sábado, 28 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XIX

CHARLTON HOUSE, 1890

Aurélio parecia ter feito as pazes com sua vida.

O casamento com Agnes transcorria feliz, os filhos tinham crescido e seguido suas vidas; Anna estava noiva de um promissor oficial da Marinha Real e Aurélio, mesmo a contragosto do pai, seguiu carreira militar e estava por se graduar em Sandhurst; o terceiro filho, Matthew, já nascido em solo inglês, era quase saído da meninice; Aurélio ainda recebia com alguma regularidade cartas da irmã, que cuidava do patrimônio que coube a ela no espólio do pai; não se casara novamente, pois ela dizia em suas cartas que “se cansara de esperar por promessas que não se cumpririam; os jogos amorosos agora eram um enfado”; ficou a pensar na irmã de outros tempos, ansiando por aventuras românticas; os tempos mudavam e as pessoas também...

Seus pensamentos foram interrompidos pelo som de passos vindos do corredor; a criada trazia uma bandeja com chá e madeleines recém-assados, cujo aroma se espalhou pela sala; sem dizer palavra, deixou-a sobre a mesa e afastou-se. Ele se limitou a sentir o aroma dos doces, ainda relutando em comer; ouviu novamente o som de passos, desta vez mais leves e compassados.



- Que pensamentos são esses que tanto o perturbam, meu querido? -  Ela percebeu através da calma o olhar profundo e preocupado.
- Sabes que reneguei todas as coisas de meu passado na guerra, todas as dificuldades que passei; tentei com todas as forças manter isso longe da família; a opção do meu filho simplesmente me tirou o chão.
- Ele nada mais fez do que você mesmo quando decidiu se alistar, não lembra? O seu pai também não aprovava, mas assim mesmo fez o que fez e quase não consegue se despedir dele.

A observação da esposa o chamou à razão; ela sempre sabia o momento certo de chamá-lo ao bom senso, ao equilíbrio; essa soma de forças fazia com que tudo na vida deles, das finanças à relação com os filhos, fosse sempre assim, sem percalços.

Deu as mãos a ela e, por fim, provaram do chá e dos doces..





SPION KOP, Africa do Sul, 1900

O calor era insuportável.

Os nervos dos homens já tinham alcançado o limite; o entusiasmo inicial já os havia abandonado há tempo; acossados pelos tiros precisos dos rifles Mauser dos Boers e sob fogo constante de artilharia – os canhões inimigos não podiam ser localizados, pois já usavam a nova pólvora sem fumaça, que tornava inútil o treinamento dos observadores de artilharia, que se orientavam pela fumaça dos disparos – muitos se desesperavam, igualmente atormentados pela sede e pela fome; a ilusão de uma vitória fácil sobre os teimosos fazendeiros sul-africanos se desfez...



O capitão Aurelio Charlton – chamado pelos homens de “Captain Aurell”, pela dificuldade em pronunciar seu nome brasileiro – municiava sua pistola Mauser C96 enquanto usava um periscópio para sondar o horizonte; para surpresa dos soldados, o topo do monte era da mais dura rocha, impedindo que se cavasse uma trincheira profunda; o resultado foi que embora dominassem a colina, ficavam expostos tanto ao fogo de artilharia quanto aos tiros precisos dos rifles. O local ficou juncado de mortos e feridos e o cheiro já era pungente demais para suportar.



Foi então que ouviram os gritos.

Uma leva de centenas de Boers atacou a colina, avançando sem medo e com um aguerrimento que surpreendeu os britânicos; se seguiu uma luta sem quartel, onde o inimigo, mesmo sofrendo pesadas perdas, conseguiu empurrar os ingleses para um terreno onde não havia muita chance de defesa. Aurélio tentava organizar uma resistência, mas os homens, debilitados pela sede e pelo cansaço, estavam no fim de suas forças e os reforços falharam em levantar o cerco; enfim, vendo que nada mais podia fazer, o oficial comandante ordenou a retirada, deixando os mortos e os feridos que não podiam ser resgatados no topo da colina...



Carregado por dois soldados, o capitão Aurelio, ferido na coxa e no antebraço esquerdo, foi conduzido a uma ambulância, onde um sargento indiano, de baixa estatura e com um pequeno bigode, o ajudou a acomodar-se, enquanto um enfermeiro verificava seus ferimentos; com um misto de raiva e desapontamento, olhou ao redor e viu, do outro lado do rio Tugela, a colina que tantas vidas havia custado, fruto do desconhecimento e da incompetência de generais pomposos que não se importavam com os homens; insistiu em ficar para ver a situação dos soldados, mas o oficial médico disse que ele precisaria de mais cuidados no hospital de campanha, se quisesse sobreviver ; a ambulância preparava-se para partir quando ele se dirigiu ao indiano que o ajudara.
- Sargento, veja que esses homens recebam o melhor cuidado possível; lutaram com muita coragem e não merecem ser deixados de lado.
- Me assegurarei disso,senhor – disse o indiano.
- Muito bem, fico mais tranquilo em saber que posso contar com isso, sargento...
- Gandhi, capitão; Mohandas Gandhi, do Serviço Indiano de Ambulâncias.

Aurélio respondeu a continência e deu duas pancadas no madeirame, sinal para que a carroça seguisse em frente; teria muito a relatar aos seus superiores, depois que saísse do hospital...




Créditos das Imagens - Google Images

segunda-feira, 16 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XVIII


Eliza sorriu enquanto ele conferia o GPS.

A bucólica paisagem campestre inglesa era um alívio, depois do burburinho londrino; ele imaginara uma cidade fleumática, de tipos formais e silenciosos; espantou-se com a agitação, que ele achava tão tipicamente americana.

- Essa Londres é bem dos livros de mistério ou de peças de teatro, meu amor; depois dos Beatles e dos punks, ela jamais foi a mesma, mas mesmo assim é encantadora – disse ela, divertindo-se com o espanto dele.

Sorriram juntos, enquanto seguiam adiante.

As estradas rurais, mesmo com seu visual encantador, revelaram-se um desafio; mesmo ela , tendo residido algum tempo no país, jamais se aventurara fora de Londres sozinha, e, quando viajava, sempre era com alguém que conhecesse bem o caminho; por sorte, tinham descoberto no apartamento de Derek um guia das casas de campo da região, onde Charlton House aparecia como uma das mais antigas casas descritas; “vai ser mais fácil assim”, pensou ele.



Isso seria mais fácil dizer do que fazer.

Embora figurasse como uma das casas mais antigas daquela parte, havia pouca coisa sobre a localização, que , segundo o guia, dava apenas uma referência de uma colina próxima, densamente arborizada, que a fazia ficar oculta aos que vinham pela estrada.

Uma estrada vicinal de macadame, quase escondida pelas cercas-vivas que estavam nos lados da rodovia, revelou uma placa onde se via “CHARLTON HOUSE 2 miles”; a estradinha era emoldurada por pedras toscamente talhadas, que davam um aspecto antigo; rumaram por ela até que chegaram a um portão escuro, onde letras douradas formavam um monograma que, certamente, deveria ser o dos Charlton; Eliza desceu e se dirigiu até o portão, apertando a campainha para ver se era atendida; uma voz misturada com estática perguntou se eram visitantes, pedindo que voltassem em um hora, pois o horário de visita guiada começava por volta de duas da tarde; Eliza respondeu num tom firme, e, dentro de poucos minutos, o portão se abria, revelando, no alto da colina, a casa que os tinha intrigado tanto; Walter reparou na cerca branca a uns cem metros da casa, nos fundos, mas procurou prestar atenção no caminho até a entrada. Já os esperava uma mulher aparentemente de meia-idade, cabelos brancos arrumados num coque elegante e de olhos azuis expressivos.


- Bom dia, espero que sua viagem tenha sido agradável – disse a mulher em um tom formal, de uma cortesia que parecia camuflar sua verdadeira expressão – Sou Mavis Lockhart, governanta e curadora de Charlton House; no momento, o senhor Mark Charlton se encontra em Paris a negócios, mas se eu puder ajudar, podem falar comigo.
- Muito agradecidos , Sra. Lockhart.
- É Senhorita Lockhart, minha cara, eu sou filha única , e o trabalho de cuidar de meus pais não deu-me tempo para ter família.
- Perdoe-nos então , senhorita; estamos em viagem pela Inglaterra e aproveitamos para conhecer a casa, pois tem um pouco a ver com uma pesquisa que estou fazendo

Eliza, então, contou a Mavis toda a história desde o princípio, desde o testamento do pai até a circunstância que a levou até lá; a governanta a fitava com olhar inquisidor, como se cada parte da história acendesse uma luz em seus pensamentos; por fim, ela conduziu Eliza até uma sala próxima do vestíbulo, onde uma galeria de retratos de família dominava a decoração; no quadro maior, a família composta do marido, da esposa e dois filhos, uma menina, mais velha, aparentando ter quatorze ou quinze anos, a esposa, sentada numa cadeira de espaldar alto, e um menino, que deveria ter uns oito ou nove anos, abraçado à mãe; ela notou que o homem não assumia a pose formal geralmente encontrada nos retratos de família, mas trocava olhares cúmplices com a esposa e os filhos; outros retratos mostravam as mesmas crianças, mas desta vez não eram pinturas, mas daguerreótipos que mostravam cenas de viagem, de lazer e mesmo de um casamento de família.
- Aqui, um pouco da história da família, minha cara; a propósito, seu nome...
- Eliza Thomaz, sou arquiteta e tenho um escritório no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro;
- Interessante! Há algum tempo uma outra pessoa com este sobrenome esteve aqui, em busca de alguns documentos; a senhora por acaso sabia que, naquele retrato de família que viu, o marido de Lady Charlton era um brasileiro? Ela o conheceu quando o pai tinha negócios naquele país, há mais de cem anos.
- Essa pessoa seria por acaso um jornalista chamado Silvano Thomaz?
- Eu creio que sim; ele deixou aqui um cartão de visita que eu devo ter guardado; ele é seu parente?
- Ele era meu pai, senhorita; e eu estou aqui, como já expliquei, para concluir um trabalho dele. Ele faleceu recentemente e deixou esse trabalho inacabado.
- Eu sinto muito senhora, espero que esteja tudo bem.
- Não se preocupe, isso já ficou para trás; espero não incomodar mais que o necessário
- Não, não será incômodo, por favor, me acompanhe.

Walter e Eliza a seguiram, imaginando que histórias a casa poderia contar...

quarta-feira, 4 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XVII


CRUZANDO O ATLÂNTICO, 1877

Ele contemplava o mar como se a imensidão das águas fosse dar resposta às suas indagações.



Agnes e as crianças ainda dormiam na cabine; levantara mais cedo por não conseguir conciliar o sono com o tempo da viagem; mesmo sendo os dezesseis dias um tempo mais rápido do que se tivessem partido do Rio – vinte e oito dias era o tempo em média que os navios levavam do Rio de Janeiro a Liverpool – ele não conseguia pegar no sono; mesmo assim, a viagem transcorreu sem um transtorno sequer, com tempo bom e mares calmos.



LIVERPOOL, 1877

O frio entrava pelos ossos.

Era completamente diferente do clima de São Luís; ele se lembrava desse frio de outro tempo, nos campos e esteiros do Paraguai; parecia agora, porém, mais forte, apesar do casaco de lã e do chapéu de feltro.



Supervisionou a descarga da bagagem com cuidado, enquanto organizava o transporte até a estação; seria uma longa viagem até Charlton House, onde teriam de fazer contato com Horace Thurnbull, tesoureiro e testamenteiro de Mr. Charlton, para o conhecimento do inventário e a leitura do testamento.



A viagem de trem foi um reconfortante alívio; mesmo com a travessia oceânica sendo tranquila e sem incidentes, preferiam muito mais se sentir com terra firme sob os pés; os campos ingleses foram uma agradável surpresa para Júlio e uma confortável familiaridade para Agnes, que revia o lugar de sua infância; o verdejar que serpenteava pela janela do vagão alegrava sobremaneira as crianças.


A chegada a Sussex se deu por volta das dez da noite, a bagagem novamente descarregada e organizada em carruagens; no pátio de saída, os esperava um homem de meia-idade, suíças brancas emoldurando olhos cinza-azulados sem o menor resquício de brilho.

- Senhorita Charlton, eu presumo? – o homem se apresentou sem o menor traço de emoção, inclinando-se levemente – Sou Horace Thurnbull, guardião do inventário e do testamento de seu pai.

- É Senhora Meira agora, Sr. Thurnbull; este é o meu marido Júlio Meira, e estes são os meus filhos, Anna e Aurélio.

O homem pigarreou, como que a ignorar o constrangimento com a situação que se apresentava; limitou-se a dizer que os aposentos de Charlton House já estavam preparados para recebê-los; com gelada cortesia, sinalizou ao cocheiro que aproximasse a carruagem , onde então Agnes , Júlio e os filhos embarcaram, seguindo então para a casa; Thurnbull, então, embarcou num cabriolé e os seguiu.

Chegaram quase meia-noite; Agnes acomodara bem o pequeno Aurélio para que dormisse sem o incômodo dos solavancos; Anna, por sua vez, dormitava no colo do pai; a porta da carruagem foi aberta por um homem de porte altivo, magro, com um bigode meticulosamente arrumado; apresentou-se como Pritchard, o mordomo, que, tomando Agnes pela mão, ajudou-a a descer da carruagem; os dois lacaios que o acompanhavam se encarregaram da bagagem, levando-a para o interior da casa; Julio, carregando a filha, acompanhou a mulher, entrando na casa acompanhado do mordomo; lampiões foram acesos e, então, o Sr. Thurnbull despediu-se, avisando que viria por volta das duas da tarde, para a leitura do testamento.

A leitura do inventário e do testamento se fez conforme o esperado, com a listagem dos bens de Mr. Charlton, desde propriedades na França, uma villa nas proximidades de Florença, ações ao portador, além do controle acionário da firma do pai, Charlton & Co. tudo isso somado a uma renda anual de 150 mil libras.

Júlio observava impassível a leitura, pensando em como seria a vida daí por diante; uma coisa era ser escriturário, outra era ajudar Agnes a controlar e gerir tudo aquilo; guardou suas suposições para si, enquanto a voz tediosa e gutural de Horace Thurnbull continuava a listar os bens do falecido Sr. Charlton...