sábado, 2 de maio de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O SUBSTITUTO - PARTE III



Finalmente tinha chegado o dia em que ele iria conhecer seu “substituto”, pois rezava a lei que deveria haver um contrato de anuência entre ele e o tal que iria em seu lugar na frente de batalha; o pai e o Barão tinham combinado ir a São Paulo e o fizeram sem demora, o encontro acontecendo na banca de advocacia do Mauricio Nunes, que representava o Barão na cidade; apesar de ter uma personalidade viajada, não gostava muito de São Paulo, vindo em deferência ao amigo Manoel Fogaça; encontraram-se pelo fim da tarde, na espaçosa sala do escritório da Rua Direita, não muito longe das Arcadas.


-Muito bem, senhores, permitam apresentar Jonas Silva, que celebrará o contrato de substituição de serviço com seu filho, Meritíssimo Fogaça – Mauricio tratava respeitosamente o pai de Jerônimo pelo título – a minuta do contrato está aqui; queriam examiná-la, por favor.


Manuel Fogaça foi o primeiro a ler, depois o Barão e, por último, o próprio Jerônimo; era um documento bem elaborado, em que o substituto se comprometia, dentro da modalidade do serviço a ser cumprido, a fazê-lo com propriedade e respeito; o resto era o floreamento típico da linguagem advocatícia, bem conhecido de todos.
- Se todos concordarem com o texto da minuta, podemos proceder à assinatura e ao posterior registro em cartório; o pagamento será feito lá e o substituto encaminhará o documento para o devido alistamento – falou então Mauricio, perscrutando a todos com o olhar.

Todos assentiram com um movimento de cabeça; Mauricio, pressuroso, preparou o documento então, para a assinatura de Jerônimo e Jonas; o primeiro notou a completa ausência de expressão do segundo, como se não tivesse consciência ou mesmo não se angustiasse com o que iria encontrar na frente de batalha; indagou a si mesmo que motivos levariam um indivíduo a sujeitar-se de tal maneira a esse contrato.

O Barão e Manoel Fogaça não esconderam seu alívio em ver que a situação parecia resolvida; depois de um aperto cordial de mãos, despediram-se; o Barão queria voltar logo para Jacareí e Manuel Fogaça tinha afazeres pendentes na comarca; somente Jerônimo, Jonas e Mauricio permaneceram na sala, pois teriam de proceder o pagamento e o posterior registro; Jerônimo, dessa vez, encarou Jonas com um olhar mais que interrogador; queria saber o que movia aquele homem pra tanto, pra se sujeitar a substituir um homem que , por sua vontade, queria ir à frente de batalha.
- Muito bem senhores – a voz de Maurício trouxe Jerônimo de volta à realidade – agora resta a assinatura dos dois para lavrar o documento; somente depois faremos o pagamento.

Jerônimo novamente olhou para Jonas com um misto de curiosidade e um certo desprazer; aproximou-se e o fitou de alto a baixo; o outro homem respondeu naturalmente.
- Sei que o senhor terá má ideia de mim, mas me permita explicar porque aceitei isso – disse com voz calma – talvez entenda, talvez não.

Escutou atentamente a história, e cada vez mais que a ouvia, ficava estupefato; o homem aceitara o pagamento porque o sogro, atolado em dívidas, morrera e deixara as dívidas com ele, os credores ameaçando desalojar a família da porta-e-janela em que viviam; quando o Mauricio o procurou, aceitou de pronto a proposta, pois o dinheiro liquidaria a dívida e ainda sobraria para a família.

Jerônimo ficou sem palavras; apenas se limitou a observar o homem, agora com uma expressão de pena; não sabia o que dizer a ele, nem sequer imaginava qualquer resposta, mesmo que retórica; olhou novamente para o homem, novamente para o documento e, num impulso, assinou-o; Jonas assinou logo em seguida, numa caligrafia que vacilava; Mauricio pegou o documento, passou o mata-borrão e depois voltou com um pacote que entregou a Jonas.
- Como combinado, esse é o seu pagamento; apenas passe amanhã para que possa levar o documento para a junta de alistamento.


Jonas saiu sem dizer palavra, deixando Jerônimo e Maurício no escritório sozinhos. Não havia igualmente palavras entre os dois; Maurício quebrou o silêncio, tentando ser amigável.
- Bem, acho que o seu pai pode ficar aliviado agora, não? – Forçou um sorriso.

Jerônimo respondeu franzindo o cenho; procurando não prolongar a permanência ali, apertou a mão do advogado e saiu.

O ar da rua fê-lo sentir-se melhor; ainda assim, procurava entender os motivos daquele homem; parecia que a perspectiva de ser ferido ou morto no campo de batalha não o perturbava; sentiu-se envergonhado por não entender as razões que ele apontara para fazer aquilo.


Voltou para a pensão que morava com a cabeça cheia de perguntas, imaginando se realmente deveria ir à guerra ou deixar aquele substituto servir; parecia ter perdido o tino, como se a resposta daquele homem tivesse aberto a janela da realidade para ele. Era como se finalmente visse que, até aquele momento, somente os motivos dele importavam; agora tinha visto os motivos dos outros...

Respirou fundo, depois de muito meditar, e pensou em Luiza...

O vento agitava de leve as cortinas da casa do Comendador Andrade,  fazendo bruxulear a chama do lampião de opalina, perto do qual Luiza bordava uma toalha; Izolina, a mucama, rapidamente fechou as janelas, procurando não atrapalhar a concentração da jovem.
- Não se apoquente com isso, Izolina - disse ela sem largar do bastidor - eu gosto desse ventinho, ajuda a sentir o tempo.
- Sinhá pega friagem, comendador desconta em mim, bom tirar esse vento encanado.
Luiza riu de leve, enquanto a mucama ia embora; era sabida a preocupação do pai com a saúde dela, desde que uma pneumonia quase a levara; desde então era um desdobrar sem fim de cuidados, que muitas vezes a irritavam; a temporada na casa do Barão de Santa Branca foi um alívio, um tempo de todo especial por uma coisa...Pensou nele, no beijo dado naquele arrebatar de impulso; o simples pensamento acelerava o coração; em todas as noites, pedia em suas preces que eles se reencontrassem logo...