quarta-feira, 30 de setembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XIII


SÃO LUÍS, 1871

O choro acordou o pai.

Abriu os olhos, a vista se habituando lentamente à chama do lampião; virou a cabeça e, de início, não reconheceu a figura ajoelhada ao lado dele; sinalizou para Vicência, que cutucou Júlio de leve; o filho ergueu o rosto e contemplou o pai, sem logo demonstrar reação; ainda tinha na memória a indiferença, a ausência das cartas enquanto esteve na guerra, a discordância pelo fato de ter se alistado.

Tudo isso se dissipou quando o pai, movendo o braço esquerdo – o direito continuava inerte, paralelo ao corpo – buscou o rosto do filho; Júlio inclinou-se mais para perto dele, que tentava reconhecer os traços do filho no rosto que tocava; Vicência aproximou mais o lampião e só nesse momento os olhos de pai e filho se reencontraram; não houve palavras; o velho tentava balbuciar algo, mas Júlio o acalmou; abraçou-o então e os dois choraram; não havia mais naquele momento razão para mágoa ou mesmo ressentimento; as lágrimas corriam dos olhos do pai e do filho, o abraço como se contassem um ao outro a falta que sentiram, a ausência de cartas ou conversas; de repente, ele sentiu que as forças do pai faltavam; o abraço foi afrouxando, até sentir que ele não se sustentava mais; sentiu a respiração esmorecer até que ouviu o último suspiro...pousou-o suavemente na cama e cerrou-lhe os olhos; dentro de si, algo pareceu se quebrar; tonteou e, se rendendo à dor, desfaleceu no chão da alcova; parecia ouvir a voz da irmã...

Os olhos de Amália foram a primeira coisa que viu ao despertar; ela estava a colocar-lhe um pano úmido na testa, para refrescá-lo. Agnes permanecia junto à porta do quarto, em silêncio; ajudara a irmã dele a colocá-lo na cama e agora, depois das circunstâncias da chegada, podia observá-lo melhor;

- Acordou então, meu irmão – disse ela sem ênfase – poderia abraçá-lo por retornar vivo, mas não sei se posso fazer isso agora, principalmente depois do que aconteceu.

- A dor é igualmente minha, irmã;  pensar que ele pode ter se agarrado à vida achando que não ia me ver voltar vivo.

- Ele jamais acreditou quando Lucio disse que podias ter morrido em batalha; que estavas desaparecido; ele sempre acreditou que voltarias.

- Sabe como são as coisas no exército, minha irmã; nem o correio eles conseguiam entregar direito; nem todas as tuas cartas eu recebi; tenho algumas nos meus alforjes, assim como cartas que escrevi e nunca consegui te enviar; mas e o Lucio, como ele está? Pensei que já estivessem casados.

- Depois que ele trouxe notícias suas ao nosso pai, ele teve de cumprir um turno em Buenos Aires como representante do almirante Tamandaré, mas na cidade grassava uma epidemia de cólera e ele morreu em uma semana; tive igualmente minha cota de dor; não posso dizer que eu o amava, mas ele era um homem bom e decente e eu tinha por ele grande afeição.

Procurou não prolongar muito aquela conversa com a irmã; a dor era algo que se ia dissipando lentamente, a seu tempo e jeito; pediu a ela sabão de barbear e uma navalha, pois iria se livrar da barba que deixara crescer durante a guerra; pediu à Vicência que queimasse o dólmã, a capa, os culotes e mesmo as ceroulas, pois nada queria que tivesse as marcas de morte e sangue; preservou apenas a medalha de bravura que recebera, hesitando em se desfazer dela; escanhoou-se devagar, usando a navalha com cuidado, procurando recuperar o hábito há muito abandonado; deixou apenas as suíças, na altura do meio do rosto; não era mais o jovem imberbe de antes; preferiu adotar essa aparência para se distanciar do passado e encarar o futuro com um novo olhar. Levantou-se, tomou um dos ternos que deixara quando se alistou e percebeu que emagrecera a tal ponto que seriam necessários reparos para ajustar as medidas a um molde completamente novo.

Depois de tomar o desjejum, ajeitou-se e tomou um tílburi até o Cemitério dos Passos, passando pelo mercado e comprando flores para colocar na sepultura do pai; dormira um dia e meio derrubado pela dor e pelo cansaço, não conseguindo ser desperto para o enterro do pai; “talvez tenha sido melhor assim”, pensou, enquanto o tílburi sacolejava levemente; chegou no momento em que um cortejo chegava com dois caixões para serem sepultados; reconheceu no meio das pessoas um velho colega de Liceu, Amaro Gonçalves, ar contrito, chapéu na mão e caminhando devagar ao lado dos ataúdes.

- Meus pêsames; oxalá tivéssemos melhor circunstância para nos encontrarmos – disse Júlio, enquanto apertava a mão do amigo.

- Não somos senhores delas, não é mesmo? – respondeu sem muito vigor Amaro – pessoas vêm e vão; uns logo, outros um pouco depois - Hoje estamos enterrando dois amigos nossos que sobreviveram à guerra, apenas pra morrer de doença aqui; ao menos não morreram longe dos seus; não sei o que seria morrer em terra estranha, não ter um enterro cristão.

Júlio então viu, encabeçando o cortejo, dois casais de meia idade, em passo compungido, interrompido por choro e soluços; pensou nos que viu morrer lá no Paraguai, sem terem nem como ser enterrados, apenas deixados pra que os elementos os consumissem.

Desviando do féretro, se dirigiu até a sepultura do pai, no jazigo da família; os zeladores ainda arrumavam as corbelhas que haviam sido deixadas no enterro, organizando-as cuidadosamente ao redor da entrada; girou a chave e entrou devagar, vendo as campas do pai, do avô e do bisavô, com as respectivas datas de nascimento e morte; meditou em silêncio por longos minutos até depositar as flores na campa onde jazia seu pai; no silêncio, parecia sentir a presença dele e lembrou-se de como morrera em seus braços; vira a morte em batalha, tantas vezes que virara fato banal no dia a dia de campanha, mas nada o preparara para a dor da perda do pai, especialmente sem poder ter tido a chance de pedir perdão...

Voltou para casa pelo fim da tarde, ainda imerso em pensamentos; indagava por que tantos morreram e ele sobrevivera, apenas para ver o pai morrer; era algo que o agoniava, que não o deixava em paz, parecia corroer lentamente a alma.

Agnes e Amália estavam 
lendo na sala quando ele chegou; pousou o chapéu de feltro mole no mancebo do vestíbulo e a bengala de castão de prata no suporte abaixo do espelho; só então sentou-se na cadeira de espaldar alto que pertencera ao pai, ainda pensativo; Vicência, pressurosa, serviu a ele um cálice de licor, o qual ele agradeceu polidamente, antes de sorver um leve gole.

Agnes e Amália repararam nele de maneiras diferentes; a irmã via a transformação do semblante dele, antes de uma radiância que contagiava e , agora, parecia ter se perdido; em seu lugar, apenas uma profunda tristeza; Agnes via igualmente essa transformação, mas algo nela fazia com que quisesse ir na direção dele, como que a querer aconchegá-lo; nos olhos opacos e sem vida, o querer de iluminá-los...


(continua...)