sábado, 14 de março de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O ABRIR DAS PORTAS DO TEMPO...


 Ela chegou em casa mais tarde que o habitual; a reunião tinha sido bem-sucedida, o projeto dos lofts aprovado sem nenhuma restrição ou ressalva; ela decidiu comemorar com a equipe do escritório em um bar próximo, a comemoração se estendendo até mais tarde; deixou-se levar pelo entusiasmo e sentiu que chegara ao limite; pediu licença à equipe, tomou um táxi e foi para casa.

Acordou surpresa por não estar de ressaca; preparada para um dia de mau humor, sentiu-se estranha por não tontear e nem ter dor de cabeça; depois de tomar banho, preparou um café da manhã com frutas, iogurte e granola; era obcecada por manter o peso, o que a fazia ter sessões diárias na academia a duas quadras de casa e uma dieta rigorosa de fibras e outras tantas coisas não calóricas; usava a lembrança dela mesma, garota rechonchuda do ginásio, lambuzada de guloseimas, para se manter na linha.

Levantou-se da mesa, lavou a louça do desjejum e só então notou a sacola no sofá, com o envelope e a caixa que Lisandro entregara; sabia que teria de começar a confrontar a incumbência – e o mistério -  que seu pai legara...
Passou para o quarto e deixou a sacola na cama, enquanto ligava para saber se tudo já estava no jeito para a inspeção do prédio; teria de dar a primeira vistoria – era algo que ela não deixava que ninguém fizesse – e faria os croquis iniciais; era o jeito dela e ninguém ousava propor algo diferente; tinha conseguido juntar uma equipe de bons profissionais, numa tal sintonia que eles pareciam antecipá-la.

Por volta das nove horas ela já estava no local, um velho prédio de salas comerciais perto da Praça Quinze, com uma fachada de terracota ainda bem preservada e platibandas de estuque; seus olhos treinados esquadrinharam cada detalhe da fachada, cada parte que pudesse ser preservada ou então descartada; a equipe chegou quinze minutos depois; juntos, vasculharam cada canto do prédio, o primeiro de um projeto experimental que tentava revitalizar o centro da cidade; procuram em cada canto detalhes que pudessem reforçar , ou não, a viabilidade do projeto; depois de duas horas de um pente fino rigoroso, deram o “OK”, para começar.


O sol já se punha quando voltou pra casa; deixou os sapatos perto da porta, o casaco no sofá, o resto das roupas na máquina de lavar e entrou no chuveiro; depois, já de roupão, foi para o quarto, onde os jornais do dia já a esperavam; mas, antes que a leitura começasse, ela divisou a sacola do outro lado da cama; olhou-a longamente, sem expressão no rosto; lembrou-se das palavras do pai na carta, pedindo a ela que continuasse o que ele não conseguira...
Deixou os jornais na cadeira, tomou a sacola e derramou o conteúdo; a caixa de pinho e o envelope ficaram lado a lado; ela fitou-os e, como se cruzasse uma linha, abriu o envelope; dentro, um pequeno bilhete do pai, um cartão de uma firma guarda-móveis e duas chaves num chaveiro em forma de um pequeno cavalo; o bilhete simplesmente dizia que ela deveria ligar para o número do cartão e passar o número de ordem, para que o que estivesse lá fosse despachado; já passava das seis, mas , mesmo assim , ela resolveu ligar;
- Guarda-móveis Algarve, boa noite; Luís Cláudio falando.
- Boa noite, Luis Cláudio. Aqui é o cliente da Ordem de Serviço W36789P.
- Pode confirmar, por favor? Indagou o atendente numa voz robótica, como se fosse uma gravação.
- Ordem de Serviço W36789P –repetiu ela, reforçando a entonação de cada letra e número.
- Obrigado, senhora; sua entrega será feita em até dois dias úteis; prazer em atendê-la.

Ela desligou o telefone com uma interrogação a mais; o que o pai teria naquele lugar? Ela se lembrava que, num rompante, ele resolvera doar todos os móveis mais antigos do apartamento para um abrigo de idosos; separara meticulosamente o que iria doar e depois guardou algumas coisas; no outro dia, ela pudera ver que tudo já tinha ido embora, exceto o que ele preservara no recanto favorito.

Os dois dias passaram como um estalo, ela entregue ao projeto dos lofts, discutindo cada detalhe com os contratantes; nenhuma ressalva havia sido feita; tudo caminhava na mais perfeita ordem e nem mesmo o prazo tinha estourado; ao contrário, tinham uma confortável dianteira, que deixou os contratantes muito felizes; o projeto era o modelo para outros que viriam e tinha de dar certo; ela deu-se o direito de um dia de folga; deixou as tarefas de supervisão para a equipe e descansou por algumas horas.

O som do interfone interrompeu o descanso; o porteiro avisava que um furgão de entregas tinha chegado e necessitava de autorização para entregar uma correspondência; ela concordou e, depois de alguns minutos, dois homens trouxeram uma caixa de mais ou menos um metro de altura, de madeira escura, de jeito antigo, mas o cadeado era um cadeado moderno; depois de assinar o recibo de entrega, pediu que deixassem a caixa no meio da sala; depois que os entregadores saíram, ela se pôs a examiná-la a partir dos fechos, antigos mais ainda intactos, como se tivesse sido, desde o começo, muito bem cuidada; tudo estava em completa disparidade com o  cadeado, mais moderno que o conjunto; era daqueles cadeados de bronze com trava de aço, muito vendidos em lojas de ferragens;



Então, ela se lembrou das chaves.


Buscou-as no quarto; uma delas tinha um formato simples; devia ser a chave da caixa menor, de fechadura mais rudimentar; a outra, de formato mais elaborado, devia ser a do cadeado da caixa maior; pegou a chave mais intrincada e experimentou no cadeado. Ele abriu num estalido seco, liberando a trava da caixa; ela abriu a tampa devagar, mesmo sem mais nenhum controle da ansiedade; olhou o que continha e sentiu que as portas do tempo estavam se abrindo; ela descortinaria o mistério que tanto norteou a vida do pai....