sábado, 11 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - CAPITÃO CASTANHO


Ele não tinha medo de nada.

Era popular na tropa e nada ordenava que ele mesmo não pudesse fazer; de piquetes de esclarecimento até cargas de emboscada, era ele mesmo quem comandava, ou mandava alguém de confiança, mas sempre gostava de acompanhar; uns diziam que se atirava pra morte; outros que ele tinha enterrado o coração numa arca a vinte palmos debaixo da terra, por isso não podia morrer; outros mais ainda arriscavam a dizer que a bala que iria matá-lo não tinha nem sequer sido fundida; faziam o sinal da cruz pelas costas dele quando passava;

Viam-no sempre em silêncios meditativos, observando o campo, ou mesmo nas cavalgadas em que, tal qual Napoleão, reconhecesse o campo de batalha antes da refrega; hábil no sabre, era mortal na carga e não foram poucos os que conheceram o fim no seu aço afiado, de talho certeiro e mortal; não usava suas pistolas nos poméis ou coldres de sela, mas num coldre que deixava-as debaixo de cada axila, o que fazia o ato de sacar e atirar mais fácil; parecia não ter sono; uns diziam que comia e dormia na sela, que não teria medo nem se o próprio diabo aparecesse na frente dele.

O único que não tinha esse temor era Tibúrcio, o cabo de armas que o acompanhava; estava sempre a postos, no piquete ou mesmo em carga; tinha a mesma coragem, mas gestos mais medidos, olhos mais sombrios; quando perguntado sobre o porquê do capitão ser daquele jeito, dava de ombros e dizia: “cada qual com sua sina”.



Outro mistério que o acompanhava era a luva branca que usava pendurada no cinturão, toda vez que cavalgava; era uma luva pequena, enegrecida na palma e nas pontas dos dedos; tinha-a como talismã ou objeto de presságio; jamais saía para o combate sem ela; era um luva pequena , que jamais caberia nas mãos dele; muitos intuíam a razão dele carregar aquele talismã, e porque ele jamais falava nada do que o levara à frente de batalha...

PATY DE ALFERES, PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO,  JUNHO DE 1860

O tenente Maurício Castanho era a felicidade em pessoa.

Tudo estava arrumado para o casamento, que prometia ser o acontecimento da cidade; as duas famílias, amigas há muito, se compraziam da boda, pois os dois eram ligados desde crianças e todos já falavam da felicidade que sempre os acompanhou; a carreira de Mauricio seguia a passos largos e já se considerava um posto de estado-maior na corte, talvez com o próprio Marechal Polidoro, comandante do exército imperial; o pai, oficial da Guarda Nacional, mexera amizades e contatos para que ele estivesse muito perto de alcançar esse objetivo.



Impaciente em seu uniforme de gala, ele aguardava Amália, ansioso pelo momento que sonhou por toda a vida; era todo felicidade, enquanto andava de um lado para o outro, na impaciência de noivo; os amigos e colegas de farda o aquietavam falando da tradição de atraso das noivas; ele esperava, esperava e esperava...o céu, antes claro, começava a ribombar; raios e trovões pareciam fazê-lo tremer; os convidados começavam a se preocupar com o tempo; já se faziam dias que as tempestades de raios cortavam a serra, deixando capatazes, empregados e escravos em alerta; duas semanas antes uma tempestade assim quase destruíra o sitio do major Emiliano, grande amigo do pai de Mauricio.

A espera começou a preocupar os pais de Amália; ela preferira ficar apenas com Engrácia, filha de sua ama-de-leite e da mesma idade, para preparar-se e vestir o vestido de noiva; viria na carruagem do tio Arnaldo, que já tinha sido ajaezada e engalanada para a ocasião; Januário, capataz e homem de confiança do tio da noiva, tomou o caminho da fazenda Água Santa, para ver o que acontecia; no meio do caminho, avistou o horrendo espetáculo da carruagem ainda queimando, atingida em cheio por um raio; vasculhou ao redor pra ver se achava alguém; quem primeiro viu foi Engrácia, caída num ângulo estranho, os olhos vidrados no estupor da morte; alguns passos adiante, encontrou o corpo de Amália; o vestido branco estava esfarrapado, com partes enegrecidas e chamuscadas; o céu ainda relampejava quando Maurício chegou, cavalgando igualmente; quis dizer palavra, mas palavra alguma vinha; apenas a boca aberta no esgar do terror, do desespero do vislumbrar da morte; correu ao corpo da noiva, segurou os cabelos, beijou-os, tocou sua mão, ainda calçando a luva branca, enegrecida pelos chamuscos na ponta dos dedos e na palma das mãos; tirou-a e desnudou a mão ferida, segurando-a e beijando-a antes que a vista ficasse borrada e ele desmaiasse...

ITAPIRU, 1865

Não era mais ação de piquetes nem de escaramuças; agora, o grosso da cavalaria e da artilharia inimigas era despejado na posição deles e teriam que aguentar até que o reforço chegasse; o único jeito era atacar antes que o inimigo estivesse pronto; chamou os oficiais de esquadrão, alguns jovens tenentes que não haviam sido batizados a fogo e veteranos endurecidos; Tibúrcio já havia aprontado as armas, o sabre e os coldres sobre a mesa onde ele reunira os oficiais; junto dele, um jovem soldado que se juntara às pressas ao regimento; se reputava um bom atirador, embora ainda não se acostumasse com as manhas  dos animais; chamavam-no “pé-de-poeira”, por causa de seu passado como infante; o mais endurecido de todos era o sargento Alvarino, veterano do levante farroupilha, matreiro no combate.


Como de rigor, ele mandara patrulhas para sondar intenções, mas não conseguia saber muito de um inimigo esquivo; já pensava em levantar acampamento quando uma das patrulhas reportou um grosso volume de tropa, cavalaria e infantaria; subindo a ravina; no contar do piquete, eram dois para cada um; tinha de manter a posição a qualquer custo; pensou e então teve uma idéia; selecionou o tenente Mourão e  o Sargento Alvarino para ficar com dois dos esquadrões desmontados, Spencers carregadas e prontas pra uso; seguiria com as tropas montadas para cercar o resto da tropa inimiga, os pegando de surpresa; depois de dar as ordens, entrou na barraca e pendurou a luva branca no cinturão.

Os paraguaios viram a coluna desarmada no alto da colina e riram entre si; seria mais uma maçada, os brasileiros pegos desprevenidos; seguiram adiante, a cavalaria tomando a dianteira, a infantaria atrás; assim que chegaram no alto, porém, receberam toda a fuzilaria das armas da tropa do tenente Mourão; o fogo derrubou na primeira carga cavalos e cavaleiros, os de trás tentando romper o cerco; a infantaria inda não os alcançara, deixando-os sem apoio; ao tentarem contornar a frente da coluna, foram surpreendidos por outra torrente de fogo, desta vez da tropa do sargento Alvarino; a primeira carga foi detida, mas ainda mais duas se fizeram e se esbaterem no muro de fogo dos cavalarianos brasileiros desmontados. 

A infantaria, finalmente alcançando os cavalarianos, foi atropelada pelos companheiros montados em fuga; fuzis prontos, não tiveram tempo de formar e atirar; o capitão Castanho, com o resto da tropa montada, cortou a infantaria ao meio, os homens lanceando, cortando e atirando sem piedade; tomada de susto, a infantaria começa a se retirar, mas tem a fuga cortada pela outra coluna, que tinha ficado na reserva até receber ordem de atacar; sem tempo de formar quadrados defensivos, simplesmente foi castigada até quase a exaustão;  Castanho, já esgotada a carga de seus revólveres, usava o sabre sem perdão, atingindo torsos , cabeças e braços sem medo; de repente, um dos infantes atira quase sem mirar, mas a bala ainda tem força para atingir Castanho no pescoço; fazendo-o cair da montaria; seus homens, vendo-o cair, arremetem com fúria insana, destroçando o que restava da tropa inimiga, fazendo poucos prisioneiros...

O corpo do capitão foi recuperado horas depois, quando os feridos foram retirados e se juntavam os mortos; os do inimigo seriam queimados e jogados em valas comuns; os dos brasileiros receberiam , na medida do possível, sepulturas condignas; os oficiais, contudo, ordenaram aos homens que não queimassem os inimigos,, apenas os enterrassem nas valas; ao encontrarem o corpo de Castanho, porém notaram que ele parecia sorrir, sereno no meio daquele massacre; “pé de poeira”, tendo sobrevivido, estava com um prisioneiro paraguaio ao lado, que ajoelhado, jurava por “La Virgen de La Caridad”, que quando o viu, “o espírito dele se levantara e seguiu uma jovem de vestido branco que esvoaçava”. O corpo foi levado pra ser sepultado, com todas as honras; a história foi logo esquecida, menos para o soldado que, agora, tinha guardado a luva branca no seu uniforme...


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