SEAGATE MANOR, PORTSMOUTH, ABRIL DE 1862
Da janela leste, Nigel contemplava o oceano. A vista do mar sempre era o mecanismo por ele usado para pensar, pôr as coisas em ordem. Sempre fora assim, jamais deixara de ficar ao menos um pouco perto do mar, onde sabia que seus pensamentos sempre o levavam a uma solução.
Muitos anos haviam se passado desde que retornara do Brasil. A mãe, condessa Ludmila, morrera em paz, cercada pelos filhos e netos. Parece que esperara até o último suspiro a chegada de Nadejda, para só então, como foram suas últimas palavras, “juntar-se ao Thomas na eternidade”. Depois, como última vontade, quis que se fizesse uma tumba igual à dela, mas com o nome do marido, a seu lado. Nigel, ao perguntar o motivo, teve com resposta o seguinte;
- Não seremos nós, meu filho... Não seremos nós.
Agora, ele esperava a chegada do filho, Robert, que vinha de uma missão na África. Acompanhara a carreira do filho, e sentia que era ele uma ave de vôos altos, sempre se esforçando pra superar limites. Ele era diferente. Mais calculista e fleumático, sempre esperara o momento certo, mas não Robert Monforte Shatov-Willingthorpe. Ele herdara a alma latina da mãe, e também o talento para o bandolim e para os fados que Leonor continuava a cantar, dando mais cor à casa, ainda pesadamente enlutada.
Dois dias antes, recebera uma carta de seu colega no Bureau Naval, Almirante Aitken, de que “Robert era um excelente marinheiro, um comandante hábil como seu pai, mas sua acuidade e sagacidade o faziam candidato perfeito á compor nosso quadro de inteligência”. Ele não sabia se isso era um elogio apenas ou uma maldição disfarçada. Por gerações os Willingthorpe tinham se dedicado ao mar, sempre em comandos no mar, com apenas intervalos em funções, mormente diplomáticas.
Agora, Robert voltava da África, onde já haviam começado conflitos entre os colonos ingleses e Boers, descendentes de holandeses que povoaram extensas áreas da planície sul-africana, e fundado várias repúblicas ao longo do vale do Orange. Mas os choques aumentaram, porque havia sido descoberta uma grande jazida de diamantes e um veio de ouro na região de Kimberley, o que fez com que o número de estrangeiros – uitlanders, na língua bôer - aumentasse consideravelmente, desde caçadores de fortunas a bandidos da pior espécie. Com isso, os choques de fronteira na região da Colônia do Cabo estavam ficando cada vez mais sérios.
A carruagem parou exatamente na área central do pátio, sendo que Nigel não esperou na varanda. Foi direto até o filho, estendendo os braços, num abraço que foi intensamente correspondido por Robert
- Que bom que está de volta meu filho. Tenho novas a contar
-Também tenho muita coisa a contar, meu pai. Mas vamos para dentro, que a viagem foi assaz exaustiva.
- Vamos, sim. Sua mãe também sentiu demais sua falta.
O abraço de Leonor foi mais afetuoso ainda, cobrindo o filho de mimos e beijos, pois , para ela, ele ainda era o bebê rechonchudo que o pai ajudara a trazer ao mundo. Acomodou-o, trouxe-lhe chá e escutou, toda ouvidos, o relato de suas aventuras na África...Ele falara dos encontros com o Dr. Livingstone, um jovem pregador que lutava ainda contra o constante tráfico de escravos no continente, mais sendo um explorador do que um missionário, descobrindo sempre novas rotas dentro das selvas daquele continente, e com Sir Samuel Baker, geógrafo da Real Sociedade Científica e caçador rematado, e suas explorações na área do Rio Zambeze.
- Que coisas passaste, meu filho, mas ainda bem que estás em casa e perto de mim...
Robert sorriu, continuando a contar suas aventuras, as patrulhas dentro dos rios largos, como o Nilo e o Niger, as cidades da costa Oriental, meio africanas, meio árabes. Dormiram tarde aquela noite, pois Leonor, pressurosa, queria ouvir todas as narrativas do filho... As novas teriam de esperar mais um dia...
No dia seguinte, já refeito, Robert encontrou Nigel na biblioteca, onde conversaram um pouco mais sobre a África do Sul e sobre os acontecimentos que rodeavam a família. Robert perguntava sobre notícias da tia, que escrevia constantemente e era uma das razões de alegria, sempre que chegava alguma carta do Brasil. Nigel, então, falou sobre as novidades e da carta do Almirante Aitken, que surpreendeu pelo fato de Robert já estar informado a respeito.
- Sei do que se trata, meu pai. Fui eu quem pedi que o Almirante lhe escrevesse, pois não tive tempo de tratar disso antes de ir a África
- O que resolveu?
- Resolvi que vou aceitar, meu pai. Identifico-me com o trabalho.
- Eu jamais duvidei disso. Quando será sua primeira missão?
- Parto para o Brasil dentro de duas semanas. Mas não irei de uniforme. Para todos os efeitos, serei um agente comercial, representando uma firma inglesa.
- Mas porque o Brasil?
- Por causa da inépcia de um ministro, as relações entre nós e o Brasil estão tensas além do limite.
Nigel sabia do que se tratava. Por causa de dois incidentes ocorridos no ano anterior, as relações diplomáticas entre Brasil e Inglaterra estavam ficando muito tensas e rumavam em terreno perigoso, por causa do ministro inglês William Dougall Christie, que, exorbitando de suas funções, criou um sério problema diplomático. Os incidentes foram a prisão de dois oficiais ingleses, à paisana, que desacataram policiais num posto de aduana da Tijuca; o outro, o saque da carga de um navio inglês, o Prince of Wales, naufragado no litoral sul, perto de Santa Catarina; Christie, usando de pressão diplomática e tendo sob ordens duas fragatas da Marinha Real, havia apresado quatro navios mercantes brasileiros. Isso causou grande indignação no governo imperial, que exigia um pedido formal de desculpas, coisa igualmente exigida pelo ministro inglês. Nigel sabia disso porque tinha recebido, secretamente, uma carta do Imperador, cientificando-o da situação.
- Com que em quinze dias partes... Sua mãe vai ficar preocupada de novo.
- Não pretendo deixar que nada me aconteça, meu pai. Serei apenas um observador.
- Sei disso, mas eles também ficam na linha de tiro. Tome cuidado. Se possível, visite sua tia e mande minhas recomendações a ela e minhas saudades.
- Farei isso, meu pai, não se preocupe.
A viagem foi sem incidentes, os mares calmos e promissores. Apenas quando Robert adentrou a costa brasileira que pôde ver as fragatas da Marinha Real fundeadas na Barra, os navios mercantes apresados atados pelo gurupês. Ao desembarcar no cais Pharoux, pôde perceber a hostilidade com que a população tratava os ingleses em geral, a ao ministro Christie em particular. Charges maldosas dele estavam por toda a parte, assim como anedotas circulavam na cidade, sempre fazendo chacota dos ingleses. Robert tratou de hospedar-se no Hotel dos Estrangeiros, que lhe dava fácil acesso ao resto da cidade. Depois de tomar banho e descansar um pouco, foi acordado por batidas na porta, e um dos criados do hotel lhe avisava que um cavalheiro de uniforme queria vê-lo. “Seria o comandante Brotheridge?”,pensou. Mas seu chefe aqui só iria se apresentar daqui a dois dias; andou o criado avisar que em minutos ele iria descer. Quando chegou ao saguão, qual foi a surpresa em deparar com o primo Lucas, engalanado em um uniforme de dólmã azul e calça brancas de cavalaria, a julgar pelo sabre pendendo do cinto.
- Primo Robert! Que bom vê-lo! Que boa companhia faremos um ao outro aqui! – falaram em português, pois se sabia da hostilidade aos ingleses naquele período, e qualquer palavra poderia significar ofensa.
- Como soube que eu viria?Não escrevi a ninguém.
- Você, não, mas seu pai escreveu a minha mãe, e ela me escreveu. Estou num regimento de cavalaria sediado na cidade, o 26º. Vim vê-lo assim que informei da tua chegada. Como vê, quando se tem as amizades certas, não há nada que, nesta cidade, não se saiba – disse , num sorriso de canto de boca.
Encontrar com o primo foi uma coisa positiva, que ajudou a quebrar o gelo da cidade. Lucas o levou a todos os lugares, e, da mesma forma que seu pai, apaixonou-se pela cidade do Rio de Janeiro, que tinha um calor todo especial, mesmo com a atmosfera sombria que a Questão Christie criava. Robert contou de suas aventuras na África, das viagens com o Dr. Livingstone, e dos costumes diferentes que conhecera. Como confiava no primo, pôde contar o que o trouxera ao Brasil, o que o deixou assaz aliviado.
- Esse problema é café pequeno diante do verdadeiro problema, primo, isso eu asseguro.
- como assim?
- A raiz do problema está em nossa fronteira sul, não aqui. O real problema está no Paraguai, eu te digo.
- Me explique isto, primo.
- Simplesmente um ditador, Francisco Solano Lopez... Fala pra quem quiser ouvir que quer restituir ao Paraguai seu direito de navegação do Prata, e para isso está reaparelhando seu exército a um nível que jamais vimos., e construindo fortalezas no curso do rio Paraguai. Isso, caro primo, é se preparar apara a guerra.
Robert escutou atentamente as explicações de Lucas, anotando cada detalhe do que o primo falava com acuidade, pois não se daria ao luxo de anotar. Um problema não previsto, esse Solano Lopez. Teria de consultar seu superior , comandante Brotheridge, sobre o assunto. Mas ele não se surpreendia, pois já havia colhido aqui e ali alguns informes sobre esta situação.As explicações do primo lhe firmaram a idéia. Precisaria ver de perto, para ter relatório mais preciso.
- Fique para o jantar, meu primo. Faria-me muito feliz.
- Bom, terei de me apresentar somente amanhã de manhã. Aceito, sim, seu convite.
No jantar, Lucas lhe explicou a situação no Prata, onde os conflitos entre Buenos Aires e os países vizinhos tinham ameaçado a estabilidade da região sul, com as disputas políticas entre blancos e colorados, ou, lendo-se melhor, as disputas entre a aristocracia fundiária e uma emergente classe de comerciantes que demandava maior participação política. Anos antes, estas disputas tinham cristalizado em guerras, nas quais o Brasil teve de intervir, para que a paz fosse mantida na região. Robert casou tudo que ele tinha ouvido com as explicações do primo, encaixando-as para formar, em sua memória, um mapa completo da situação. Robert pôs Lucas a par de sua missão no Brasil, no que o primo até se mostrou disposto a colaborar, pois não era bom para o país esse cabo de guerra com os ingleses.
- Com o que então veio como espião – Disse, troçando, Lucas – Espero que se saia melhor sempre.
- Acho que a troça faz bem mesmo, pois me deste uma luz sobre uma situação nova no país, que acho que devemos estar mais atentos.
- Certamente, primo.Acho que, igualmente para a Inglaterra, não interessa um continente instável, é mau para os negócios – disse
Despedindo-se, Lucas convidou Robert a ir à estância do Lagar, quando tivesse oportunidade, para conhecer a situação de perto.Ele não deu garantias, mas assegurou que iria fazer tudo por onde cumprir a visita.
Mais tarde, no quarto, ele escreveu várias cartas. Uma para o pai, descrevendo o encontro com Lucas e o convite para visitar a tia, além de informações gerais sobe o país. Outra foi escrita para a companhia, que era na verdade uma fachada para as atividades da inteligência naval. Esta, antes de escrever com tinta normal foi preenchida com escrita de sumo de limão, que só seria vista se aproximada da chama, e ainda assim cifrada, pois, se fosse interceptada, seria impossível de se saber o conteúdo. Outra foi para o Almirantado, em linguagem clara, explanando os ânimos naquele período.
No dia seguinte, o estafeta entregou a ele três mensagens. Uma era de seu primo, agradecendo o excelente jantar e reiterando o convite para visitar a estância. Outra era um telegrama do comandante Brotheridge, avisando-o que “se detivera em Recife, por motivo de uma gripe forte, e que se demoraria por uma semana, e o liberava para, de acordo com a iniciativa, observar os aspectos mais gerais, especialmente do panorama político”. Isso viria a calhar...A terceira foi até estranha; dizia que uma dama o aguardava no saguão, e que não se importava em acompanhá-lo ao desjejum. Vestiu-se, desceu, e, quando chegou ao saguão, encontrou a esperá-lo uma mulher de meia-idade, trajando um vestido cor azul-celeste, com faixa de um tom mais escuro à cintura, com um chapéu elegante à guisa de moldura do rosto triangular.
- Meus Respeitos, senhora, mas a quem tenho a honra de receber?
- Venho em nome de minha patroa, a Condessa do Barral. Ela deseja falar-lhe.
- Posso fazer meu desjejum primeiro?
- Tenho ordens de esperá-lo.
Após terminar o desjejum, acompanhou a senhora até à rua, onde uma carruagem o esperava. Na porta, uma pala preta cobria o que parecia ser um brasão. A pessoa que queria falar com ele era, sem dúvida, importante, mas preferia passar incógnito pela cidade.. Após percorrer a zona portuária, a carruagem tomou o rumo da Tijuca, passando por uma fazenda de café, que Robert achou interessante por ficar ao sopé da montanha, meio que encarapitada. A carruagem , por fim, parou numa elegante casa com jardim, cuja quietude convidava ao relaxamento. A senhora conduziu-o ao alpendre, onde um jovem o levou para o vestíbulo da casa, elegantemente decorado com tapeçarias de fino gosto, e podia ver cristais finos em uma cristaleira estrategicamente colocada num canto da casa.
- Aguarde aqui, por favor – disse, com voz baixa, a senhora.
Quinze minutos depois. Um homem adentra o salão, e Robert o reconheceu rapidamente. Seu pai falara dele, de quando o conheceu, um garoto de quatorze anos, assustado e talvez temeroso de suas responsabilidades. Mas o homem que Robert via ali era um homem na quintessência de sua personalidade, a personificação do poder moderador do império. Mal o viu, fez uma mesura e se inclinou, mas o homem levantou a mão, contendo o gesto.
- Com que então o filho de meu amigo vem a este país. Como está seu pai, O Comandante Nigel?
- Almirante agora, Majestade. Ele me falou muito do senhor.
- Tanto tempo, tanto...Me lembro da última vez que conversamos. Ele me aconselhou a sempre fazer o melhor para o país, e é o que tenho sempre feito. Minhas desculpas se me cerco de um aparato como este. Pena que não pudemos ser apresentados em circunstâncias mais favoráveis.
- Também lamento isso, Majestade, e a minha missão aqui é avaliar as coisas para que se possa por um fim a isto. Saiba que o ministro Christie não é de voto unânime no Parlamento.
-Sei disso, meu jovem. Também possuo meus olhos e ouvidos. Permita-me apresentar o Barão de Penedo, nosso representante na corte de St. James
Logo depois adentrou um homem na faixa dos trinta e cinco anos, com uma sobrecasaca de corte elegante e gravata púrpura, de porte tão altivo quanto o Imperador
- E então, meu jovem, quando finalmente esta, como direi...indisposição vai ter fim?
- Sou apenas um observador, sr. Barão. Isso vai depender de como meu governo interpretará meus relatórios.
- Eu espero que eles tenham bom senso, falando com franqueza.
Ambos sabiam que a situação chegava a um impasse, que não seria resolvido facilmente. O Imperador já havia recorrido à arbitragem internacional, um gesto sábio, mas que faria com que a situação ficasse apenas mais atritada. O árbitro escolhido, o rei da Bélgica, era famoso por ser muito escrupuloso nesses assuntos, e dera ganho de causa, com algumas ressalvas, ao Brasil, mas os ingleses não se deram por satisfeitos, e, como a maioria no parlamento era de conservadores, forçaram ainda mais a situação, ordenando o apresamento dos navios brasileiros.
- Mas as coisas não andam sempre como queremos, não é capitão?
- Temos apenas de tirar sempre o melhor proveito de tudo.
- Observação sábia. Acho que temos um diplomata de valor aqui, Majestade.
- Disso eu jamais duvidei. Muito obrigado, Barão. Agora, se nos der licença...
O Imperador e Robert ficaram a sós, e puderam descontrair um pouco. Robert deu notícias do pai, e não ficou surpreso em saber da correspondência entre os dois, cuja amizade era sincera e profundamente recíproca.
- Com que então seu pai está bem. Folgo em saber, meu jovem. Mas me conte de sua viagem. Já reencontrou seus parentes aqui?
- Ainda não, Majestade.. Devo fazer isso em breve.
- Então fará uma coisa para mim, em nome da amizade com seu pai. Poderá fazê-lo?
- Se não for contra meu país, farei sim, Majestade
- Então, sejamos mais francos ainda. Quero que tu verifiques a situação do Prata para mim. Sei que já deves estar informado do que acontece lá.
Robert então contou das observações que andara fazendo sobre a região do Prata, especialmente o Paraguai, que iniciara uma expansão militar que preocupava os países fronteiriços. Isso era algo providencial demais. Uniria o útil ao agradável, além de ter a oportunidade de visitar sua tia Nadejda.
- Posso contar convosco, meu jovem?
- Claro que sim, Majestade. Será uma honra para mim
- Então, meu jovem, seja célere. Que Deus o acompanhe. Sempre que quiser manter algum contato , escreva aos cuidados da Condessa do Barral. Ela me encaminhará tudo o que enviares.
- Está certo, Majestade. Assim será feito
Robert tomou o barco que o levaria a Porto Alegre no fim da tarde, fazendo a viagem com o Pôr-do-Sol. O pai estava certo. Mesmo o entardecer nesta terra era diferente. Sentiu-se identificado, não somente por ter nascido nela, mas, um pouco por parte da mãe, ter herdado a sensibilidade tão presente na cultura do povo, como o pai descrevia a ele. A chegada a Porto alegre foi uma mostra de quão grande era a diferença entre os vários cantos de um país tão grande. Era uma azáfama diferente do lufa-lufa barulhento do Cais Pharoux. Havia um fluxo diferente de pessoas, que ele logo reconheceu, pelo acento, serem alemães, com seus rostos circunspectos e sua fisionomia fechada. Mas logo essa atmosfera foi quebrada pela chamada do primo, que já o esperava.
- Robert! Primo! Que bom que chegou! O que vai preferir? Ir a cavalo ou de carroção? Vamos ter mais ou menos um dia e meio de viagem até a estância. Sugiro que vá no carroção, ficará melhor.
- Não, primo, preferirei ir a cavalo. Assim conversamos melhor.
- Não está querendo fazer figura, não, primo?
- Não. Ainda me garanto em uma sela.
E assim foi. Cavalgaram juntos, trocando informações e pondo a conversa em dia. Lucas falou a ele mais da situação da região, que, até aquele momento, vivia uma paz tensa, com a ameaça da expansão militar paraguaia. O orçamento do país estava todo comprometido com operações militares e gastos com defesa. Tudo indicava que haveria guerra, mas ninguém havia ousado derramar o primeiro sangue.
A conversa tornou a viagem mais curta, e, um dia depois, uma tia saudosa recebeu Robert no alpendre da estância, abraçando-o calorosamente, beijando-o nas faces e na boca, como fazia quando ele era criança
- Mas que homem você se tornou, Robert! Seu pai deve estar orgulhoso...Me conte dele, como ele está? Leonor, me fale dela, ainda se preocupa com você como se tivesse dez anos?
- Ainda, tia Nadejda. Ainda
- Me perdoe se seu tio não está aqui, é que ele está em viagem de negócios a Rio Pardo, e só estará aqui amanhã; Mas entra, vem, toma um banho, descansa, e depois conversaremos...
A conversa seria bem longa...
Então contou de sua missão na áfrica, o que tinha vindo fazer no Brasil. A família era um laço de confiança, e ele sabia que podia confiar em sua tia. A seguir, contou das peripécias na Índia e na China, e, depois, mais discretamente contou à tia a sua verdadeira missão. Além disso, contou o encontro que tivera com o Imperador e com o Barão de Penedo, na casa da condessa do Barral.
- Fizeste bem em aceitar, meu sobrinho. O Imperador tem grande estima por teu pai. Mas vamos, vamos comer aquele assado que tanto gostaste, da última vez que vieste aqui, ainda garotinho.
O assado foi comido com gosto, e Robert realmente relaxou, depois de uns bons goles de vinho.No dia seguinte, daria uma cavalgada pela região. Pois precisaria se aclimatar a ela logo, logo.
Nesse ínterim, no Rio de Janeiro, o governo inglês, mesmo perdendo a causa com arbitragem justa, recuou-se a enviar qualquer pedido de desculpas ao governo brasileiro. Isso resultou no imediato rompimento de relações diplomáticas com o Brasil, e a chamada do ministro Christie para Londres. As coisas estavam todas ao ponto de explosão, o que não demoraria a acontecer...
Robert e Lucas tomaram o caminho da porteira assim que o sol clareou. Precisava tomar conhecimento da terra, saber como viviam as pessoas e como era a sua economia. Mas, do mesmo jeito que se apaixonara pelo Rio, também caiu de amor pela campanha, era uma região que pareia não ter fim, seus campos cortados aqui e ali por árvores isoladas. Aquela paz logo seria envolvida pela névoa da Guerra..
No Paraguai, Solano Lopez armava cada vez mais o seu exército. A todos dizia que era para garantir a defesa contra qualquer ofensiva vinda de Entre-Rios e Corrientes, que viviam em luta com Buenos Aires pela Supremacia da região. Intervia inclusive nas disputas políticas entre blancos e colorados visando desestabilizar ou um lado ou outro. Mas ele tinha mais simpatias com os colorados, e fomentava o descontentamento deles.
A primeira coisa que Robert notou, em sua cavalgada pela região, era que ela era um “vazio topográfico”, pois não havia mapas precisos da região, e isso constituía um enorme risco para as operações militares. Quando perguntou a Lucas o porquê dessa negligência, recebeu uma resposta um tanto indignada dele, pois se sentia um pouco frustrado por saber que, embora houvesse um grupamento topográfico em Rio Pardo, eles nada fizeram além de medir as fazendas dos aristocratas , em vez de mapearem a região ao redor. Isso teria um custo grande em vidas.
- Mas isso é um absurdo! – comentou à larga Robert, imaginando como seria lutar em um terreno sem ter nenhum mapa.
- Claro que é, meu primo, mas o que se pode fazer? Aqui as coisas ainda são ditadas pelos caudilhos locais, todos oficiais da Guarda Nacional, mas acima de tudo caudilhos. Meu pai é um dos que pensa diferente, mas ele é uma voz isolada.
- Mas a Guarda Nacional estará preparada? Ouvi dizer que ela é apenas uma força decorativa, sem qualquer experiência
- Veja por mim, meu primo: onde acha que estou? Estou no exército, exatamente porque a Guarda Nacional é o que é: um bando de pomposos incompetentes.
Robert agora compreendia o quanto a situação era séria. Era realmente necessário dar uma verdadeira reviravolta para que o exército e a Guarda Nacional fossem forças dignas do nome. Mas seria necessário, igualmente, uma pessoa que tivesse uma grande personalidade, para que essas mudanças fossem realmente implementadas..
Dois dias depois, Lucas Almada, o pai, chegava À estância do Lagar. Trazia novidades de Rio Pardo e alguns jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, e se alegrou ao ver Robert na estância.
- Buenas, rapaz.. Vejo que o garoto que eu vi da última vez se transformou num homem.
- Apenas responsabilidades demais. Mas tudo bem. São os ossos do ofício.
Abraçou o tio e, depois, puseram-se a conversar sobre as coisas que ele via acontecer, os preparativos militares paraguaios , tudo isso era assunto de bar e de cantina. Podia-se dizer que Solano Lopez era menos sabedor dos seus planos do que muita gente que rodeava por aí. Mas ele estava alerta, assim como o comandante Brotheridge faria, mas ele estava em Recife ainda acamado. Então, resolveu agir por sua própria iniciativa.
Iria procurar o Almirante Tamandaré, a mais alta autoridade imperial da região, e iria ter uma conversa séria e talvez ele não quisesse , mas ele iria tentar receber alguém que tem algo precioso para dividir com ele.
A primeira impressão que teve sobe o Almirante Tamandaré não foi das mais positivas. Parecia mais um burocrata do que um oficial comandante, e a voz macia não parecia inspirar autoridade. Mas ele percebeu que ele era um comandante competente, apenas não era carismático, como tantos que conhecera em serviço.
- Com que então está acompanhando os planos de Solano Lopez. Não deverias estar tentando superar esse imbróglio que seu governo e o nosso criaram?
- Isso os diplomatas vão resolver, almirante. Minha missão aqui é outra.
- Sei da sua missão aqui, meu rapaz. Fui instruído a colaborar consigo no que for pertinente e possível.
- Com que então o senhor sabe dos preparativos de Solano Lopez.
- Sei tudo que preciso saber no momento, meu jovem. Ao menos seus compatriotas não nos incomodam aqui.
Ele se referia às três fragatas comandadas pelo almirante Deakins, Medusa, Argus e Ájax, que patrulhavam o Atlântico Sul Baseadas em Santa Helena, que eram famosas caçadoras de navios de tráfico de escravos na rota de Madagascar, e, agora, com o fim do tráfico, protegiam a rota para a Índia.
- Mas e as operações no Rio da Prata?
- Nos apenas monitoramos o tráfego dos barcos na foz do rio, e fazemos combate ao contrabando. Não queremos causar incidentes
- Concordo com isso,mas não seria interessante que tivéssemos um homem lá em Assunção?
- Seria óbvio demais um brasileiro, já que Solano Lopez instiga contra o Brasil. Mas um cidadão inglês, acima de qualquer suspeita...
- Entendi, e acho uma boa idéia, apenas avisarei meu primo e minha tia de que farei uma viagem pela região.
- Como queira, mas me mantenha informado.
Depois, na fazenda, ele contou a seu primo os planos que tinha engendrado com Tamandaré, e o alcance deles até Assunção. Explicou que ficaria hospedado na casa do ministro inglês, Thornton, e que sempre os manteria informados. |Descansou aquela noite, pois a viagem para Assunção seria longa e difícil...
Assunção, capital do Paraguai, era uma cidade onde a cultura espanhola e índia andavam muito juntas. Na chegada, Robert notou que a cidade tinha aquele clima de apreensão típico de lugares assaz vigiados. Notou que era seguido, mas logo foi chamado ao sair do embarcadouro.
-Señor Willingthorpe! Señor Willingthorpe! Aqui, por favor
- Quem é você? Não era esperado. Onde está o ministro?
- Está naquele coche, señor.
O empregado carregou as bagagens de Robert e empoleirou-se na traseira do veículo, enquanto Robert entrava era recebido por Sir Andrew Thornton, representante britânico em Assunção.
- Fez boa viagem, capitão? Espero que sim
- Muito boa, Sir Andrew. Mas notei algo estranho, como se...
-Estivesse sendo seguido? Esbirros de Lopez. Todo estrangeiro que chega, mesmo nós, que temos investimentos e estamos mecanizando seu país, é vigiado por sua policia secreta, os chamados “orejas”. Não se engane com o país. É um local extremamente fechado.
Enquanto a carruagem se dirigia para a casa se sir Andrew, Robert pôde sentir a atmosfera. O país, sob dois ditadores, tinha ficado isolado, sem muita comunicação a não ser pelos rios, que eram as artérias comerciais mais utilizadas da região. Sob Francia e Carlos Antônio Lopez, pai de Solano Lopez, o país tinha se voltado pra dentro, e não havia nem mapas precisos, pois Os ditadores temiam a facilidade de invasão, e procuraram fazer do país um desconhecido, um borrão na geografia da região.
Quando chegaram, Sir Andrew convidou Robert a partilhar do chá antes que fossem tomar banho. Sabia que tinha de conversar com esse enviado, pois tinha informações preciosas a passar, antes que fosse tarde demais. Depois que o chá foi servido, conversaram inicialmente amenidades, e, entre elas, sempre trocavam alguma informação. Assim, Robert soube que, mesmo dentro da casa eles eram vigiados, pois Solano Lopez não confiava em ninguém, e mesmo entre os empregados havia “orejas”.
- Bem, haverá um jantar esta noite, em homenagem aos diplomatas no Palácio Presidencial. Ele gosta de fazer isso pra conhecer os que servem no país, para sentir sua simpatia ou não pelo governo. Mas lhe aviso. Ele é um homem difícil, e tem uma mulher que é uma verdadeira eminência parda. Você a conhecerá na festa.
- Quero estar a par de tudo, pois tenho muito o que relatar ao governo
À noite, envergando uma casaca civil, acompanhou Sir Andrew até o palácio presidencial, onde um fluxo de carruagens e tílburis já se amontoavam em frente da entrada principal, entrando sempre na ordem de três por vez. Eram anunciados, e depois adentravam ao salão, onde , postado num pedestal alto, com baldaquino, estavam o presidente e a mulher que Sir Andrew havia comentado. Um a um, os diplomatas foram se aproximando e rendendo respeitos a Solano Lopez e a Elisa Lynch, a cortesã irlandesa que ele trouxe ao Paraguai e que já amealhara uma imensa fortuna em terras e jóias, algumas delas ostentadas por ela naquele momento.
- Señor Presidente, permita representar Robert Willingthorpe, representante comercial da Empire Steel Company
- Mucho Gusto, señor Roberto – disse em espanhol, embora se soubesse que ele dominava perfeitamente o inglês – Bienvenido al Paraguay
Robert viu Solano Lopez mirá-lo de alto a baixo, como que a analisar sua figura, tentando saber se ali estava um representante comercial ou algo mais...Depois, dirigiu-se para o centro do salão, e fez um sinal para a orquestra, posicionada no andar de cima, para que a música se espalhasse. Os acordes de uma mazurca encheram o salão, e os pares começaram a dançar. Sir Andrew iniciou uma conversa com o embaixador americano, e Robert observava o salão, quando foi interpelado por um toque suave em sua manga.
- A curiosidade intrépida é uma característica inglesa? – disse uma jovem de olhos e cabelos negros, que emolduravam o rosto trigueiro.
- Sempre quando nos sentimos adversos. Nos leva pra frente.
- Leve-me para dançar. Ficará melhor para falarmos. Confie em mim
A mazurca passou a uma valsa, onde ele finalmente ficou frente a frente com aquela jovem mulher, de um tipo diferente de beleza, os traços hispânicos encontrando a tenacidade dos índios.
- Não tivemos ainda a oportunidade de sermos apresentados, señorita...
-Maria Isabel Pulido Almará
- Robert Shatov-Willingthorpe
- Sei quem você é. Meu tio foi avisado da sua vinda
- Como assim?
- Seu superior imediato não é o comandante Brotheridge?
- Sim, é ele, mas como sabe de tudo isso?
- Meu pai era um dos informantes dele aqui. Mas ele teve de fugir para não ser fuzilado
Na dança, para não atrair curiosidade, ela contou do pai, que era um político local, Julian Pulido, que fazia oposição a Lopez, até que , preso, teve seus bens confiscados, e ela teve de viver com um tio. Depois, ajudado pelos ingleses, o pai dela tinha conseguido fugir, levando uma parte da fortuna que Lopez não tinha conseguido pôr as mãos, e usando-a para financiar a filha e uma rede de agentes antilopiztas.
- Aqui não é seguro. Todos os empregados do baile são “orejas”. Lopez não confia em ninguém. Vamos conversar amanhã. Meu tio enviará a você um convite pra almoçar. Lá, cavalgaremos e poderemos nos falar melhor
- Aguardarei, então.
Depois, ao recolher-se pra dormir, não pôde deixar de pensar nela. Era uma bela mulher, de colo farto, ombros sensuais e voz idem. Era uma espécie de bálsamo na crueza daquela missão. Lembrava dos cabelos e olhos negros, das sobrancelhas em arco, pronunciadas, que davam a ela um igualmente sensual toque de autoridade. Era completamente diferente de sua mãe, Leonor, que possuía aquela altivez melancólica típica das mulheres portuguesas, que enganava quem observasse superficialmente. Maria Isabel tinha o olhar firme, direto, de quem parecia estar acostumada a comandar, e jamais ser questionada. A ansiedade o dominou, e, por muito pouco, não passou a noite em claro...
No dia seguinte, depois de cumprir a agenda com Sir Andrew, pediu que selassem um cavalo, pois iria se dirigir à hacienda dos Pulido, que ficava a umas duas milhas da cidade. Era um lugar aprazível, situado à beira do rio, com as plantações de mate se desdobrando na encosta. Sabia que estava sendo seguido, pois notou o cavaleiro pouco depois da saída da cidade. Ficou a imaginar como vivia o povo, com essa constante vigilância. Assim que chegou ao portão da hacienda, foi saudado por Ernesto Pulido, tio de Maria Isabel, um dos grandes fazendeiros de mate da região.
- Saludos, señor Roberto! Bienvenido!
- Saludos, señor Pulido!Es un gran honor adentrar su casa
- Mi casa es su casa, señor Roberto. Bienvenido.
- Gracias, señor Pulido
-Por nada. Mucho gusto en tenerlo en mi casa
Depois das apresentações, Ernesto o convidou a entrar , e, já dentro da casa, começaram a conversar em inglês; Ernesto explicou a situação do país, e os contatos da rede antilopizta, que tinha ramificações nos países vizinhos. Eram paraguaios exilados por Lopez, para silenciar a oposição a ele. Alguns foram mesmo assassinados, pois eram as vozes mais eloqüentes. Alguns minutos depois, Maria Isabel apareceu, usando um vestido de cor violeta, com uma faixa branca na cintura.
- Hola, Roberto¬! Venga! El Almuerzo se está servido!
- Gracias, Maria Isabel
O almoço foi regado a um excelente vinho, e, enquanto almoçava, Robert prestou mais atenção nela. Tinha curvas sinuosamente suaves, mas por detrás delas parecia existir uma força que, longe de afastar, cativava. Cada gesto parecia impregnado dessa força, mesmo os mais simples, dando a ela uma atmosfera intensamente apaixonante. Tal olhar não passou despercebido a Ernesto Pulido, que, de si para si, se divertia com a corte sem palavras que Robert fazia à sobrinha...
Depois do almoço, Maria Isabel e Robert cavalgaram juntos, ela a mostrar a extensão da fazenda, as plantações de mate – Ernesto fornecia mate ao exército, e , numa raridade, era bem pago por Lopez, que costumava ser mau pagador – e o riacho de águas cristalinas que movia a roda d’água da fazenda. Conversaram sobre várias coisas, sobre a Inglaterra, sobre a vida dela, sobre as missões dele na África
- Com que então é um aventureiro, Robert
- Apenas uma pessoa viajada, creio eu.
- As pessoas viajadas geralmente dão vazão a suas paixões. Você faz isso? – Perguntou, a intimidade já nascida da proximidade.
- Vivo a vida sem muitas perguntas. Já é trabalhoso viver, quanto mais questionar a vida.
- Isso são palavras que meu pai diria. Ele é assim como você, Robert. É mais importante viver que questionar como se vive.
Voltaram da cavalgada no final da tarde, e Ernesto convidou-o para passar a noite, pois, mesmo com a alardeada de que “no Paraguai não havia bandidos”, era melhor pernoitar e, na manhã seguinte, seguir viagem de volta a Assunção. Robert foi instalado no quarto de hóspedes, onde havia uma janela na qual ele podia observar o rio correndo por entre a propriedade. Recostou a cabeça no travesseiro e se sentiu, como há muito não se sentia, feliz, pois, de alguma forma, ela adentrara em seu coração. Não tinha tido grandes aventuras amorosas. Claro que houve os casos passageiros com as moças de sua região, alguns flertes nas cidades coloniais e ocasionalmente, uma ou outra modelo, mas jamais se apaixonara.
Súbito, ouviu um ruído de passos, lentos mas decididos. Vinham se aproximando com calma, cuidadosamente, do seu quarto. Será que alguns dos empregados do señor Ernesto seria, também, um “Oreja”. Puxou a pequena pitola do bolso secreto da sobrecasaca e esperou..Uma silhueta parecia definir-se nas frestas da porta, e, quando a porta ia se abrindo lentamente, Robert, num puxão, trouxe a figura quarto adentro, derrubando a candeia que carregava. Mal se recuperou da investida, reconheceu a figura de Maria Isabel, apenas em roupas de dormir.
- Está com medo dos “orejas”, Roberto? Não se preocupe, não sou um deles.
- Confesso que estou receoso, depois de tentarem me seguir, e notei que nos seguiam quando estávamos cavalgando.
- Sei disso, mas vem, e não tenha mais medo..
Ela o envolveu num abraço longo, forte, que o fez se render ao que há muito já era parte dele... Ela, mais que ele, parecia conduzir cada toque, cada vontade, cada beijo. Ele quis dizer algo, mas ela o calou com o mais longo dos beijos, e recebeu toda a intensidade dele dentro dela, a cada estocada mais forte, mais intensa, ela absorvendo cada parte dessa intensidade, como um torvelinho a carregar tudo dentro de si, com os ventos fortes do amor...então, os dois juntos se deram, e um abraço mais forte, um beijo mais intenso simbolizou a união dos amantes, a semente dele fazendo parte das entranhas dela....
No dia seguinte, ele tomou o caminho de volta a Assunção, mas já não era mais o mesmo homem. Era um homem apaixonado, coração pertencendo, agora, a Maria Isabel, o que fazia a ternura invadir seu peito e se alastrar ser adentro...Mas seus instintos não o deixavam, e logo percebeu que estava novamente sendo seguido, mas de forma mais próxima. Esporeou o cavalo para ter mais velocidade, e rapidamente dobrou uma encosta da ravina, e, após esconder a montaria, subiu a encosta, vendo ao longe o outro cavaleiro que o seguia. Quando este se aproximou, ele pulou e derrubou-o da sela, tirando a pistola da sobrecasaca e apontando para a cabeça do homem.
- Porque me siegues, hombre?- disse em espanhol – Quien es tu jefe?
-Òrdenes – respondeu – de El Supremo – usou um dos títulos pelos quais Solano Lopez era conhecido – Los extranjeros sán espias.
Ele não podia fazer nada. Seu segredo poderia ser descoberto, e os riscos para Maria seriam terríveis. Usando a própria corda do chapéu do homem, o estrangulou, e jogou o corpo no rio, onde, se sabia , era infestado de piranhas. Cavalgou mais rápido e chegou a Assunção, onde sir Andrew o esperava, e mais alguém. Logo reconheceu os bigodes e a barba espessos do comandante Brotheridge, que foi o primeiro a cumprimentá-lo
- Parabéns, meu caro, venho aproveitar esta cidade para pormos a conversa em dia. Sir Andrew me falou muito de você e de seu desempenho aqui. As informações que me transmitiu são muito preciosas. Uma boa notícia: foi promovido a comandante.
- Obrigado, Comandante Brotheridge
- Somos colegas agora, rapaz. Chame-me de Lionel
No jardim, um dos poucos locais mais reservados da casa, Robert contou de seu entrevero com um dos esbirros de Lopez, e que teve de matar o tal. Sir Andrew lamentou, pois qualquer coisa que provoque a ira do ditador teria represálias terríveis, Robert pensou em Maria Isabel, e temeu por ela...
Nos meses que se seguiram , o contato entre eles ficou mais forte, mais ardente, onde cada um parecia antecipar os desejos do outro, em intensidade e vontade. Ele igualmente se desempenhava nas suas funções d inteligência, ora fazendo contatos dentro de Assunção, ora nas províncias. Descobriu que Solano Lopez governava com um estado policial de maior envergadura que ele imaginava, com agentes em todos os cantos, monitorando especialmente os estrangeiros, mesmo os que estavam trabalhando no país, especialmente os brasileiros, alvo das maiores campanhas de Lopez.
Numa das visitas a Ernesto e Maria Isabel, ele ventilou a possibilidade de tirá-los de lá, pois a situação estava recrudescendo, e vários diplomatas e oposicionistas de Lopez estavam sendo presos.
- Mas para onde iremos? Não temos outro local além desta fazenda.
- Minha tia tem uma estância, a Estância do Lagar, a algumas milhas de Porto Alegre, na província do Rio Grande, a uns dez dias de viagem, parte pelo rio.
Ernesto pensou um pouco, matutou, depois respirou fundo, olhando as terras da varanda da casa. Depois, encarou seriamente os dois e aquiesceu.
- Assim seja...Se Deus assim quiser, voltarei a ver minhas terras.
E assim foi. Ernesto Pulido, Maria Isabel e muitos outros deixaram o Paraguai, agora um feudo pessoal dos Lopez. Tudo estava armado para o confronto, faltava apenas, como em todos os conflitos, algo que deflagrasse, a centelha final...
Na estância do Lagar, as coisas estavam tensas, agitadas, com a volta de Lucas de rio Pardo, em suas viagens de negociação do gado, que já havia suspeitas de uma grande movimentação de tropas paraguaias na região de Corrientes, em vias de invadir a região. Robert passara alguns dias supervisionando a instalação de Ernesto e Maria Isabel nos aposentos de viagem da estância, reservados para hóspedes em passagem. Robert quis se responsabilizar pelos Pulido enquanto estivessem lá, mas Lucas se recusou terminantemente.
- Meu sobrinho, se eles vem de coração, de coração ficarão, e não se fala mais nisso. Agora vá cuidar da sua tia, que morre de saudades de ti.
Ele se aprestou a ver a tia, que simplesmente o esperara este tempo todo, Nadejda parecia ainda mais bela na maturidade, com madeixas grisalhas já aparecendo no cabelo preso em coque. Mas ainda assim, ela era de uma essência rara, daquelas pessoas que sabiam e sentiam cada coisa no coração e na alma.
- Com que então meu sobrinho se apaixonou... Quem é a felizarda, posso saber?
- Acho até que a senhora já sabe, minha tia
- A sobrinha do senhor Pulido? Ela é uma bela moça, de caráter forte.
- Sim, minha tia, e eu a amo.
- Isso está na sua cara. Mas me diga, como está meu irmão , seu pai?
- Bem, as notícias que recebi dele na Inglaterra são que ele irá se reformar
- Para ele, não é nada bom. Seu pai sempre foi um homem do mar, jamais aceitará ficar em terra.
Conversaram mais e mais sobre Maria Isabel, ela a notar o brilho dos olhos dele, ele a falar do seu amor por ela, ela a se lembrar do amor do marido intenso mesmo nestes anos. Ela não sentia saudades da Inglaterra. Sabia que aquele lugar era seu lugar, que aquela era a sua casa, sem mais lembranças de outras vidas. Minutos depois, Maria Isabel chegou na sala, e os olhares se dirigiram pra ela.
- Perdones, señora, no tuve la intención
- No hay lo que perdonar, mi flor. Estábamos a hablar de ti
- Mas pero…
Então ele falou da conversa com a tia, e de quanto a amava nessa vida, e que não poderia mais viver sem ela.. Maria Isabel e Nadejda trocaram um olhar cúmplice, no que uma sabia do coração da outra, e esse olhar valia mais do que mil palavras...
O casamento se deu debaixo de uma figueira florida, no terreiro da estância, e teve a presença de Lucas, que estava de serviço em Porto Alegre, vindo com a esposa, Marilia, a filha do seu comandante de regimento, coronel Campolargo. Maria Isabel vestia o vestido de noiva de Nadejda, que o cedeu pra dar sorte, enquanto que Robert se vestiu à maneira da região, de chiripá de listras e ceroulas bordadas, com botas de fole e chapéu de barbicacho. A cerimônia foi celebrada pelo padre Winter, da paróquia vizinha, e foi depois uma festa só, tão divertida que ninguém se deu conta que os noivos escaparam discretamente...Nadejda se sentia feliz, pois mais uma vez viria um amor para unir a família...
E, finalmente, a centelha havia aparecido...
Depois de dois anos de paz tensa, a chama do conflito foi acesa.
Ao seguir viagem para assumir o governo da Província de Mato Grosso, o Presidente da Província, Frederico Carneiro de Campos, foi detido pelas autoridades paraguaias e o seu navio, o Marquês de Olinda, apresado. As autoridades paraguaias alegaram que o navio fazia contrabando e que a viagem do Presidente da Província era apenas cobertura. Uma delegação brasileira se dirigiu a Assunção, para tentar negociar uma solução diplomática, mas foi recebida friamente e convidada a se retirar, e os diplomatas considerados persona non grata no país, com a assertiva de que já existia “estado de guerra”. O maior conflito militar da América do Sul estava começando, e os Willingthorpe teriam seu papel nele...
No momento em que a guerra começava, Robert estava na estância, quando recebeu duas mensagens, uma do comandante Brotheridge, e outra do Alm. Tamandaré; abriu primeiro a de seu comandante, que dizia , em tom lacônico:
“Você estava certo e eu errado. Agora você observador do conflito”. Instruções acompanhar Almirante Brasileiro. Nada mais, Brotheridge”
A mensagem de Tamandaré era mais lacônica ainda. Dizia apenas pra se apresentar em Porto Alegre o mais rápido possível, para fazer parte, como observador, do estado maior do almirante. Quando chegou, Lucas já o esperava, pois estava reunindo os esquadrões de cavalaria da Guarda Nacional, e , desespero à parte, isso o consumia demais, pois simplesmente os batalhões e esquadrões se recusavam a prestar serviço, pois alegavam que a Guarda servia apenas a “questões internas”, e não à segurança externa, o que, diziam eles, era “problema do exército e da marinha”. Lucas não ficou surpreso.
A Guarda Nacional, criada por decreto do Regente Diogo Antônio Feijó, era um corpo militar formado para servir como força auxiliar, no combate às rebeliões que grassavam no Norte e no Sul do País. De início, era uma organização levada a cabo pelos políticos provinciais, que hauriam para sim postos e poder, criando uma organização que iria perdurar por mais de cem anos, transformando os senhores rurais, que compunham seu oficialato, em poderosos mestres político-militares, os “coronéis”. Amolecida por esses aristocratas, a Guarda se tornou uma força amorfa e acéfala, mais interessada em perpetuar poder político do que ação militar. Assim, se recusaram a entrar em ação, não deixando a Lucas outra opção senão recrutar os poucos soldados existentes, cuja lealdade era questionável, pois, além de não receberem o soldo havia três meses, não havia uniformes e munição. Mas já era tarde...
A máquina de guerra de Lopez já se movia. Seus alvos eram o Rio Grande do Sul e Mato Grosso. Mas pareciam muito mais uma turbamulta de saqueadores do que um exército invasor...
Ainda em Porto Alegre, Robert se reuniu com o Almirante Tamandaré, que coordenava as operações navais. Já se havia feito o bloqueio do Prata, impedindo navios paraguaios de terem acesso ao mar. Mas era preciso bloquear e controlar o curso baixo do rio, mas os oficiais se depararam com uma realidade dura. Não havia mapas hidrográficos detalhados da região, nem mesmo topográficos. Francia e os Lopez, na ânsia de isolar o país, haviam proibido qualquer tipo de expedição geográfica ao Paraguai, com receio de que os mapas fariam a facilitação das invasões . A campanha começaria com os aliados – que já se sentavam à mesa de negociações – geograficamente cegos...
Na estância do Lagar, a situação era apreensiva. Lucas, o pai, já havia voltado de vender gado em Rio Pardo, e já tinha visto a movimentação das tropas e de material. Já havia informes de Lopez avançando rapidamente, eliminando uma colônia militar em Mato Grosso e ganhando terreno em direção a Uruguaiana, que, embora ficasse a certa distância do Lagar, era um lugar próximo o suficiente para se ficar alerta. Nadejda antes dele, já havia providenciado a estocagem de alimentos e viveres no Torreão, para qualquer caso. Os empregados já haviam recebido ordens, e estavam alertas, piquetes sempre percorrendo os limites da fazenda, a fim de relatar qualquer movimento das tropas paraguaias.
Maria Isabel ajudava Nadejda em tudo, sendo uma segunda em comando naquela azáfama toda. Aprendera a admirar a irmã de seu sogro, a seguir-lhe os passos onde quer que fosse, muitas vezes tomando à frente das coisas. Queria se ocupar, até porque, quando parava, o pensamento a levava até Robert...Amava aquele homem, mais do que qualquer coisa na vida...
A invasão do território brasileiro se de em dois eixos: por Mato Grosso e por Uruguaiana, no rio Grande do Sul. O que Lucas mais temia havia acontecido: sem tropas preparadas, os paraguaios passaram rapidamente a fronteira e se concentraram em MatoGrosso, que era a mais isolada das províncias do Império. No Rio Grande do Sul, as tropas paraguaias facilmente contornaram os arroios que circundavam a região e entraram na cidade, mas foram expulsos, e então montaram uma estratégia de cerco...
Enquanto isso, os aliados, Argentina Uruguai e Brasil, se organizavam e montavam suas cadeias de comando. Tamandaré ficou responsável pelas operações navais, já que a marinha brasileira era potencialmente a maior; Mitre e Flores se revezaram, nas primeiras fazes da guerra. Tinham uma difícil tarefa pela frente: transformar uma turbamulta desordenada em uma força de combate.
Na estância, Nadejda e Maria Isabel organizavam a estocagem de provisões, arranjavam a colocação da pólvora e das munições e se preparavam para o que desse e viesse. Os piquetes de peões davam conta dos movimentos ao redor, tentando ver os paraguaios antes que fossem vistos. Depois de alguns dias , a Estância do Lagar estava preparada para deter qualquer paraguaio afoito que se aventurasse. Maria Isabel , por um instante, pareceu cambalear. Sabia o que estava acontecendo. Suas regras não tinham chegado, e ela era precisa como um relógio.
- Com que então esperas um filho, minha flor? `- Perguntou Nadejda, ansiosa. – desde quando sabes?
- Minhas regras não vieram, mas quis me certificar mais pra poder dizer. Mas Nadejda, ter esse filho, em meio a essa guerra...
- Na minha família tem sido assim, Maria Isabel Eu mesma nasci em meio a uma batalha, na qual meu pai morreu.
- Meu Deus! Espero que não seja assim com meu Robert...
-Queira Deus não ser – pensou ela, não sem certa apreensão
No estado-maior de Tamandaré, Robert constatava uma dura realidade: mesmo a marinha brasileira possuindo belonaves modernas e de bom poder de fogo, e já efetivado o bloqueio do Rio da Prata, não poderiam avançar para apoiar as tropas, principalmente porque, mas adiante, não se conhecia a calha do rio, e, dentro do território paraguaio não havia mapas detalhados, e nem um levantamento hidrográfico, o que queria dizer que se teria de confiar em prático e guias locais, cuja lealdade era sempre questionável. Juntando isso, era uma situação caótica, mas ainda assim Tamandaré resolveu mandar uma força de fragatas rio adentro, a fim de aprofundar o bloqueio, sob o comando do Almirante Barroso
- Vai com ele. È um marinheiro de escol e um comandante bem capaz – disse Tamandaré – Mantenha-me informado.
Assim, Robert Shatov – Willingthorpe começaria sua participação na guerra...
No começo, nenhum dos exércitos aliados era bem equipado, treinado e muito menos organizado. No Brasil, as tropas provinciais e a Guarda Nacional eram despreparadas e muitas unidades se recusaram a combater. Em muitos lugares, o recrutamento forçado era regra, e ao lado dos Corpos de Voluntários da Pátria – criados para substituir os rebeldes Guardas Nacionais – também havia os “Voluntários da Corda” , soldados trazidos pelo recrutamento forçado, de todas as partes do país, sem treinamento nem equipamento, o que aterrorizava o Marechal Polidoro Ferreira, ministro da Guerra
- Esses pobres-diabos nem sabem disparar um fuzil! Vão se escafeder quando virem o primeiro paraguaio!
Nas proximidades de Uruguaiana, Lucas Almada comandava um piquete de cavalarianos que, como ele, era habituado ao rigor da Campanha, e percorria quilômetros sem arregar da sela. Havia observado os paraguaios de posição privilegiada, acompanhando todos os movimentos. Tinha ordens expressas de não se engajar em combate, mas era outro piquete, e quaisquer prisioneiros podiam ser fonte de informação. O piquete paraguaio se movia sem preocupação, aparentemente desconhecendo a presença de tropas brasileiras naquele local. Não portavam lanças como os cavalarianos de Lucas, mas clavinas, penduradas num boldrié ao lado da sela. Ele estudou o grupo. Eram doze homens, contra quatorze dos seus. Mas se fossem vistos antes do tempo, os inimigos poderiam sacar suas clavinas e acabar com a aventura.
Decidiu, então, pelo contorno. Havia um grupo de umbus que disfarçava seus cavalos e homens, e eles contornaram por aquela passagem. Agora estavam a mais ou menos dez passos dos paraguaios, mas ele não deu ordem de ataque, até que estivessem de prontidão. Os inimigos estavam mascando tabaco, sem se aperceber que logo cairiam em uma armadilha. Quando chegaram a uma distância ideal, Lucas desembainhou o sabre e gritou “Carga!” e os catorze cavalarianos atacaram, lanças e sabres em riste, pegando os paraguaios de surpresa, sem tempo de sacar suas clavinas. Muitos foram abatidos a pontaço de lança, enquanto outros caíram sob os golpes de sabre de Lucas. No final, apenas três dos doze sobreviveram, isso porque largaram as armas e se renderam. O butim – tabaco e armas – foi dividido entre os homens. O interrogatório revelou que os paraguaios não tinham como receber reforços, além de estarem esgotando os víveres da cidade. O comando ia gostar de saber disso
Na estância, todos os cuidados eram tomados, com os peões alerta a qualquer tentativa de invasão. Lucas comandava, junto com Nadejda, as providências a ser tomadas. Ele olhava para ela e se lembrava da jovem que conhecera na Inglaterra, das vezes que cavalgavam juntos, das tantas vezes que se amaram...Parecia que nada mudara; era uma mulher de forte personalidade, mesmo como mulher tinha aquele quê de intensidade que fazia com que ele a amasse mais ainda...Ela ficara ainda mais bela na maturidade, com olhos mais intensos e expressão mais e mais apaixonante. Ele sabia que, enquanto vida ele tivesse, ele pertenceria a ela...
Robert via a preocupação no rosto do Almirante Barroso. A progressão da flotilha era lenta demais, pois não se conhecia a calha do rio, e era-se obrigado a seguir um patacho de menor calado, que ia fazendo a sondagem da calha , para o curso seguro da flotilha.. Robert informara ao Almirante Barroso que os paraguaios teriam de confrontá-los mais adiante, pois tinham instalado chatas armadas nos largos do arroio Riachuelo, para interceptar a flotilha. As chatas armadas eram um perigo porque, tendo baixa silhueta, poderiam disparar antes que fossem localizadas e silenciadas. Eram ancoradas nas curvas do rio, de modo que só fossem observadas na proximidade, o que as tornava muito perigosas. O almirante dobrou a guarnição das gáveas, atentas a qualquer outro sinal.
Maria Isabel contava os dias com uma determinação ferrenha. Amava Robert, e não queria que nada detivesse aquele amor, que estava sempre além dela, além de sua própria compreensão. Nadejda observava-a com ar de lembrança, pois era assim mesmo em seu amor por Lucas. A gravidez ainda não era muito visível, mas ela já sentia o vigor do fruto que trazia em seu ventre
- Tem a força de do pai – dizia ela.
A flotilha se aproximava do Arroio Riachuelo, observando cada curva de rio, que podia conter desde minas até mesmo as temidas chatas armadas, mas até então nada havia se visto. A flotilha paraguaia estava do outro lado do arroio, esperando... Teriam o elemento surpresa, pois atacariam antes que a frota brasileira tivesse tempo de se organizar. Robert estava no tombadilho do Amazonas, a nau capitânia da flotilha, seguida de perto pela Jequitinhonha, que navegava cautelosamente. Todas as peças se posicionavam para a batalha...
Por um erro crasso, os paraguaios perderam o elemento surpresa Um dos barcos da frota paraguaia, o navio brasileiro capturado Marquês de Olinda disparou um tiro contra o Amazonas, sem muita gravidade, o que alertou a todos e deu tempo para a flotilha se preparar. A frota paraguaia, então, atacou, com uma velocidade que surpreendeu, cercando o Belmonte, o Jequitinhonha e o Paranaíba na passagem de Rincón de Lagraña. Os navios brasileiros lutaram bravamente, não se rendendo nem quando tiveram de encalhar para não afundarem. Cercado pelos três lados, o Parnaíba lutava para sobreviver. Quando um marinheiro paraguaio tentou arriar a bandeira imperial, um marinheiro brasileiro, Marcílio Dias, matou o paraguaio a golpes de cutelo, mas também ficou seriamente ferido. A vantagem parecia pender para os paraguaios...
No convés do Amazonas, o almirante Barroso gritava ordens, tentando disciplinar os homens. Via a balança pender para o lado dos inimigos, quando, de repente, chamando seu prático, um argentino chamado Guastavino, deu uma ordem seca
-Arremeta pra cima deles! Agora!
-O senhor tem certeza? Questionou o prático
- Calro que tenho! Sinaleiro!
- Sim, almirante
- Pendure no penol da caranguejeira a seguinte mensagem: “O Brasil Espera Que Cada Um Cumpra O Seu Dever”, agora mesmo!
E assim se fez. Com o sinal hasteado, a capitânia brasileira, se valendo de seu calado menor e ser movida por rodas, começa a abalroar os navios paraguaios, adernando-os e forçando-os a encalhar. Robert comandava uma turma de abordagem, pronta a capturar quaisquer navios menores que forçassem passagem. Ocasionalmente trocava tiros com o pessoal de terra, que ficava entocado na margem
- Ao que eu saiba, capitão, o senhor é tão somente um observador – Disse, em tom de ralho, o almirante Barroso.
- Dessa maneira observo melhor, almirante – respondeu
- Então apronte-se , que ainda não acabou!!!
A ação do Amazonas mudou o rumo da batalha. Antes em vantagem, os paraguaios bateram em retirada, deixando a passagem de Rincón de Lagraña livre, com a flotilha brasileira em vigilância para bloquear aquela parte do rio. Robert supervisionava os danos. Afora os encalhes, as caldeiras tinham ficado intactas, não tinham sido atingidas seriamente. Os brasileiros perderam 124 homens. A flotilha não tinha sido completamente destruída, mas aquela ação isolou o Paraguai do exterior, com o bloqueio da frota brasileira. Mas ainda havia a rede de fortaleza nas passagens restantes, de Estero Bellaco para diante, essencialmente Humaitá, que protegia Assunção.
- Então, meu jovem, acho que vais ter um relatório cheio pra escrever – disse em tom peremptório o Almirante Barroso – Vamos ver aonde nos leva essa guerra.
Só depois que Robert assentou do trabalho de controlar as avarias e receber os relatórios de seção, é que ele havia notado que sofrera um ferimento à bala no braço esquerdo. O cirurgião de bordo cuidou disso, retirando um bom pedaço de estilhaço de artilharia de seu braço, enfaixando-o cuidadosamente.
Depois desse episódio, a guerra chegou a um impasse, pois havia um conflito entre os oficiais da Tríplice Aliança, pois havia muita animosidade entre eles, especialmente entre argentinos e uruguaios. Somente com achegada dos generais Luís Alves de Lima e Silva, Barão de Caxias, e Manuel Luis Osório, é que se chegou a um ponto de disciplina. Soldos foram pagos, soldados reequipados e armados, e sofreram um exaustivo treinamento para se adequarem às condições de batalha. A guerra tomava novo rumo...
Cada vez mais adiantada, a gravidez de Maria Isabel era acompanhada de perto por Nadejda, e cada vez mais ela sentia o adiantado do estado dela. Já se haviam passado oito meses, e logo aquela criança viria...
Nas cercanias de Uruguaiana, o Capitão Lucas Willingthorpe Almada continuava a sua guerra de fustigação contra os paraguaios que cercavam a cidade. Já tinha havido notícias de um exército imperial rumando pra lá, a fim de levantar o cerco, mas ainda não era tempo. Os paraguaios não se aventuravam mais tão longe, e os cavalarianos chegavam cada vez mais perto, fazendo ataques surpresa e se retirando depois de provocar o maior numero de baixas possível.
Maria Isabel, finalmente, deu o primeiro sinal de que seu filho já ia nascer. Uma contração, seguida de um jorro forte, era o sinal de que mais um Willingthorpe chegaria ao mundo. Ela olhou firme nos olhos de Nadejda, que respondeu ao olhar de temor com outro de confiança, e chamou Militina, a mais experiente parteira da estância, para ajudá-la. Aquilo era assunto de mulheres, e disso os homens de nada entendiam. Ao contrário, só atrapalhavam...
Robert voltara ao estado-maior de Tamandaré, entregando o relatório, enquanto o comandante o lia, cofiando a barba branca. Parecia mais um vigário anglicano do que um almirante. Mas aquela expressão escondia uma pessoa de caráter ferrenho e uma personalidade idem, sempre assertivo, o que causava problemas, de vez em quando.
- Com que então o Barroso deu – lhes uma surra de exemplo. Muito bm feito, meu jovem.
- Almirante, com todo o respeito, ainda faltam as fortalezas ao longo do rio, especialmente Humaitá.
- Esse assunto já está resolvido, meu jovem. Vamos posicionar a frota e destruir em duas horas as baterias daquela fortaleza, e Assunção será nossa !
- Almirante, posso ser franco?
- À vontade, jovem.
- O terreno ali é instável e difícil para os cavalos, e somente soldados a pé passam, mas eles terão de contornar uma área de alagados –mostrou a marca no Mapa. Esta aqui
O nome do marco se chamava Curupaiti.
Na estância , a azáfama era por conta do nascimento do filho de Maria Isabel, que movimentava Nadejda, Militina e duas outras mucamas, trazidas do serviço de casa pra ajudar. Ela era uma mulher corajosa, mas havia momentos m que as forças lhe faltavam, e era Nadejda que comandava tudo, ajudando, incentivando ou mesmo ralhando um pouco com ela, quando ela enfraquecia
Os preparativos para a Batalha de Curupaiti já hvaiam comçado. Parte d frota se deslocou para posições próximas a Humaitá, onde concentrariam seu fogo. Do outro lado, as tropas comandadas por Mitre, presidente da Argentina e grande líder político e militar, avançavam em meio aos canhonaços. Mas ainda os esperava algo pior. Escondidos em trincheiras rasas, as tropas paraguaias aguardavam apenas um sinal para começarem a fuzilaria. Os soldados aliados avançavam no pântano com dificuldade, com água até quase às coxas, alguns afundado com o peso dos equipamentos. A um sinal, a fuzilaria tomou conta do campo. Os paraguaios, conhecedores do terreno, passaram a atirar de cima pra baixo, abrindo grandes claros nas companhias e pelotões.Onda após onda era derrubada pelo fogo certeiro dos fuzis paraguaios A derrota dos aliados foi atroz...Cerca de três mil homens perderam a vida, entre brasileiros, argentinos e uruguaios. Humaitá ainda resistia, e seria difícil tomá-la...
Maria Isabel completara o trabalho de parto. Mais uma vez, dois gêmeos para o mundo dos Willingthorpe. Nadejda segurava um dos bebês, uma menina, que era a expressão dela própria, ou mesmo da condessa Ludmila. O menino chorava forte, recebendo o colo da mãe e se acalmando lentamente...
- Como serão seus nomes, Maria Isabel?
- Ludmila, para a menina, e James, para o menino. Uma homenagem à avó de Robert
Nadejda sorriu. Mais dois Willingthorpe para agitar este mundo, pensou ela..
A guerra prosseguia num impasse, não pelo fato dos exércitos aliados serem derrotados por Lopez, ou que este se impunha, mas era assim por uma combinação de fatores geográficos e de logística, pois, não dispondo de mapas precisos, eram obrigados a confiar em guias locais sem muito crédito, e o avanço das tropas era caótico, pois não havia coordenação nem sintonia entre os exércitos.
Em Uruguaiana, os Paraguaios passaram de sitiantes a sitiados, as reservas da cidade minguando e em qualquer chance de receberem reforços. Lucas Almada, comandando uma seção de cavalaria, fustigava constantemente a linha de suprimentos do inimigo, não deixando que se abastecessem. .
Enquanto isso, Robert, integrando o staff do Almirante Tamandaré, enfrentava um dilema. As ordens que tinha limitavam seu papel ao de observar, mas ele sentia falta de alguma ação... Tinha visto ação em Riachuelo e Curupaiti, e perdera um amigo lá, Dominguito Sarmiento, filho de um lugar-tenente do General Mitre, comandante das tropas argentinas. Recebia, naquele momento, a mensagem da derrota de uma grande força paraguaia em Tuiuti, numa batalha de atrito em que os paraguaios fizeram um ataque surpresa, mas a formação dos aliados estava a postos, rechaçando cavalaria e infantaria.
Na estância, as coisas continuavam em estado de alerta, mas isso era suavizado com a presença dos gêmeos, que eram sempre brincalhões e divertidos. Nadejda se esmerava ainda mais no cuidado com os bebês, como se fossem seus próprios filhos. Via-os crescer, serem crianças, pois nessa fase o exercício da infância é fundamental.
As batalhas batiam o exército paraguaio, mas não cortaram seu aceso a Assunção, protegido pela fortaleza de Humaitá. Tamandaré foi afastado, sendo substituído pelo Marques de Inhaúma, igualmente ortodoxo e sem iniciativa, acabou perdendo inúmeras oportunidades de tomar a fortaleza de assalto, depois do desastre de Curupaiti
Mas a superioridade militar e a pujança econômica dos exércitos platinos fez a diferença, e Humaitá acabou sendo tomada, com Lopez fugindo para Assunção Robert, ainda no estado-maior de Inhaúma, verificava todos os aspectos e remetia as missivas a seu pai, ao comandante Brotheridge, e a Maria Isabel, sendo que a dla mais enfática, dizia
“Meu Amor
Sei que é difícil, assim como tem sido pra mim, conduzir as coisas sem a tua presença.. A tua falta me corrói por dentro, e só a certeza de voltar me põe de pé e com ânimo para seguir em frente. A luta, mesmo sendo favorável a nós, tem sido difícil, não por conta do inimigo, mas pelos obstáculos naturais e todas as outras coisas. As baixas por doença tem sido maiores que as das balas inimigas. Acho que me encontrarei com meu primo Lucas dentro em breve. Ele segue com as colunas de cavalaria que perseguem Lopez país adentro. , sinto muito a tu falta, e m al posso esperar para te abraçar , te beijar e aos pequenos James e Ludmila.
Teu Sempre a Te Amar
Robert “
Enquanto isso, Lucas Almada seguia em patrulha, rastreando possíveis paraguaios extraviados. Tinha entre os seus um guia que trabalhara em uma fazenda de mate da região, e dera preciosas informações. Por pouco não tinham pegado o próprio Lopez, que se refugiara perto, mas ele lhes escapara das mãos. Mas desde muito Lucas era outro homem. Vira massacres demais, perdera toda quase toda sua tropa em escaramuças com os paraguaios. Num dia, vira chegar no acampamento uruguaio caixas marcadas “Departamiento Electoral”. Perguntando por tais caixas, recebeu uma seca resposta do encarregado: “es para las elecciones de nuestro pais, pues ustedes esclavistas, nos las tienen?
Isso o aturdiu. Vira vários regimentos formados, em seu exército, somente por ex-escravos, alistados simplesmente para substituir seus senhores, em uma promessa incerta de liberdade. Muitos lutaram corajosamente a seu lado, e isso o inquietava muito. Sabia que na estância, muito por insistência dos pais, não havia mais escravos, apenas pessoas livres trabalhando, mas apenas lá, e no resto do país. Muitas idéias fervilhavam em sua cabeça, e ele precisava pôr as coisas em ordem para formar uma opinião coerente. Mas ainda havia uma guerra por vencer, e ele, por ora, pôs os pensamentos de lado.
Um ano depois, a guerra terminara. Solano Lopez morrera em Cerro Corá, encerrando cinco anos de conflito e morticínio, que tinham reduzido em muito a população do Paraguai e transformado o país em um deserto. Mas a guerra não apenas era de mortes, mas de mudanças. Muitos achavam contraditório lutarem pela liberdade e virem de um pais maciçamente escravocrata. Muitos mesmo já começavam a questionar mesmo o regime imperial. Entre estes, o capitão Lucas Willingthorpe Almada.
Robert partira com Maria Isabel, e seu tio retomara as terras de sua hacienda, que até então tinha sido transformada em hospital. Lucas, agora, tomava mais e mais os rumos da família no Brasil, e, da guerra, voltara outro, com novas idéias novos momentos, ainda por vir..Nadejda e Lucas, pai, apenas observavam a mudança no caráter do filho, cujas idéias eram, a seu ver , conseqüência de todo aquele banho de sangue...Mas novos tempos ainda iriam surgir, e mais aventuras para os Shatov-Willingthorpe...
domingo, 28 de outubro de 2007
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A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!