de fome, perdidos no mar. Chamo-me Martim Andeiro, senhor, imediato da Lorcha Infanta Margarida.
- O que houve aqui? Algum ataque?
- Sim, senhor, juncos armados chineses nos atacaram assim que saímos do porto. Íamos para Goa, nos abastecermos e rumarmos a Portugal, mas eles nos atacaram. Não estávamos armados, mas eles nos castigaram muito. Nosso leme foi atingido, mas conseguimos despistá-los. Acho que eles temem as lanchas armadas dos traficantes.
- Onde está o capitão?
- Morto, senhor. Uma das aparas de madeira do mastro partido o matou. Está na cabine. Mas não é nada bonito de se ver.
Sem ouvir o imediato, Nigel se dirigiu célere até a cabine, e o que deparou foi de gelar o sangue. O corpo que via era o de Estevão Monforte, praticamente dividido em dois pela apara do mastro. Isso era mais temido pelos marinheiros numa batalha do que as balas ou a metralha, pois as aparas e lascas não tinham direção, atingindo inimigos e amigos. Chamou sua equipe para conduzirem o corpo de Estevão para o Serapis, enquanto dava uma busca pelo navio.
- Não havia uma moça com ele, cabelos negros, olhos verdes?
- sim, senhor, nós a escondemos, pois não saberíamos o que os chineses fariam
- Onde ela está?
- No porão de carga, senhor. Por aqui
Numa ansiedade que ele mesmo estranhara, desceu, acompanhando o imediato até os porões de carga. Lá, estava ela. Vestia roupas masculinas, mas , mesmo assim, era como se ele conseguisse ver a beleza dela através de tudo aquilo...Mal o viu, ela o abraçou, um abraço profundo de querer, de jamais se apartar...Ele a beijou com intensidade, sendo intensamente correspondido. Já sabia que o destino deles estaria traçado para sempre...
- Seu Pai...eu o vi...Mandei meus homens prepará-lo
- Ele não sofreu, Nigel, foi muito rápido. Mas temos que sair daqui...Juncos armados chineses estão em toda parte.
- Me navio e os demais da frota são fortes. Eles farão frente.
Mesmo que ele tivesse mentido, ela confiava nele. Tinha rezado a todos os santos para que o trouxessem, e, agora, ele estava ali, e ela não mais se apartaria dele.
A cerimônia foi breve, mas comovente. Os marinheiros da Infanta Margarida foram sepultados no mar, com todas as honras. Estevão Monforte foi o último, como rezava a antiga tradição. Uma lágrima correu dos olhos de Leonor, quando o corpo do pai deslizou da prancha para o mar...
A guerra foi tão rápida que surpreendeu até os mais otimistas. Todos imaginavam um conflito prolongado, mas, em 1842, os chineses, com sua Marinha destruída e todas as principais cidades costeiras em poder das potências ocidentais, não tiveram alternativa senão ceder às pressões das potências. Os alemães ficaram com a cidade de Kiautschou, e lá instalaram sua frota do Extremo Oriente, no porto de Tsingtao. Os franceses, com Tientsin, e os ingleses, com Shangai. Nigel, entristecido com aquilo, foi visitar seu amigo Sao Feng. Quando entrou na casa, o anfitrião foi vê-lo, embora caminhasse com dificuldade, pois perdera uma perna abaixo do joelho. Tinha sido ferido nos distúrbios durante a guerra, quando invadiram a casa e quase o mataram, pois o insultavam de “cão dos estrangeiros”. O sorriso aflorou em suas faces, quando o viu
- Honorável Amigo! Que bom vê-lo são e salvo! Eu também estou bem , embora faltem algumas partes – mostrou a prótese articulada de marfim – feita sob medida.
- Folgo em vê-lo bem, Sao Feng. Não me senti bem tendo que atirar em barcos que não tinham defesa contra nós.
- Mas assim é o destino, honorável. Sempre o destino. Pensamos em fugir dele, mas ele sempre nos alcança.
Conversaram, entre outras coisas, sobre a morte de Estevão Monforte, a quase morte de sua filha, o resgate m alto-mar. Sao Feng o escutava atentamente, sempre sorrindo, ou franzindo o cenho, de acordo com o que reagia da conversa. Mas contentou-se em ver o amigo bem, e com algo no coração, além da luta.
- Mas o destino age dessa forma, honorável amigo – disse o anfitrião. As suas portas já estão abertas, apenas terá de cruzá-las.
Despediram-se calorosamente, prometendo ver-se, mal sabendo que essa promessa somente seria cumprida na geração seguinte...
Nadejda mergulhava mais e mais fundo em seu amor, e Lucas Almada o correspondia intensamente. Ela aprendeu, em pouco tempo, a língua de seu amado, e mais do que antes, se emocionou vivamente com os poemas que recitava, especialmente depois de se amarem, e era tanta a sede de amor dos dois que parecia não ter fim..
Num dos dias que Lucas foi vê-la, sua expressão estava apreensiva. Ela o tomou nos braços, beijou-o apaixonadamente, como que quisesse arrefecer a tempestade em seu coração..
- Minha Vida, acho que terei de deixar a Inglaterra. As coisas ficaram sérias na estância.
- O que houve meu amor?
- Meu pai está à morte, e quer que eu esteja lá. Falei de ti, e ele se encantou por demais. Amo-Te, mas não posso exigir que deixes tua vida aqui e me siga. Lá, estamos em guerra, uma guerra cruel e brutal. Uma guerra sem quartel
- Minha família está bem acostumada com guerras, meu amor. Além do mais, quero que o nosso filho nasça no país de seu pai.
- O quê?
- Sim, Lucas Almada. Estou carregando nosso filho em meu ventre
Aquela notícia o colheu entre a surpresa e o júbilo. Ele se ajoelhou e beijou-lhe o ventre; ela acariciava ternamente os cabelos. A amava mais do que tudo, e um filho era mais do que ele imaginaria querer..Carne de sua carne, sangue de seu sangue. Ele precisaria contar isso a seus pais, mas antes teria de falar com a condessa. Não precisou esperar muito, pois ela estava na varanda, esperando-os
-Ah, então você me fará avó, meu rapaz... Deixe-me abraçá-lo, meu filho, que Deus guarde vocês em sua jornada.
- Como assim?
- Conheço o amor, meu jovem, e aqui está uma que te seguirá onde estiveres, pelo amor que tens, e sei que guardas a ela igual amor. É a única coisa nesta vida, meu rapaz, que vale a pena viver.
Agora ele via de onde ela tirara tanta determinação. Elas eram mais que mãe e filha. Eram duas mulheres que, de aparente fraqueza, possuíam uma força que nenhum homem sequer chegaria a equiparar....Agora, ela o acompanharia ao Brasil, no início de uma nova jornada...





ESTÂNCIA DO LAGAR, PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL, BRASIL, 1839

A Carruagem tomou o caminho da entrada do alpendre do casarão, uma típica construção de um andar, mas sólida, típica das estâncias gaúchas, com a capela à direita. Na entrada do alpendre, já esperavam Teresa e Julião Almada, pais de Lucas, e sua irmã Luciana, a mais curiosa de todas. Julião esforçava-se para aparentar estar bem, a barba grisalha hirsuta emoldurando um rosto de olhos firmes, de quem já tinha visto de tudo. Vestia um poncho azul e bombachas de risca, terminadas em botas de fole marrons, no pulso o rebenque de montaria. Teresa, sua mulher, mãos cruzadas sobre as saias, observava, cabelos negros presos em um coque, a chegada da carruagem
O primeiro a descer foi Lucas, já vestido à pampa, com ceroulas bordadas sobressaindo do chiripá vermelho. Nadejda desceu depois, com cuidado, pois a gravidez já estava adiantada. Tiveram uma parada no Rio de Janeiro, mas logo retomaram viagem porque Lucas temia ser detido pelos imperiais. A mãe correu para abraçá-lo, beijando-o nas duas faces, enquanto tomava as mãos de Nadejda entre as suas.
- Bem-vinda, minha filha, venha, eu te acomodarei.. A viagem deve ter sido difícil em teu estado. Eméria, traga toalhas de água de alecrim, depressa!
Teresa pegou as toalhas trazidas pela criada e as passou pelo rosto e mãos de Nadejda., refrescando-a. O frio já dava seus primeiros sinais, mas isso a relaxou muito. Teresa a conduziu ao quarto, onde um banho já estava sendo preparado.
- Recebi tua carta, pai. Deixou-me muito preocupado.
- Coisas de velho, meu filho. O fato de eu te chamar tem pouco a ver com isto
- Como assim?
- Bento Gonçalves cá esteve, a falar comigo, para aderir aos republicanos.
- Republicanos, meu pai?
- Sim, Bento Gonçalves e o general Netto proclamaram a República Rio-Grandense
Então o pai o inteirou da situação, desde a fuga de Bento Gonçalves do Forte do Mar, em Salvador na Bahia, até o ato de proclamação da República Rio Grandense. Lucas escutava atentamente, embora não disfarçasse sua surpresa. Sabia que havia elementos dos liberais exaltados – a maioria deles republicana – no movimento, mas não imaginava que eles tivessem chegado até esse ponto. O pai falou das notícias de todas as províncias rebeladas – Pará, Bahia, Maranhão – e de como o poder do regente estava sendo desafiado. Acreditava-se um verdadeiro gaúcho, mas ainda no coração era um monarquista.
- Sei o que se passa em teu peito, meu filho. Eu também me sinto assim. Respeito o general Bento Gonçalves, mas abandonar o Imperador é algo temerário.
Lucas ficou sem saber o que dizer.
Enquanto isso, em Seagate Manor, outra carruagem se aproximava, trazendo Nigel e Leonor de volta da China. A condessa Ludmila esperava na entrada, a criadagem toda ansiosa por conhecer a esposa de Nigel. Ele desceu primeiro, ajudando-a a passar os degraus. Seus olhos verdes chamaram a atenção de todos, assim como seu sorriso espontâneo. Fez questão de cumprimentar todos, dos cavalariços à governanta, e, quando chegou frente à condessa, ia fazer uma reverência, mas foi impedida por Ludmila
- Somos, acima de tudo, mulheres, minha querida Leonor. Não devemos ter diferenças.
- Muito feliz em conhecê-la, condessa. – disse ela, mais à vontade ao reconhecer uma personalidade igual à sua.
Na conversa com a mãe, Nigel também contou todas as peripécias que havia passado na China, desde o encontro com Malcolm Struan até o resgate dos diplomatas e o conflito com os chineses. Ludmila, mas que interessada, se sentia aliviada em ter o filho em casa são e salvo. Leonor a impressionara bastante. Ela contou a Nigel o casamento da irmã, a viagem dela ao Brasil, a notícia de que ela ia lhe dar um sobrinho.
- Que pena não ter podido estar aqui, mamitschka – sentiu ele – Adoraria poder ter visto minha irmã feliz.
- Ela também sentiu sua falta, meu filho. Ela deixou lembranças e te desejou boa sorte.
À noite, Leonor contou a Ludmila como tinha sido resgatada por Nigel, e como eles haviam se casado. O sotaque português de Leonor a fazia mais interessante. Outra coisa que fascinou ainda mais Ludmila foi que ela gostava de tocar e cantar – Nigel tocava piano e Nadejda viola da gamba, mas Leonor trouxe outro instrumento para casa – um bandolim – e gostava muito de cantar fados – o melancólico e poético cantar português – e sua voz era dolente como as notas do instrumento
“Quem contar
Um sonho que sonhou
Não conta tudo o que encontrou
Contar um sonho é proibido...
Quero sonhar um sonho com amor
E na janela uma flor
Uma fonte d’água e meu amado...”
Ludmila via os olhos de Nigel enquanto ela cantava – eram os olhos de seu Thomas, os mesmos olhos apaixonados – e via como Leonor o encantava. Lembrava-se sempre desse momento – os olhos nos olhos – naquele balcão de sua casa em São Petersburgo – e esse momento a marcou pra toda uma vida. Os poucos momento intensos vividos eram a lembrança que carregava agora, e eles a acalentavam exatamente nesses momentos. Amara seu Thomas com ardor, e sentia que, um dia, estariam juntos de novo...

Já refeita da viagem, Nadejda procurou conhecer a casa e os domínios do amado. A primeira vista da Campanha a impressionou, pois a terra, plana, com poucas colinas ou elevações dignas de nome, era como um oceano sem fim, mas um oceano de terras, que iam até onde a vista alcançava. Era um país de cavalarianos, pensou ela, um lugar onde homem e animal se fundiam num só. Ela percebeu isso assim que viu os peões saírem para o trabalho. Não podia cavalgar, por causa de seu estado – a barriga de oito meses era bem visível – mas ansiava a hora de poder fazê-lo, para conhecer esse imenso território.
- É um país bem maior que o teu, Minha Vida – falou baixinho, ao pé do ouvido – Mas não maior do que meu amor por ti.
- Teu pai parecia preocupado. O que houve?
- As coisas aqui, no ver dele, saíram de controle. Antes , era um movimento para que fosse dada a devida importância ao Sul, mas, agora, os mais radicais dentre eles proclamaram a República. Muitas adesões antigas estão se esvaindo. Uma coisa é uma reivindicação justa, outra é desafiar o Imperador –disse, com um profundo vinco na testa – agora, não demorarão a reagir Mas não devia estar te falando isso. Preocupo-te demais.
- Mas sabes que te perguntaria, mais cedo ou mais tarde.
- Sei disso, mas sabes que eu te prezo tanto que sempre tento te puxar fora dos problemas...
- Mas sabes que mais cedo ou mais tarde, terei ciência deles...Não podemos limitar o que devemos sentir, assim como o que termos pela frente.
- Tu sempre sendo muito mais sábia que aparentas. Acho que, se fosses homem, seria melhor general que qualquer outro... Mas vem, que o minuano não tarda...
No dia seguinte, uma comitiva de farroupilhas chegou à fazenda para falar com Julião. Encontraram Lucas no alpendre. À testa do grupo, um homem de peito largo, cabelos negros e longos bigodes, com uma viola a tiracolo. Sorria um sorriso de sarcasmo, como se sempre a vida fosse uma sátira a se rir.
- Buenas! O coronel Julião Almada está à casa?
- Sou o filho dele, Lucas. Qual sua graça?
- Sou o capitão Rodrigo Cambará. Estamos de passagem para pegar uns suprimentos para o General Bento Gonçalves, e entregar uma mensagem a seu pai. Acaso teria o favor de nos ajeitar os cantis? Estamos com sede...
Mediu bem o homem À sua frente. Era o tipo de pessoa que seria uma tolice desafiar, pois parecia destro nas armas. Tinha, apesar do tom respeitoso com que se dirigiu, uma grande arrogância em seu porte.
- Entre e fale com Atanásio, o capataz. Ele vai providenciar água e alguma forragem. Considere a mensagem entregue.
- Gracias a Vossa Mercê
- Por nada.
Lucas adentrou a casa, a entregar a mensagem a seu pai. Sentia que ventos tempestuosos estavam a caminho.
Em Seagate Manor, também Leonor, um pouco menos de tempo que Nadejda, também experimentava a maternidade. Nigel exultava, pois, afortunadamente, estava a passar uma licença prolongada em casa, esperando seu novo comando. Leonor e Ludmila passavam o tempo conversando ou jogando gamão, enquanto Nigel se ocupava da correspondência pessoal, há muito desatualizada. Mas ele esperava, também, notícias sobre seu novo comando. Mas as notícias chegaram com uma carta do Almirantado, que o convocava a Londres para uma audiência com os Lordes do Mar. Ele não sabia o que poderia significar aquilo, mas estava para o que desse e viesse. Leonor observava a apreensão, mas ela sabia dos momentos do marido, e não se intrometia...
Nigel estava preocupado com a convocação dos Lordes do Mar. Eles eram as grandes autoridades da Marinha Real, que determinavam os rumos e o desenvolvimento da estrutura da Marinha, desde suas regras de conduta a tecnologia. Ele se lembrava de quando foi indicado para o setor experimental por seu mentor, capitão Travers, e se comentou que ela jovem demais para o posto. Mas ele superou cada etapa com maestria e competência, e mais o nome da família abriram outras portas.
Os cinco Lordes do Mar já o esperavam. Ele chegou pontualmente à sala de reuniões e perfilou-se diante daqueles almirantes, que o fitavam com um misto de curiosidade e um certo ar de espanto. O almirante Lorde Ruthland foi o primeiro a usar a palavra.
- Comandante Willingthorpe, sabe o motivo de sua convocação aqui?
Ele acabara de saber um deles. Havia sido promovido. Agora, restava saber qual seriam as outras razões.
- O senhor teve contatos há um ano com um jovem oficial chamado Charles George Gordon? – Perguntou Lord Ruthland
- Sim, nos encontramos no Navy and Army Club.
- E o que acha das posições dele?
- O senhor deseja a minha opinião ou apenas acarear-me com os fatos?
- Não sou eu quem está sendo interrogado, comandante – Respondeu Lord Blamey – Apenas se atenha aos fatos.
- Sinceramente, nosso envolvimento na China, mesmo vitorioso, pode se revelar um desastre, Milordes. Não faço eco à insubordinação, mas acho que isso deveria ter sido mais bem pensado.
- O senhor concorda com ele?
- Não é uma simples questão de concordar. Muitas vezes, estar de fora do problema nos dá uma visão mais clara de como ele é. Os privateers desafiaram as leis internacionais e agora impuseram à China um estado pirata, e a ilha de Hong Kong é a sua capital.
Os Lordes confabularam por um momento. Ele não estava errado. O governo havia concedido poder demais aos traficantes, e eles exacerbaram, constituindo verdadeiras frotas piratas e ameaçando o comércio na China. Por mais que alguns fossem aliados, mesmo frouxamente – caso de Malcolm Struan – não se sentiam ligados à lei britânica, e sim às suas próprias fortunas. Nigel conjeturou o que poderiam estar definindo ali.
- Comandante Willingthorpe, achamos que o senhor, então, é o homem certo para a tarefa que estamos a lhe incumbir. O senhor é um observador experiente, além de um marinheiro de raro talento. O senhor já esteve no Brasil, comandante?
- Apenas de conhecer a costa, Milordes, quando patrulhava atrás de negreiros.
- Pois por nossa determinação, o senhor está sendo nomeado nosso adido no Brasil. Residirá no Rio de Janeiro. Já tomamos todas as providências necessárias. O senhor será os olhos e ouvidos da Rainha em relação à situação da escravidão e do tráfico naquela área. Compreende a importância de sua missão, comandante?
- Sim, inteiramente.
- Então, comandante, sucesso em sua missão. Está dispensado
Ao retornar a Seagate Manor, contou a Leonor e à mãe tudo o que havia ocorrido no Almirantado. A condessa apenas sabia do Brasil pelas conversas com o genro, e elas não eram nada tranqüilizadoras.
- Meu filho, como estará a situação da cidade para onde vais?
- O Rio de janeiro está em ordem, minha mãe. Apenas algumas províncias estão rebeladas.
- Mas o fogo, se acha para onde se espalhar, não vê distâncias, meu filho... Muito cuidado.
Três dias depois, Leonor e Nigel seguiram para Portsmouth, de onde tomaram o vapor que os levaria ao Brasil. Nigel se preocupava se a esposa estava contrariada ou não a respeito daquela missão. Se isso ocorria, não havia nenhum sinal da parte dela. O ar do mar parecia avivá-la, torná-la mais viçosa e radiante. Até que ela fez a ele a revelação.
- Espero o nosso filho. Ele nascerá neste país. – disse no sorriso, beijando-o intensamente – O seu amor cresce em mim, Nigel, meu tesouro.
Ele não cabia em si de contentamento. Um filho! Mais um Willingthorpe neste mundo. Uma coisa que o deixara muito contente foi a possibilidade de visitar a irmã, mas antes ele precisaria saber da situação para antes tomar uma decisão;pelo que contara a mãe, ela estava para dar à luz, se isso já não tivesse acontecido.
A paisagem do Rio de Janeiro foi um forte impacto para ele. A primeira coisa que o impressionou foi a intensa azáfama do cais do porto, com os navios de escravos chegando, a atividade febril de leiloeiros buscando os melhores lances. De um lado a outro, pessoas a cavalo, a pé ou simplesmente transportadas nos ombros dos escravos, as damas em liteiras – chamadas de cadeirinhas de arruar – os homens em redes de algodão cru. Não havia pavimentação, apenas ruas de lama e os famosos sobrados portugueses, com suas janelas com sacadas e azulejos de porcelana – que eram familiares a ele de Macau e Goa. Leonor sentiu-se um pouco na sua Lisboa natal. De repente uma figura alta, de cabelo ruivo e suíças espessas, chamou-os em voz alta.
- Comandante Willingthorpe? Sou o contramestre Fulton, às suas ordens. Tenho ordens do Almirante Greenfell para acompanhá-lo às suas instalações. Desculpe o mau jeito, senhor. – Riu, enquanto ordenava aos escravos que levassem a bagagem.
Uma carruagem já os esperava, e os conduziu primeiro à casa que residiria, um sobrado próximo ao Paço Imperial e ao Hotel dos Estrangeiros. Era amplo, de janelas idem, onde o sol batia e dava luz e cor próprias a ele. Fulton coordenava a arrumação da bagagem, enquanto Leonor percorria a casa, conhecendo o que seria seu lar daí para diante. Ela gostou da maneira como a luz do sol entrava, e imaginou como seria quando o bebê chegasse.
- Meu amor, cuide de tudo aqui, enquanto vou ver o Almirante Greenfell. Preciso me apresentar.
Ainda de uniforme, Nigel se dirigiu para a sede da embaixada britânica, cruzando as ruas e perscrutando o movimento. Para onde quer que fosse, a massa de escravos era predominante. Ele se perguntava como seria se todos os escravos se rebelassem. De fato, já havia acontecido uma insurreição na Bahia cinco anos antes, mas ela foi tão severamente reprimida que os escravos ainda estavam “pacificados”, ao menos por enquanto
- Ora, Ora, Ora! Quem temos aqui? O filho de Thomas Willingthorpe! Esqueça os graus pelo menos por enquanto, rapaz, sente-se e sirva-se.
O Almirante John Pascoe Greenfell era talvez mais investido de autoridade do que o próprio embaixador inglês. Veterano das Guerras Napoleônicas e da Guerra da Independência do Brasil, era, por assim dizer, comandante em chefe da Marinha Imperial, no lugar que era de Lord Cochrane, que foi o comandante à época. Greenfell vinha do sul, onde os farroupilhas ainda eram uma pedra no sapato do governo, que vivia num completo impasse.
- Se eles tivessem ao menos uma marinha que pudéssemos afundar, meu rapaz, mas eles lutam em terra, e como lutam bem!
O almirante o pôs a par do que se passava nas províncias rebeladas, e, também, do movimento que já se ensaiava, nos meios políticos, da antecipação da maioridade do Imperador, que, achavam eles, era o único meio de dar tranqüilidade ao país. De acordo com a Constituição, ele só poderia assumir o trono com a idade de vinte e cinco anos; tinha apenas treze, e isso poderia prolongar o banho de sangue; enquanto isso o governo era exercido por regentes, uns fortes e competentes, outros não mais que fantoches políticos.
Na estância, Lucas acabava de entregar a mensagem a seu pai, quando viu o grupo de cavalarianos se afastando. Viu o pai a ler a missiva, e entre reações de espanto e franzir de cenho, entregou-a ao filho.
- Os imperiais estão num impasse com os farrapos, filho. Estão recrutando todo o pessoal das estâncias ao redor para compor cavalhadas. Esta mensagem diz muito e é ao mesmo tempo uma ameaça velada.
Lucas tomou a mensagem e a leu
“Caro coronel Julião
Nossa causa urge de reforços e víveres. Os imperiais apertam o cerco e estamos cada vez mais comprometidos em defender o nosso país, e todos os que vivem nele devem contribuir para essa sobrevivência. Daqui a uma semana, um de meus piquetes virá arregimentar gentes para as cavalhadas. Vossa mercê poderá nos ajudar com o que tiver e puder. Quem poderá garantir o futuro de nosso país, se não pudermos defendê-lo?
Bento Gonçalves da Silva
Presidente da República Rio-Grandense”
- Isso não é velado! É uma ameaça direta!!!
- Sei disso, meu filho. É por isso que precisamos nos aprestar. Chame Atanásio e reúna os peões da estância. E mande mensageiros às estâncias da Figueira e da Gamela, para que os compadres Matias e Fernão estejam comigo. Mande que ele se avie depressa.
Nadejda estava na sala, junto com a cunhada Luciana, quando ouviu o movimento dos homens da soleira. Um pressentimento lhe passou no peito, e a criança em seu ventre agitou-se. Já sabia daquele tipo de sensação, contada pela mãe no dia em que nasceu. Já ia levantar-se, quando Lucas a interpelou.
- Tranqüiliza-te meu amor, é apenas uma preocupação de meu pai
- Meu coração diz que não, tesouro. Alguma coisa vem vindo.
Aprendera a respeitar os instintos dela, que sempre estavam alertas para as coisas deste e do outro mundo. A gravidez já anunciava seu final, e Eméria se mudou para a casa, pra ficar de olho na mulher do seu senhor. Já o tinha trazido ao mundo, agora ia trazer a cria dele...
Não demorou muito para que as coisas se dessem.
Atanásio chegou esbaforido, a montaria espumando, e com muito esforço se manteve de pé enquanto relatava tudo que vira e ouvira a seu patrão
- Patrão, Sinhô Fernão vem, mas Sinhô Matias ta morto. Os farrapos queimaram a estância dele. Só sobrou a muié e dois fio.
- Tudo bem, Atanásio. Fizeste bem feito. Vai à cozinha e pede a Eméria que te dê água e comida
Julião aprestou os homens da fazenda, mandando Teresa e as mulheres pro Torreão da casa. Aquela estrutura tinha sido feita pelo pai de Julião, Jerônimo, quando ainda havia a guerra com os castelhanos. Era uma estrutura forte, feita de pedra, com um poço no térreo, para evitar que morressem de sede. Nadejda não pôde deixar de notar a semelhança entre aquela estrutura e as torres de menagem dos castelos que ela vira na Europa. Caminhava com dificuldade, amparada por Eméria, que a ajudava a subir as escadas do Torreão. A ala de refugio era no meio da torre, senda as partes mais acima usadas pelas sentinelas que a guarneciam.
Fernão e seus homens chegaram quatro horas depois, se posicionando nos arredores. FernãoGraça Morgado era de antiga família paulista, que migrara para o sul depois da Guerra dos Emboabas, quando perderam a primazia de exploração das minas. Seu pai também combatera os castelhanos, e granjeara vasta extensão de terras na campanha, na avançada da fronteira com a Banda Oriental. Chegava a cavalo com a mulher, Laurinda, que era dita ser tão guerreira e hábil nas armas quanto o era o marido. Numa carreta, com os poucos pertences que sobraram, vinha Luísa, mulher de Matias Barreiro, morto pelos farrapos por protestar sua lealdade ao Imperador. Ela vinha com os dois filhos, Ana e Pedro, o mais jovem, ainda de colo. Mesmo com a dor da perda do marido, o rosto era altivo, nobre.
- Compadre Julião, peço sua acolhida e sua hospitalidade, e também pra viúva do Compadre Matias.
- Está dada de coração, Compadre. Sabe que o amigo é sempre bem-vindo
- Oxalá essa visita fosse em dias melhores, compadre – Arrematou – Mas os tempos são os tempos.
Luísa e as crianças se acomodaram no Torreão, enquanto os homens se organizavam para a defesa. Lucas dava ordens aqui e ali, tentando não deixar nenhuma parte da sede descoberta. Mas seus olhos iam, quase sempre, para o torreão, onde estava seu amor, e que, dentro em breve, traria ao mundo o filho que ele tanto esperava...
Nigel e Leonor já estavam aclimatados ao Rio. Caminhadas pela manhã, despachos junto ao embaixador inglês e eventos sociais, já preenchiam seu cotidiano por completo. Uma boa ajuda veio de Leonor, pois, como já estivera no Brasil, ajudou-o a respeito dos costumes da cidade e alguns da Corte, onde achou interessante que, para que o país ficasse independente, um príncipe da antiga metrópole teve de ser o autor da manobra. Num dos eventos da corte em que participaram, foram apresentados ao jovem imperador. Era um menino de treze anos, parecendo desconfortável ante aquela pompa toda. O corpo diplomático em sua totalidade estava presente, e, quando chegou a sua vez de apresentar seus respeitos ao Imperador, o mesmo foi quem tomou a iniciativa;
- Seja bem-vindo ao Brasil, comandante. Imagino que já esteja aclimatado. O calor é sempre um problema para os europeus, estou certo?
- Sim, Majestade – disse, fazendo uma mesura – Mas já nos acostumamos. Minha esposa me ajudou bastante.
- Ah, isso é muito bom. Visite-me, quando estiver com algum tempo. Sempre estarão abertas as portas. Gostaria muito, de coração.
- Farei o possível, majestade – disse já se despedindo
Havia visto nos olhos do imperador mais que interesse. Era como se pedisse sua ajuda, como se ele fosse um guia, uma espécie de instrutor. “Acho que pensei com exagero”, dizia, de si pra si, divagando sozinho. Leonor também o percebera, e não deixou de observar tal comportamento da parte do jovem imperador.
- Ele é apenas um menino – disse com assertividade – Um menino assustado diante de tanta responsabilidade.
- Também acho, meu amor. Mas ele é a maior esperança de estabilidade deste país. A instabilidade é péssima para nossos interesses aqui. Se eu puder fazer algo, farei o que eu puder.
A impressão geral dele sobre o país era boa, mas duas coisas ainda o incomodavam muito. Uma delas era a ainda persistente escravidão. A despeito dos esforços de pessoas como o reverendo Wilbeforce, que fizeram com que a Inglaterra libertasse seus escravos em 1833, a escravidão ainda era um mal endêmico em muitos lugares, sendo o Brasil o maior país ainda a manter o regime de escravidão. Nigel se perguntava aonde aquilo ia andar...
Na estância o amanhecer veio com as sentinelas avançadas dando os sinais de que os farrapos se movimentavam. A cavalhada vinha sem formação, sinal de que não esperavam oposição. Todos se colocaram alerta, armas azeitadas e lâminas afiadas. Não tinham ilusões. Sabiam que ia correr sangue...
O primeiro piquete foi avistado logo que a luz do sol bateu na campanha. Não vinham em formação, possivelmente por achar que encontrariam a estância vazia. De longe, o Torreão impunha sua presença, dando um ar de força à edificação. Os farrapos avançavam lentamente, sem perceber que a aparentemente quieta estância estava cheia de armas bem prontas para a luta. Lucas estava na dianteira, aguardando o momento certo para atirar. Não tirava, porém, os olhos do Torreão, onde estava seu amor, e seu filho.
A cavalhada avançava despreocupada, sem saber que caminhava para uma armadilha.
Com o primeiro estampido, os homens se dispersaram, cada qual procurando abrigo para se proteger e atirar de revide. Lucas se deslocava com sua gente, buscando sempre um lugar diferente para fustigar os atacantes. Ao mesmo tempo, seu filho ia marcando sua chegada ao mundo...
Os tiros iam em rápida sucessão, ora estropiando um , ora matando outro. Lucas era exímio atirador, e não errava sua mira em ninguém. A cavalhada dos farrapos tentava tomar a estância numa carga armada, mas foi contida pelos peões sob o comando de Lucas, que os dispôs a cobrirem-se mutuamente, uma fila atirando enquanto a outra ia recarregando. A cavalhada tentou contornar a casa, mas foi recebida pelos peões de Fernão Morgado, que se posicionara na retaguarda.
No Torreão, Nadejda e Eméria traziam o filho de Lucas ao mundo. A luta era grande lá dentro como fora. Parecia que a senda dos Willingthorpe era trazer seus filhos ao mundo no meio das batalhas. Ela era ajudada por Eméria, que, apalpando aqui e ali, fazia com que o parto fosse mais fluido.
- Não te apoquentes, mulher, teu filho vem, tem certeza.
La fora, a cavalhada tentava, de todos os meios, romper aquela barreira. Já haviam perdido gente demais, e não conseguiram tomar a estância. Lucas estava já quase exausto, os homens já estavam com pouca munição. Logo seria a hora em que sabres e adagas falariam mais alto, e muitos mais morreriam
No Torreão, Nadejda, com todas as suas forças, fazia seu filho nascer. Sua mãe havia conversado, quando ela começava a mudar de criança a mulher, das artes da paixão, do prazer, e da maternidade, e dizia das dores, que eram dores intensas, mas que eram logo esquecidas assim que o bebê nascia... Agora, ela as estava sentindo, tal qual sua mãe havia falado. Intensas, penetrantes, mas, dentro delas, se sentia realizada por trazer o fruto de seu amor ao mundo...
No Rio, chovia a cântaros. Nigel estava a ler poesia, enquanto Leonor dedilhava o bandolim, quando uma nota desafinada avisou que mais um Willingthorpe também estava a caminho...
Em Seagate Manor, os ventos do Norte traziam o inverno. A condessa Ludmila lia ao lado da janela, quando sentiu uma presença familiar, familiar demais. Virou-se lentamente, e viu, da luz da janela, o seu Thomas. Estava como da última vez que tinham se visto, o sorriso de antes, os mesmos olhos vivos e penetrantes. Ela se levantou para se aproximar, mas ele fez um gesto para que ela permanecesse onde estava. Ele se aproximou, a beijou e disse: “Logo chegará o dia em que estaremos juntos, meu amor; mas a vontade de estar contigo foi mais forte. Logo estaremos lado a lado. Eu te amo”. Ela permaneceu ali, enquanto ele se desvanecia na noite...
Duas mulheres traziam mais uma geração dos Willingthorpe ao mundo. Num país intenso, duas partes de uma geração lutavam por nascer, no meio dos elementos e do estrépito das armas.
Os farrapos arremetiam com toda a força em seus ataques. Cargas e mais cargas eram detidas pela renhida defesa dos que estavam na estância. Do torreão, as sentinelas, escolhidas pela sua boa pontaria, abatiam os chefes dos piquetes com tiros certeiros. Mais abaixo, outra luta e desenrolava, e Nadejda se mostrava à altura, usando de toda a sua força e intensidade para trazer aquela criança ao mundo. Eméria não a deixava, as duas trabalhando juntas.
A noite chuvosa havia transformado as vias num lamaçal, impedindo qualquer saída. Nigel não conseguia achar ninguém naquele dilúvio. Nada podia ser visto num raio de metros. Voltou á casa e contou o que tinha visto à mulher. Ela, mantendo sua calma, apenas disse;
- Terá de ser por você, meu amor. Terá de trazer você o seu filho ao mundo...
A história apenas começava para aquelas duas mulheres
Na estância, a luta tomara seu aspecto mais cruel. Uma parte dos defensores ficara sem munição, e enfrentava os farrapos corpo a corpo. Era lança contra sabre, faca contra adaga. Gargantas eram cortadas, braços decepados, corpos rasgados. Mesmo assim , os farrapos não conseguiram penetrar a defesa de Lucas e de Fernão. Exaustos, mas sem se deixarem abater, eles dirigiam os homens para os pontos mais fracos, não deixando nunca os atacantes atravessarem.
No Torreão, Nadejda estava no limite de suas forças, mas seu filho estava nascendo,. Ela sentia que era uma criança forte, pelo que suas forças eram empregadas. Eméria, em meio ao esforço da mãe, se sentia feliz, por trazer à vida o filho do seu senhor. As sentinelas poupavam a munição, acertando mais seletivamente seus alvos.
Leonor também tinha a sua luta,. Ela dirigia Nigel em todas as etapas, lhe dizendo o que fazer e como fazer. Não era inexperiente, pois ajudara várias criadas nesse mister, na casa de seu pai em Macau. Agora, era a vez dela. Nigel, num quê de ansiedade, seguia todas as instruções de Leonor; lá fora, os relâmpagos ribombavam cada vez mais alto, e a chuva não dava sinais de parar...
Os farrapos tentaram, então, mais uma carga, centrando no ponto mais fraco da defesa, perto do armazém da casa. Os defensores, em gestos arriscados, buscavam os alforjes dos mortos, em busca de alguma munição. Já não havia mais nenhuma. A cavalhada vinha em mais uma arremetida, quando, de repente, surgem Lucas e seus homens, e, num último esforço, descarregam a última carga de munição que lhes restava. Os farrapos, tomados de surpresa, perdem o ímpeto e se dispersam, e os peões da estância, coragem renovada, arremetem em cima da cavalhada. Homens são apeados e mortos, cavalos sem cavaleiros galopam no campo, mortos e feridos se espalham. Lucas luta bravamente, mas, num momento de distração, um pontaço de lança lhe perfura o ombro. Uma dor fina e penetrante o invade, mas ele não perde o prumo. Se desvencilhando da lança, gira o sabre e talha o sujeito de alto a baixo, matando-o instantaneamente. Ainda vê a cavalhada bater em retirada, antes de perder as forças e cair no chão Atanásio o vê cair e o carrega pra dentro do Torreão, onde, finalmente, seu filho vem ao mundo. Mas agora se precisam ver outras coisas
Um relâmpago, mais forte que todos os outros, marca a chegada do filho de Nigel. Leonor arrefece, quase desfalecida, enquanto Nigel lava seu filho e o agasalha, para entregá-lo à mãe, não sem antes também cuidar dela. Depois ele entrega a ela o bebê, e ele, sôfrego, busca na mãe o calor e o alimento de seu seio.
- Lutaste bem, meu amor. Veja o seu filho, como ele é belo.
O bebê viera muito parecido com ele, mas os vivos e intensos olhos verdes não deixavam dúvidas de que a essência daquela corajosa mãe estava lá. Ele se aconchegou ao lado dela, as lágrimas de emoção jorrando caudalosas
- Me perdoe – Disse ele – Por fraquejar.
- Porque fraquejar, meu amor? Foste o mais forte dos homens esta noite. Trouxeste teu filho à luz. Quer ato mais corajoso?
- Mas tive medo quando estava acontecendo. Medo de falhar com você
- Eu sabia que jamais irias falhar, meu amor. Jamais

A batalha havia terminado. A cavalhada dos farrapos fora detida; agora, era hora de tratar os feridos e enterrar os mortos. Fernão Morgado também estava ferido, com uma bala de mosquete no braço esquerdo. Os mortos – amigos e inimigos – estavam sendo reunidos mais longe, para depois serem enterrados sem que os corpos envenenassem os poços.
No Torreão, Nadejda finalmente dera à luz um belo menino, de cabelos negros e olhos azuis, que chamou pelo mesmo nome do pai, Lucas. Uma nova família nascia, a dos Willingthorpe Almada. Não houve vento frio, nem bater de janelas. Apenas mais uma criança vindo ao mundo, entre tantas mortes. Nadejda relaxou, enquanto o bebê também nela buscava o conforto, o aconchego e o alimento de seu seio. Sabia que o seu amor não morrera. Voltaria pra ela, voltaria para conhecer o filho, e para novamente amá-la...
Nigel deu a seu filho o nome de Robert, como o primeiro dos Willingthorpe, ainda na época Elizabetana, que havia lutado com Drake e Frobisher contra os espanhóis. Leonor aprovou o nome, sentindo que ele seria um símbolo de força e coragem. Descansou, pois a noite tinha sido muito exaustiva para ela, e sabia que, depois, precisaria de todas as suas forças...
Na manhã seguinte, um estafeta veio com uma mensagem endereçada a ele, em que “Sua Majestade Imperial o convocava para uma audiência informal no Paço de São Cristóvão, às três da tarde”. O estafeta esperava a resposta de Nigel, e ele confirmou a presença lá. Quando contou a Leonor, ela assentiu, dizendo que era sábio que ele tivesse esse contato, devido à grande importância.
- Não se preocupe comigo, meu tesouro. Estou bem e Robert também está. Além disso, pense na importância desse convite
Leonor sabia o que dizia. Há algum tempo os políticos se movimentavam numa campanha pela maioridade do Imperador. Diziam que era a única maneira de levar estabilidade ao país, sacudido por conflagrações e rebeliões em quase todas as províncias. Balaios, Cabanos e Farrapos estavam minando, segundo muitos, a estabilidade do país, e eram necessárias medidas urgentes, e uma delas, segundo a maioria das pessoas, era a antecipação da maioridade do imperador, já que os regentes não conseguiram se impor como força política.
Exatamente às três da tarde, a carruagem de Nigel adentrou no jardim do Paço de São Cristóvão. Era uma residência de fachada não tão pomposa, embora ocupasse um espaço amplo. No jardim, o camarista do paço já o aguardava para conduzi-lo à presença do Imperador. Aguardou no salão nobre do Paço, até que o imperador apareceu. Não vestia a roupa de cerimônia, como de outras ocasiões, mas uma sobrecasaca de cor cinza com calças brancas, com um broche na lapela, uma miniatura da Coroa Imperial. Os cabelos bem penteados davam mais a ele o ar de um estudante do que o de um Imperador.
- Como tem passado, comandante? – disse ele em francês, língua em que parecia estar mais à vontade - Há muito não nos vemos. Mas entendo. O protocolo nos obriga a sermos exigentes demais com nós mesmos, eu admito
- Estou bem, Majestade. Folgo em saber que está bem da mesma forma
Subitamente, o imperador fez um sinal, e o camarista do paço cerrou as portas do salão. Apenas ele e o Imperador estavam lá, a sós. Dirigiram-se a uma das bancadas, que dava para o jardim.
- Gosto deste espaço. Recorda-me uma parte da infância que foi marcadamente inesquecível.
O termo “infância” poderia estar mal aplicado, vindo de um menino de treze anos, mas as exigências de um protocolo e a consciência de sua responsabilidade o fizeram crescer rápido demais, podendo ele, com toda a segurança, referir-se à infância como um passado distante.
- Sabe o que se anda boatando pela cidade, comandante?
- Não, majestade – omitiu Nigel.
- Que a única solução para dar estabilidade e equilíbrio ao país é a antecipação de minha maioridade. Que isso traria paz ao império. O senhor sabe, é claro, que só poderei, pela constituição estabelecida por meu pai, assumir o trono daqui a doze anos. Mas muitos querem que eu assuma agora. O que me diz disso, comandante?
- Sempre aprendi, majestade – disse, entre ares desconfiados – que, quando nos sentimos prontos para fazer algo, estamos maduros para fazê-lo – completou
- Então o senhor concorda com essas pessoas?
- Acho que se tem de acabar com essa ruína das instituições, Majestade. Se me permitir falar livremente...
- O Barão de Caxias, que está no Maranhão a combater os balaios, me disse a mesma coisa. Deve-se mudar a constituição, se se quer salvar o país
-Acho que, se isso gerar a estabilidade, será muito bom
Nigel finalmente se convenceu. A conversa se prolongou por mais duas horas. Nigel despediu-se dele com um aperto de mão, cuja firmeza revelou uma excelente impressão por parte de ambos. Antes de sair, deixou com o imperador uma frase:
- Faça o melhor por seu país, majestade. Deus o guarde.
Após a cruel faina de enterrar os mortos – amigos e inimigos – os defensores da Estância do Lagar celebravam a sua vitória. Vários novilhos foram mortos e assados, na maneira de preparar carnes conhecida nos pampas. Lucas e Nadejda estavam no alpendre, a tudo observando, se confraternizando com os peões; Fernão Morgado e Laurinda dançavam a chimarrita, enquanto Luísa Barreiro, parecendo mais conformada, marcava o passo com os pés, com os filhos no colo
- Será que ainda atacarão, meu amor? – Perguntou Nadejda, ainda com os estertores da batalha na memória.
- Acho que não, tesouro – respondeu o marido, braço apoiado na tipóia – Nossos piquetes disseram que os farrapos vão longe daqui.
- Espero que sim. Quero você perto de mim, pra me amar muito.
No dia seguinte, a faina voltava a seu ritmo normal; o gado era reunido, os peões cuidavam de marcar bezerros, não antes de separar a sorte – o quarto bezerro de cada lote – como paga de serviço. Era assim nos pampas, onde o gado, seja ele onde estivesse – era a mola mestra da vida desses homens. Homens que nasciam e cresciam livres, como a vastidão dos campos.
Já recuperada, Nadejda decidiu se integrar em definitivo ao universo do marido. Já não vestia os vestidos rodados de antes, preferindo as roupas da região, ousando mesmo a vestir bombachas e a calçar botas de fole. Hábil amazona e melhor atiradora, se impôs entre os homens de seu marido, que a respeitavam como a ele próprio. Mas ela era toda carinho para com o filho, que era a luz dos olhos do pai. Ele crescia rápido, ágil, curioso com o mundo à sua volta.
- É um belo menino esse meu neto, minha nora. Parece que puxou ao pai, com essa vontade toda de crescer.
- As crianças são assim, curiosas com o mundo
- Meu Lucas era assim. Um menino traquina, inquieto com o mundo
- Esses ares de menino me trouxeram até aqui, minha sogra
- Vejo felicidade em meu filho, mas te advirto aqui de uma coisa.
- O que?
- A vida no continente é sempre de sobressalto... Ora se pode estar de paz, ora nossos homens partem pra lutar em outras bandas. Assim é a vida aqui.
- Minha família é de homens do mar, minha sogra. Sabemos muito bem o que a senhora fala. Minha mãe mesma sabe o que é isso. Perdemos nosso pai, eu e meu irmão gêmeo, no dia em que nascemos
- Então estás preparada pra viver aqui, minha filha. Estás mais que preparada.
No Rio, Nigel seguia com seus deveres de observador. A situação política na cidade se agitara, com os clubes da maioridade fazendo abertamente campanha pela antecipação da maioridade do Imperador. Em todas as províncias pipocavam clubes maioristas, que publicavam editorial após editorial, defendendo que o Imperador deveria assumir a nação, antes que a anarquia assumisse. Ele pensava naquele garoto de quase quatorze anos, investido de uma responsabilidade que, por mais que estivesse preparado, era assustadora. Ele teria de pacificar um país. Sempre estava em audiência, ao menos uma vez por dia, no Paço de São Cristóvão. De uma relação de respeito, nasceu uma profunda amizade, na qual Nigel era quase um pai. Ele pensava em Robert, seu filho, e jamais descuidava de , além de sua educação, dar todo o seu amor de pai, sempre que estava próximo.
Uma semana depois, realizou-se a cerimônia de batismo, segundo o ritual anglicano. Foi uma cerimônia doméstica, pois a Constituição brasileira, apesar de ser tolerante com as demais religiões, considerava apenas a Igreja Católica como oficial; as outras religiões eram permitidas, mas apenas em seu culto doméstico, sem templos ou santuários. Assim, Robert Monforte Shatov-Willingthorpe se tornava cristão. O Imperador mandara um presente – uma cruz de ouro com cravejamento de esmeraldas – através da Condessa de Gouveia, uma amiga de Leonor que era esposa do camarista do Paço.
Numa das audiências que o Imperador concedia a Nigel – momento pra oportunas conversas informais. – um grupo foi anunciado pelo camarista. Tinham urgência de falar com o Imperador. Eram representantes dos vários clubes maioristas das províncias, que queriam uma audiência urgente. Depois de convencerem o regente, Pedro de Araújo Lima, um político calejado e homem de visão, embora fraco, se dirigiam agora ao próprio Imperador, pedindo uma decisão se aceitaria ou não o trono. O Imperador os fitou, um a um. Seus olhos pareciam ler as vontades de cada um dos membros daquela comissão, a esperança nos olhos de cada um. O Imperador olhou para Nigel, que apenas assentiu com a cabeça. A seguir, os membros do comitê perguntaram, em um tom de quase implorar.
- Sua majestade deseja seu reino? Sua Majestade quer assumir o trono de seu pai?
- Quero já! – Disse, com voz firme e olhar idem – Quero já!
As ruas do Rio se tomaram de festa. “Temos um Im perador”, gritavam os passantes. “Viva Dom Pedro segundo”, gritavam outros. Nigel estava contente, e, de certa forma, aliviado. Aquele menino se tornara um homem. Isso ele lera nos olhos dele. Aquele menino saberia governar o país. Agora, ele teria de ter paciência para toda a azáfama e a lufa-lufa da cerimônia de coroação. Aquele seria um dia longo...
As notícias da antecipação da maioridade e da coroação do Imperador chegaram à estância do Lagar à tardinha, quando Atanásio chegava a galope, vindo da estância de Santana da Alegria. Trazia os exemplares de jornais do Rio, que tratavam da coroação do Imperador e do Movimento Maiorista. Lucas estava chegando ao alpendre quando tomou a notícia das mãos do capataz.
- Isso é sério mesmo?
- É, sim, patrãozinho – disse entre arrancos – os homens da capital coroaram o Imperador e estavam dando vivas até agora.
Lucas tomou os jornais nas mãos e os levou a seu pai, que leu com atenção cada linha. Um suspiro de alívio saiu e seu peito. Seria a esperança de paz para a região , que ainda sofria com a confrontação entre farroupilhas e imperiais. Nadejda o acompanhou, o pequeno Lucas no colo, enquanto conversava com o pai.
- Será mesmo a paz, meu pai? Os imperiais e os farrapos ainda não estão cansados de pelear, que eu saiba
- Mas um imperador, meu filho, já é diferente. Vê que o Rio de Janeiro já entrou em calma.
- Mas aqui os ânimos estão mais exaltados, e os farrapos deram um passo que não podem voltar atrás...Eles perderiam prestígio
Ele sabia do que falava. Mesmo com propriedades e gado na Banda Oriental, os farroupilhas deram um passo que os colocava como inimigos figadais do governo imperial, que muito possivelmente não teria clemência com eles. Mas já tinha sabido da chegada do Barão de Caxias, que assumiria o comando das tropas imperiais. Ele já havia debelado a Balaiada, e faria o mesmo com a Farroupilha. Como era de praxe, chamou os líderes para negociar, mas nem Davi Canabarro nem Bento Gonçalves se aprestaram. Assim, começou lentamente a negar terreno aos farrapos, deixando pouco espaço para que eles manobrassem, pois Caxias sabia que não poderia vencê-los nas regras deles, ou seja, na cavalaria. Ele teria de desgastá-los para vencer
No Rio, Nigel, tinha mais uma audiência com o Imperador, desta vez já como soberano coroado. Em seu uniforme de cerimônia, estava pouco à vontade, mas voltar a ver o Imperador fez bem a ele
- Como tem passado, comandante? E o pequeno Robert?
- Estamos bem, Majestade. E o senhor?
- O senhor tinha razão, comandante. Uma responsabilidade e tanto
- Que o senhor saberá conduzir sabiamente.
- Esqueça as formalidades, agora, me conte como está a família e as notícias da Inglaterra.
Ao chegar em casa, comentou com Leonor as novas da audiência, e como estava a situação do Imperador. Conseguira unanimidade mesmo nas províncias mais agitadas, e parecia que tudo iria se encaminhar. Leonor escutava tudo atentamente, enquanto amamentava o pequeno Robert..
- Meu amor, esta mensagem chegou para você. Do próprio almirante Greenfell
Ele abriou cuidadosamente o envelope, que trazia uma convocação do almirante, para que seguisse com ele para o Sul, ao porto de Laguna, mas antes passaria em Porto Alegre, para abastecer a tropa que levava ao sul. Ele franziu o cenho, preocupado, pois não queria deixar Leonor nem o pequeno Robert na cidade. Pediu que pegassem o primeiro barco para a Inglaterra, ficassem um tempo com a condessa Ludmila, at´pe que ele dissesse que tudo estava seguro.
- Acho que é melhor pra vocês no momento. Ademais minha mãe quererá conhecer o pequeno Robert.
- Sei de tua preocupação, meu amor. Não seria necessário, mas já que achas melhor, iremos eu e o pequeno Robert.
Enquanto o navio partia para a Inglaterra, Nigel se juntava ao Almirante Greenfell e partia para o Sul, onde outra aventura começaria...

Chegaram ao litoral de Santa Catarina por volta da tarde, depois de alguns dias de mar um pouco agitado, desmanchando a impressão, criada pelo Almirante Greenfell, de que Nigel fosse apenas um soldado de gabinete, um burocrata de Londres. Ele se revelara um completo marinheiro, surpreendendo pelo conhecimento das correntes do litoral, um litoral que ela esteve apenas por aproximar-se; Greenfell rendeu-se às habilidades de Nigel. Fundearam na Barra , pois a cidade ainda estava sob o poder dos farrapos, que tinham proclamado a República Juliana um ano antes , mas informantes dentro da cidade aviaram a Greenfell que os farrapos eram cada vez mais odiados, e ele iria se aproveitar disso para capturar a cidade.
- Meu plano, comandante, é me aproximar mais do litoral na calada da noite, e desembarcar as tropas de surpresa. Não cometerei o mesmo erro duas vezes
Ele falava de uma mesma tentativa, feita há um ano, mas as barcaças de desembarque foram surpreendidas por dois lanchões armados dos farrapos, que foram trazidos campanha adentro sobre rodas, por um grupo de farrapos comandados por um italiano chamado Giuseppe Garibaldi. As barcaças foram atacadas e tiveram que se retirar, sob fogo dos lanchões farrapos. Mas ele não permitiria que isso acontecesse uma segunda vez.
Ludmila recebeu com alegria Leonor e o pequeno Robert, tomando o neto no colo assim que chegaram a Seagate Manor. Leonor contou da cidade do Rio de Janeiro, das audiências de Nigel com o Imperador, e do nascimento do pequeno Robert. Ela ouviu tudo atentamente, contando também a Leonor a história da aparição de Thomas. Mas o mais importante é que seu neto estava lá, para mimá-lo, senti-lo; era como se um pouco de Nigel estivesse ali, com ela...
O desembarque em Laguna havia sido bem sucedido, e agora os rebeldes não tinham mais nenhuma saída para o mar. Cada vez mais eram empurrados para o interior da província, onde apenas sua habilidade como cavalarianos os impedia de ser derrotados completamente. Mas isso não poderia durar muito e, cinco anos depois, os farrapos faziam a paz. Não uma derrota, mas um armistício, lembrando a palavra de Caxias, que dizia que “tais homens não se venciam pelas armas”.
A missão de Nigel estava completa, e ele poderia se reunir à família na Inglaterra. Mas ele queria ainda fazer duas coisas.Uma delas ele fez de imediato: tomou o primeiro navio para Porto Alegre, e daí uma carruagem para a Estância do Lagar, onde Nadejda já o esperava, pois ele teve o cuidado de despachar um mensageiro para avisá-la.. Ela já estava no alpendre, em trajes gaúchos, com Lucas e o filho, e dona Teresa, pois seu sogro, Julião Almada, havia morrido no inverno anterior e Luciana, a cunhada, havia se casado com o filho de Fernão Morgado, que havia retornado da Europa, e viviam na Estância da Gamela.
- Meu irmão!!!Venha e me dê um beijo!!! Que saudades suas!
- Vejo que continua transgressora vestida assim, de forma tão forte. Que diriam teus amigos em Londres?
- Minha vida é aqui, me sinto bem assim. Mas não foi para criticar minhas roupas que viajaste tão longe. Conte-me as novas enquanto tomamos um amargo.
Depois do aperto de mão com o cunhado, Lucas adentrou a sede da estância, enquanto uma mucama lhe carregava as malas e ia preparar o seu banho. Enquanto isso, ela e Lucas escutaram atentamente a narrativa do nascimento de Robert, as audiências e a amizade nascida com o Imperador, e sua ação no desembarque de Laguna. Nadejda contou-lhe então a batalha na estância, os mortos e feridos e o nascimento do pequeno Lucas, que corria solto pela casa, até esbarrar nas pernas do tio, que o pegou no colo e o abraçou e beijou afetuosamente.
- Como todos na família, nasceste no meio de lutas. É nosso destino, não é mesmo, irmã?
-Parece sempre estar escrito em nós, meu irmão... Sempre.
Os dias foram maravilhosos na estância. Nigel desenferrujou suas habilidades eqüestres, surpreendendo Lucas, que achava que um marinheiro não teria habilidade com os cavalos. Mas Nigel se revelou um excelente cavaleiro, não decepcionando Nadejda, que achava que o irmão, depois de tanto tempo no mar, tivesse desleixado de cavalgar.
- Leonor e eu sempre cavalgávamos no Rio. Servia para nos distrair muito. E levávamos o pequeno Robert, também...Sei do crescimento dele apenas pelas cartas de Leonor. Devo voltar à Inglaterra nestes próximos quinze dias, para apresentar meu relatório ao Almirantado
- Que pena, meu irmão..Poderias ficar mais tempo..Mas sei de teus deferes, e jamais foste de ser leviano com eles.
Assim, Nigel deixou Porto Alegre e, antes de ir para a Inglaterra, solicitou uma audiência com o Imperador na Paço de São Cristóvão, no que foi prontamente atendido. Ao encontrarem-se, Nigel viu o quanto ele havia mudado. Já não era mais o rapazola assustado que vira pela primeira vez, mas um homem resoluto, senhor de si, não mais assustado, mas uma personalidade que, ao mesmo tempo, inspirava confiança e bondade. Em trajes comuns, parecia mais o reitor de uma universidade a um monarca. Mas era essa a imagem que sempre Nigel sentiu quando o viu pela primeira vez; mas dali também havia algo mais, uma força que, Nigel sabia,poderia conduzir o país.
- Prazer em vê-lo, comandante. Como vai sua caríssima irmã? Espero que bem.
- Está sim, Majestade. Todos se encontram bem, obrigado pela sua preocupação
- Com que então vai nos deixar, comandante. Sentirei falta de nossas conversas. O que vai colocar em seu relatório final?
- A mais positiva das impressões, Majestade. Meu país só tem a lucrar com a amizade entre nós. É com pesar que eu vos deixo e a este país. Meu filho nasceu nele, e tenho um respeito muito grande por esta terra.
- O senhor tinha razão comandante. Tenho de fazer o melhor por este país. Meu pobre pai não teve tempo de fazê-lo. Cabe a mim, agora..
- Então, majestade, faça sempre o melhor que puder, e não desampare este país...
- Tenha certeza de que não o decepcionarei, comandante. Tenha uma boa viagem. Que Deus o acompanhe.
- Também a vós, majestade.
Do tombadilho do navio, Nigel via a costa brasileira se desvanecer no horizonte. Sentiria falta daquela terra, que, agora, era o país de sua irmã. A viagem transcorreu calma e sem incidentes, e foi com alegria que Ludmila, Leonor e cada vez mais crescido Robert o receberam na varanda de Seagate Manor. Leonor o recebeu com um apaixonado e caloroso beijo, enquanto ele tomava o pequeno Robert no colo, e também com a mesma ternura abraçava a mãe, que, enfim o reencontrara.