sexta-feira, 15 de maio de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O SUBSTITUTO - PARTE FINAL

Tirou a barretina e enxugou o suor com um lenço.

Fazia tempo que ele estava ali, de vigia na avançada, observando a linha paraguaia.  Nem sequer um movimento se divisava, nem mesmo uma coluna de fumaça de um fumante incauto; hora atrás de hora, sem um pio que valesse, fora o dos trinca-ferros que, tempo em tempo, se apresentavam com seu trinado.

Lembrou-se do lacônico telegrama enviado ao pai: “Pai, parto pra guerra; faça o que quiser; Seu filho Jerônimo”; não esperou o resultado; engajou-se num dos batalhões de voluntários que pululavam na cidade, tomando um nome falso para se alistar; fez o juramento, um tanto envergonhado por fazê-lo com um nome que não era o seu; ainda assim assinou, tomou o enxoval de recruta e não demorou muito para que fosse enviado pra zona de guerra, num navio da marinha que os levou até as avançadas de Curupaiti, que guardavam a até então intransponível fortaleza de Humaitá; chegou depois do fim da batalha, vendo o estrago que as tropas haviam passado; olhou de um lado a outro e só via mortos, feridos e desesperados aos magotes; seu regimento tomou a direção de um grupo de tendas que os aguardava; o oficial comandante, coronel Morgado, lidava com uma pilha de papéis; ouviu os passos do grupo e apenas levantou os olhos enquanto o sargento batia continência.
- São os novos voluntários, sargento Cecílio? – perguntou, lançando um olhar de pouco caso ao grupo.
- Sim, senhor, chegados de fresco. De São Paulo, de Minas e do Rio de Janeiro
“Mais carne pra canhão”, pensou o coronel, antes de passar em revista o regimento; ainda traziam os uniformes novos de parada, como fossem se apresentar numa quermesse ou coisa que o valesse; examinou-os de alto a baixo, vendo o estado geral da tropa; podia ver que muitos, ali, se desesperariam ao ouvir o primeiro canhonaço ou correriam na primeira fuzilaria que vissem pela frente.


Menos um.

O coronel Morgado notou o porte altivo, a altura expressiva, o rosto de olhar firme e determinado, diferindo dos outros praças; percebeu a coragem na fisionomia impassível e a tendência de liderança, de comando, no rosto daquele homem
Nome, recruta?
- Tibúrcio Moura, senhor – Jerônimo respondeu, mentindo sobre o próprio nome
- De onde vens?
- São Paulo, senhor
- O que o trouxe aqui, recruta Tibúrcio?
- Quero lutar, senhor, matar muitos paraguaios – disse rispidamente, evitando falar de idealismo
- É o que vai aprender aqui, soldado – disse o coronel com igual rispidez – deixe-me ver suas mãos
Jerônimo-tornado-Tibúrcio estendeu as mãos para o coronel; o oficial viu as mãos bem tratadas, mãos que jamais tinham feito um esforço além de carregar penas e livros; possivelmente mais um ginasiano ou quartanista que queria se provar, brincando de soldado; o olhar firme e duro, porém, dizia outra coisa,
- Pois bem, soldado, aqui terá a sua chance. Só que de um jeito diferente do que pensou; Sargento Cecílio!
O sargento veio correndo , segurando a barretina com a mão esquerda; bateu continência e ficou em posição de sentido , esperando ordens.
- Sargento Cecílio, este homem será a partir de agora responsável pelo comando de uma das colunas do regimento; soldado, agora em diante és o alferes Moura; o sargento será seu segundo em comando na terceira coluna do nosso regimento.

O Sargento ficou simplesmente estupefato; não questionou as ordens do coronel, pois não cabia a ele fazê-lo, mas, no seu estupor, ficou se perguntando o que aquele almofadinha, que ele duvidava que soubesse pegar em um rifle, podia fazer no comando de uma coluna; mas desde que o alferes Martins morrera em Curupaiti, a coluna não tinha oficial em comando.
- Senhor, me acompanhe, vou apresentar o capitão Curvelo, nosso oficial intendente; ele vai indicar o seu alojamento, já que o senhor não vai fiar mais com a tropa.
Jerônimo acompanhou o sargento até uma tenda maior, onde alguns oficiais relaxavam e tomavam mate ou café, enquanto outros jogavam cartas. O capitão Curvelo estava em mangas de camisa, limpando um par de pistolas sobre uma mesa de madeira apoiada em quatro caixas que, Jerônimo notou, eram de munição.


- Capitão Curvelo, esse é o alferes Moura, mandado pelo coronel Morgado- falou o sargento enquanto entregava um envelope ao capitão – ele ordenou que o senhor o alojasse
- Certo, sargento, eu cuido dele a partir daqui – respondeu sem muito ânimo, enquanto dispensava o homem.

O capitão indicou a Jerônimo um tamborete, ordenando que esperasse; depois de mais de uma hora e meia, pediu que o acompanhasse até uma tenda vizinha, onde uma mesa, uma cadeira e um catre estavam à espera; sobre a mesa, um tinteiro e algumas folhas de papel estavam dispostas sem muita ordem.
- Essa é a sua tenda alferes, organize-se e depois se apresente. O cabo Balbino chegará para tirar as medidas de seu novo uniforme.
Não demorou muito um mulato baixo, num empoeirado uniforme com divisas douradas, chegou e apresentou-se como o cabo Balbino; trazia uma régua de onde tirou as medidas de Jerônimo para o uniforme; junto trouxe o cinto com o talim do sabre, o coldre e a pistola, um Colt de cabo de madeira que Jerônimo postou sobre a mesa.


Dois dias depois, de uniforme e armas, apresentou-se ao coronel Morgado, que novamente o olhou de alto a baixo; o uniforme assentou bem, realçando o ar de autoridade que o coronel já havia percebido.

-Muito bem, alferes, sua primeira ordem é tomar conta do perímetro sul das avançadas; não podemos deixar que os paraguaios ganhem terreno e rompam o nosso cerco. Olho vivo, pois o inimigo de vez em quando manda piquetes de infantaria para testar nossas defesas. Alguma pergunta?
- Nenhuma , coronel, ficaremos alerta.

Colocou novamente a barretina na cabeça, perscrutando o horizonte; já ficara escolado depois de repelir duas investidas de piquetes paraguaios, que se aproveitavam do crepúsculo para se aproximar sem ser percebidos; somente o olhar alerta já havia salvado a posição, respondendo prontamente ao ataque e mantendo o terreno conquistado. Seriam rendidos somente em sete dias, quando novas tropas chegariam.

As novas tropas chegaram uma semana depois do previsto, artilharia, infantaria e cavalaria descansadas e prontas para combate. Depois dos arranjos de alojamento e das formalidades de rendição, passaram pela revista dos oficiais; de repente, Jerônimo reconheceu uma figura familiar; logo viu que era seu substituto, que vinha assumir o lugar da unidade que comandava. O homem fez uma expressão de estupor, mas Jerônimo fez um sinal para que se acalmasse.
- O que faz aqui ? – perguntou em um tom quase insolente, mas vendo as divisas de alferes, empertigou-se e bateu continência.
- Eu reconsiderei minha decisão, apenas isso. E não me chame pelo meu nome, me alistei com outra identidade
- Não revelarei seu disfarce, não se preocupe; não sou eu que estou sendo tolo – respondeu em tom ríspido

De volta à tenda, Jerônimo novamente mergulhou em pensamentos; não sabia se amaldiçoava ou se agradecia ao destino por cruzar o caminho com seu substituto, pois, intimamente, talvez até desejasse tal acontecimento; mas ficava se perguntando se deveria ou não, se lembrando da família que o tal deixara para aceitar ser substituto e pagar dívidas, colocar aquele homem sob suas vistas, no intuito de tentar salvá-lo...
Luiza passeava com Izolina quando uma carta chegou, trazida por um espavorido estafeta; a mucama recebeu o envelope e entregou à jovem, que imediatamente reconheceu a caligrafia elegante de Jerônimo; afastou-se pra ter alguma privacidade e leu rapidamente a carta. “Sabia que faria isso”, pensou ela, dobrando com algum nervosismo o papel e guardando-o na mão fechada.
- A senhora tá bem, sinhá? – perguntou a mucama, desconfiada com a mudança repentina
- Estou sim, Izolina, apenas carta dos amigos de Jacareí, Nada para se preocupar
De volta em casa, procurou disfarçar a preocupação, mas dentro dela o coração queria explodir; imaginava como ele poderia estar, se ferido, perdido ou mesmo...não completou o pensamento; antes de mais nada, tomou o terço e começou a rezar baixo, mas com todo o fervor que possuía. Mais do que nunca o queria de volta, vivo.


Jerônimo foi o único dos oficiais que decidiu ficar com a coluna de rendição; tinha decidido ficar de olho em Jonas, e assim o faria; colocou-o ao lado como cabo e ordenança, sem mais explicações. “Isso é uma ordem e não se discute”, dando por encerrado o assunto.
Os paraguaios tinham mudado de tática; agora se infiltravam pelos canais do rio, que alcançavam a retaguarda perto das avançadas; já tinham neutralizado vários postos de vigia ao longo da margem e nos esteiros próximos, numa guerra de fustigação que sempre preocupava; silenciosamente, chegavam em canoas, degolavam as sentinelas e tocavam fogo em suprimentos e víveres; Jerônimo organizou então patrulhas esporádicas de dez homens, que ficavam de encolha na margem esperando chegar alguma embarcação suspeita; por causa disso, vários ataques já tinham sido contidos sem ameaça para as colunas de suprimento; mas Humaitá continuava intransponível, pois a frota aliada, por não ter conhecimento sobre a calha do rio, receava perder os navios ao dar apoio mais próximo à tropa; além da fortaleza, várias chatas artilhadas, ancoradas na margem do rio, fora da vista dos vigias navais, cobravam um alto preço às embarcações que tentavam sondar a profundidade daquelas águas.



Entre uma patrulha e outra, Jerônimo e os demais aproveitavam para relaxar, beber e fumar, além de ouvir modas dolentes daqueles que sabiam dedilhar o violão ou a viola; sentado no chão, ele bebia o mate, costume que aprendera com os soldados argentinos que uma vez se aquartelaram no local; apreciara o gosto amargo e a temperatura, e desde então o mate era parte do dia-a-dia.


De manhã cedo, ele juntava um grupo e ia esquadrinhar as margens do rio e os esteiros das proximidades; ficavam de olho em chatas armadas e canoas com incursores. Um brilho na margem chamou a atenção; aproximando-se com cuidado, divisou um sargento paraguaio, chiripá listrado e túnica vermelha, se aprumando com mais cinco soldados no barranco, carregando as armas e preparando archotes; tirou do coldre o Colt e o engatilhou devagar, procurando não fazer muito barulho; fez um sinal aos homens para que engatilhassem os rifles e ficassem preparados; um tiro porém, quebra o silêncio e começa um tiroteio que pega os paraguaios de surpresa; o sargento, varado abaixo do olho direito, caiu sem nem sacar a pistola. Os outros tentaram correr, mas foram pegos no fogo cruzado. Jerônimo, passado o calor da refrega, viu Jonas numa arvore logo atrás dele, já querendo chamar o homem de covarde, quando viu um paraguaio caído, ainda com o machete na mão; olhou para cima e agradeceu ao ordenança que, com certeza, salvara sua vida.



Os dias restantes foram de recrudescimento de atividade, com ataques e contra-ataques furtivos, sem real engajamento de tropa; escaramuças eram frequentes e nelas perdiam-se soldados de ambos os lados; numa delas morrera o argentino que tanto divertia a tropa com seu violão, baleado na cabeça por um riflero paraguaio; em outra, Jerônimo fora ferido por um golpe de machete que não foi fatal porque o sabre aparara um tanto a força do ataque, mas não o suficiente; Ainda assim , seus olhos não desgrudavam dos de Jonas, ainda no escopo de leva-lo de volta vivo.

Então, depois de um longo cerco, a poderosa Humaitá foi tomada, mas Solano Lopez fugira, com seus oficiais mais graduados e a mulher, Elisa Lynch, deixando a guarnição sem pólvora nem suprimentos; Jerônimo e Jonas foram os primeiros a adentrar a fortaleza, virando e revirando tudo em busca de armadilhas ou de algum retardatário que fosse causar encrenca. Depois de assegurar-se de que não havia nenhum perigo, o resto da tropa, comandada pelo Marechal Luis Alves de Lima e Silva, Marquês de Caxias, adentrou no recinto do forte. Assunção agora, estava sem defesa.

Luiza estava sentada quando o estafeta trouxe os jornais, que estampavam a notícia da vitória em Humaitá; “não deve demorar mais”, murmurou enquanto o pai lia as novas; não se falava em outra coisa na cidade, todos esperançosos de que a guerra terminasse logo e os pais, filhos, noivos, namorados e maridos voltassem. Como sempre fazia, tomou o terço e rezou pela proteção do homem que amava...

Mesmo com Humaitá tomada, o trabalho de limpeza ainda continuaria; ainda existiam bandos de soldados desgarrados, prontos para incursões furtivas; com o fim da ameaça das chatas artilhadas, os barcos de sondagem puderam prospectar a calha do rio e os navios da frota puderam seguir adiante; dando apoio mais cerrado à tropa que avançava.  Jerônimo, promovido a primeiro-tenente, comandava uma tropa de infantaria montada cuja missão era bater as imediações da barra do Timbó, numa das curvas do Rio Paraguai, em busca de possíveis bolsões de resistência; grupos de soldados paraguaios tentavam atrasar o avanço das tropas aliadas, fazendo emboscadas e incendiando plantações para fazer parar a tropa. Jerônimo via os fogos nos campos e a destruição ao redor com pesar; mesmo sabendo que poderia ser morto se se descuidasse, não deixava de ter pena dos camponeses, que perdiam as colheitas que lutaram com esforço para cultivar.

Sentiu como se fosse uma ferroada, uma queimadura atravessando o lado; não ouvira o tiro; levou a mão e viu o sangue aos borbotões, as forças faltando; Jonas, cavalgando logo atrás, o viu cair e correu na direção dele; caiu na relva de costas, a mão no lado, tentando conter o sangue; Jonas arrancou o lenço que trazia no pescoço e tentou fazer uma bandagem, mas foi atingido no ombro, a bala arrebentando a clavícula e fazendo-o igualmente cair...

Luiza sentiu a dor da picada da agulha como se fosse uma punhalada; jamais errara um ponto de bordado, desde quando a mãe a ensinara; viu o sangue escorrer na ponta do dedo e pingar sobre a toalha e o bastidor; correu para o quarto, lavou o ferimento, sentou na cama e tentou conter o medo daquele momento; para ela, só podia ser o presságio de algo muito, muito ruim...

Acordou ainda no campo, vendo os paraguaios despirem os mortos e  matarem os feridos; procurou Jonas , caído ao lado dele, e o sacudiu, tentando despertá-lo; tomou o pulso e viu que ainda estava vivo; tocou o lado e viu a bandagem improvisada que ajudara a estancar o sangue; estava fraco,, mas tentaria se defender; a  emboscada fora bem feita, com os paraguaios usando o mato alto para escondê-los; viu um dos soldados se aproximar enquanto os outros, findo o saque , se afastaram; fingindo-se de morto, esperou que ele chegasse perto e, quando o soldado ia virá-lo pra ver o que conseguia saquear, recebeu um golpe de baioneta que varou o peito, matando-o no ato. Usando as forças que ainda restavam arrastou-se, junto com Jonas, por entre os outros cadáveres, escondendo-se de uma possível nova emboscada.

Agora erravam pelo campo, vendo se avistavam alguma unidade aliada nas proximidades; eram as primeiras escaramuças da batalha do arroio do Avaí, a última tentativa do exército de Solano Lopez de deter os aliados; Jerônimo ouviu os canhonaços à distância enquanto amparava Jonas; encostaram-se numa árvore próxima e esperaram o desfecho da batalha...

A patrulha de cavalaria os achou enquanto procurava piquetes dispersos do inimigo, escondidos no campo; Jerônimo reconheceu as flâmulas nas lanças; eram cavalarianos gaúchos, ponta de lança da tropa do general Osório; o chefe do piquete, um sargento de barba cinzenta, reconheceu Jerônimo apesar do uniforme surrado.
- Bom ver o senhor, tenente Moura. O resto da tropa da montada o dava como morto há dois dias.
-Dois dias?
- Sim, meu tenente. – continuou o cavalariano aos arrancos – Estamos quase em Assunção; o danado do Solano Lopez fugiu de novo. Demos a eles uma surra de exemplo, mas o velho General Osório foi ferido, o cachaço arrebentado a bala.


Jerônimo imaginou como deveria ter sido; Osório era conhecido por não se furtar aos perigos da batalha, tendo sido várias vezes ferido, mas dessa vez parecia ser sério, o que tiraria um dos bons comandantes fora de combate por muito tempo. Ele e Jonas pegaram garupa com o piquete e foram conduzidos ao hospital de sangue do acampamento avançado.

Foram dias entre delírio e agonia, o ferimento ameaçando supurar e matá-lo; segurou firme a medalha do Menino Jesus de Praga que ela lhe dera; queria viver para ela; não pôde dizer o que sentia, a não ser naquele beijo há muito roubado; não sabia o que iria acontecer, mas aguentou firme e segurou-se à vida...

A luz do castiçal invadiu o quarto no momento em que ela já se entregava ao sono; a mãe chegara pé ante pé, achando que ia apenas velar o sono da filha, mas a encontrou sentada na cama, o terço na mão direita, num aperto firme.
- É por aquele moço de Jacareí, não é, Luiza? – perguntou receosa a mãe – coração de mãe não se engana, eu sei.
- É sim, mãe; não posso negar isso da senhora, eu o tenho no coração e na alma e nós quase nem sequer nos falamos, exceto por um momento tão especial...
A mãe levou a mão à boca, numa expressão de espanto e desaprovação, mas a filha acalmou-a.
- Não ocorreu nada do que a senhora está pensando, mãe – disse num sorriso – embora não vou negar que poderia acontecer – apenas tivemos um beijo num impulso, nada mais.
A mãe deu um suspiro de alívio. Sabia que a filha era de personalidade forte e lutava pelo que queria; ficava mesmo assim sempre alerta, com medo de algum “mau passo”.
- Melhor, minha filha, não quero nunca que desgoste seu pai.
- E eu jamais o faria , minha mãe; amo-o demais para fazer para ele essa desfeita; mas não vou mentir quando digo que me senti levada a me entregar se assim acontecesse, porque eu amo Jerônimo, minha mãe.
- Vejo isso nos seus olhos à simples palavra do sentimento, minha filha. Sei bem do amor como falas; estás apaixonada e vais lutar por esse amor.
Dito isso, beijou a filha e deixou-a dormir.

A febre cedera.
A primeira visão que teve foi a da azáfama constante de médicos e enfermeiros indo e vindo, a pilha de membros amputados a dez passos da sua cama, atendentes trazendo clorofórmio e instrumentos cirúrgicos que tilintavam a cada passo.
- Ora, o senhor acordou; muitas novas para contar, tenente – sorriu Jonas – muitas novas.
O sargento contou as novidades: Caxias não estava mais no comando do exército aliado, agora majoritariamente brasileiro; o comando passara ao genro do Imperador, o conde D’Eu, marido da filha mais velha do monarca, a princesa Isabel; Solano Lopez fora derrotado mais uma vez em duas batalhas sucessivas, em Peribebuí e Campo Grande, mas escapara antes do cerco se fechar; Assunção já estava ao alcance das mãos, mas uma quantidade ainda significativa de tropas resistia no arroio Aquidaban, mas era questão de tempo.
- Onde estão os outros, Jonas? - Perguntou do resto da tropa.
- Quem bala não levou, o cólera pegou, tenente, só restaram o senhor, eu e o cabo Moreira, que perdeu o pé direito.
Tentou se levantar, mas a dor nas costelas era muito forte; o sargento Jonas apoiou-o e ele se recostou na cama; pegou um pequeno espelho numa mesa de cabeceira e mirou-se; o cabelo crescera até os ombros e uma basta barba castanha estava onde antes existia um rosto limpo; não se incomodou com isso, poderia cortar o cabelo e barbear-se mais tarde. Pensou em tudo o que vivera até então, desde o dia em que decidira se alistar até aquele momento no hospital de sangue; de repente percebeu que o sargento o encarava pensativo.
- Tenente, me diga uma coisa, com toda sinceridade que o senhor puder; por que veio lutar, se eu assinei um contrato para substituir o senhor?
Jerônimo respirou fundo, sentindo a dor do ferimento nas costelas; sabia que um dia esse momento chegaria, de uma forma ou de outra.
- No meu pensamento, não achei justo que viesses deixando família para trás como disseste; achei que vindo e procurando servir aqui justificaria minha aparente covardia.
- Então tenente, tenho uma coisa a confessar ao senhor, mas imploro que não me censure, por favor, tive de fazer isso para ajudar alguém com quem me importo muito.
- Então fale; o que quer que seja não o censurarei, nunca podemos saber o que o desespero leva alguém a fazer.
O sargento, calmamente, contou que, na verdade, a pessoa em dificuldades não era a esposa – ele não era casado – mas a irmã, que havia dado um “mau passo” e por isso tinha tido uma filha com um homem que, ele descobriu depois, era casado e não poderia nem mesmo reconhecer a criança; assim, criou a história de que era casado e o sogro morrera com dívidas para sensibilizar o representante do Barão, a fim de que pudesse receber o dinheiro que, pelo menos por algum tempo, ajudaria a irmã.
Jerônimo ficou encarando Jonas com uma expressão de surpresa. Então ele entrara naquela desventura toda por uma história que, no fim das contas, não era real? Quis enraivecer, esbravejar, mas a rudeza da guerra ensinou a ele a entender de forma muito mais madura as coisas que o rodeavam; o idealista havia morrido; restava o homem prático, mas não despido de sentimentos; refletiu sobre a atitude do sargento e viu que, no fim de tudo, faria a mesma coisa se tivesse a chance.
- Pelo menos nós sobrevivemos, não é, sargento?
- A gente pode dizer que teve sorte, tenente, muita sorte.

Em Jacareí, Manuel Fogaça não tocava no nome do filho; mesmo que estivesse vivo, para ele estava morto; como ele ousou desobedecer ao pai e ainda deixá-lo em posição delicada com o Barão de Santa Branca, que tinha arrumado tudo para que ele escapasse dessa esparrela da guerra? Por mais que o Barão tivesse relevado tal atitude, ainda assim ele se sentia envergonhado, não sabendo o que fazer; a mãe, sabedora do temperamento do marido, não tocava no assunto, mas sempre tinha o terço na mão, rezando sempre pelo retorno do filho e que Deus abrandasse o coração do pai.

Em Vassouras, Luiza e a mãe dividiam a angústia de notícias de Jerônimo; rezavam às vezes juntas, mas sempre disfarçando sua preocupação do pai, pois ele mesmo manifestara seu desprazer quando Jerônimo resolvera se alistar; não se comentava o assunto com receio de irritá-lo.

Jerônimo, apoiado em muletas, já dava alguns passos ao redor da cama, sempre ajudado por Jonas, ainda com o braço na tipoia; pensava cada vez mais em Luiza e ansiava o momento em que pudesse revê-la; parecia que o tempo não passava, que os dias pareciam não correr; numa tarde, porém, um grupo de cavalarianos chegou ruidoso na frente do hospital, disparando para o ar, com expressões de alegria.
- A guerra acabou! Solano Lopez morreu! – gritavam sem parar
Jonas trouxe a notícia para ele assim que soube; depois do combate de Aquidaban, Solano Lopez, com um punhado de soldados ainda fiéis, foi cercado nas proximidades do Cerro Corá; seus homens foram mortos ou desertaram e ficaram apenas ele, seu filho Panchito, sua mulher Elisa Lynch e alguns membros de sua guarda pessoal;  em menor número e intimado a render-se, recusou a oferta e arremeteu com os homens que lhe restavam, dizendo “Muero con mi pátria”, até que foi baleado e lanceado, morrendo nas margens do arroio; o filho foi igualmente baleado e morto, sobrando apenas a mulher, que foi escoltada até a tenda do Conde D’Eu, não antes que os sodados cortassem um dedo e uma orelha do ditador. Jerônimo, pela primeira vez, respirara aliviado. Era o fim.


Ficou em dúvida se o pai o receberia; os cabelos e barba longos escondiam-lhe o rosto, o uniforme surrado dava um aspecto de abandono; conservara o sabre e o revólver, enrolados na manta que carregava enrolada em diagonal no ombro direito; a dor do ferimento ainda latejava um pouco, mas bem menos; despedira-se de Jonas ainda em Mato Grosso, pois ele soube que a irmã se mudara para o interior da província do Rio de Janeiro, pois tinha comprado uma casa melhor e se estabelecera lá com o filho; era uma vida nova e eles, mais do que nunca, a mereciam
- Vá com Deus, Jonas; acabaram-se postos, patentes e graus; agora, somos amigos. Aproveite essa nova vida com sua irmã. Fique bem e prospere.
- O senhor vá com Ele também. Que Ele abrande o coração de seu pai e de sua família.
Um abraço selou a despedida e cada um seguiu seu caminho.
Chegou em Jacareí pela noite, no carroção de um agricultor; fizera uma longa viagem desde Dourados até a província de São Paulo, o uniforme surrado ora despertando compaixão, ora desconfiança; o fluxo de soldados que retornavam da guerra era grande, muitas vezes dando origem a confusão e dificuldades. Quando chegou, a luz dos lampiões a gás e da lua davam um colorido diferente à cidade; passou pelo palacete do Barão de Jacareí, onde uma janela ainda emitia uma luz bruxuleante, em direção à Praça Anchieta, onde apenas os lampiões iluminavam a paisagem; vencido pelo cansaço, sentou num dos bancos da praça, onde, sem hesitar, dormiu.



A sineta da carroça de leite o acordou antes do sol nascer; apanhou suas coisas no banco da praça e acompanhou a carroça até sua casa; a primeira pessoa que viu foi Donana Mourão, uma viúva vizinha do seu pai, que sempre levantava cedo para receber pessoalmente o leiteiro; depois viu a porta de sua casa abrir e dela saiu a forra Cecília, empregada de sua mãe, esperando para pegar igualmente o leite para o desjejum; lembrou das vezes que a mãe lhe servia na infância e sentiu falta desse apego. Cecília divisou a figura andrajosa vindo na direção dela e entrou correndo, esquecendo de pegar o galão de leite; minutos depois ele viu a mãe sair à rua, vir até ele, segurando seus braços num olhar de súplica
- Meu filho, me diga por favor, tens notícia um moço chamado Jerônimo Fogaça? É meu filho, servindo no 11º. de Voluntários; o senhor o viu? Por favor, responda a uma mãe aflita!!!
Ele não conteve as lágrimas.
- Eu mudei tanto assim que não se lembra mais, minha mãe?
Só então que ela reparou nos olhos do filho; não eram mais os olhos joviais com os quais saíra, mas olhos endurecidos pelo infortúnio da guerra; só Deus para saber se sua alma estaria ferida junto com o corpo.
- Meu filho, meu filho!!!! – Dizia ela enquanto o apertava em um longo abraço, como a querer não mais se apartar.
- Onde está meu pai? – Perguntou ansioso, imaginando o confronto que viria
- Seu pai está resolvendo um caso em Santa Branca, só chega amanhã de manhã. Venha, por favor, venha e tire esse peso da viagem e da guerra.
O banho pareceu tirar todo o fardo que carregara nas costas esses anos todos; enxugou-se e olhou no espelho; o ferimento do machete e do tiro nas costelas ainda tinham cicatrizes bem visíveis, marcas lívidas que, ele sabia, não iriam abandoná-lo jamais; decidiu não tirar a barba, mas deixou que Cecília lhe cortasse o cabelo, deixando-o um pouco acima dos ombros; emagrecera a ponto de suas roupas ficarem folgadas, o que o fez gracejar um pouco; o uniforme e os andrajos com os quais chegara foram queimados por Cecília no quintal por ordem sua; a guerra ficaria apenas na lembrança, exceto pelo Colt e pelo sabre, que mantivera consigo; depois de tomar o desjejum e vestir-se, pegou papel, tinteiro e pena e começou a escrever para  Luiza...


A carta chegou quando Luiza chegava da missa matinal a qual ela sempre comparecia com a sua mãe; embora fosse em seu íntimo uma livre-pensadora, ela acedia sempre aos convites da mãe, pois era o tempo que tinham para conversar longe das vistas do pai; Izolina entregou a ela o envelope; que ela guardou para ler quando fosse dormir; a mãe trocou com ela um olhar cúmplice ao ver os olhos da filha brilharem...
No quarto, ela abriu o envelope com pressa, vendo que o carimbo não era mais da circunscrição militar, mas da província de São Paulo, o que queria dizer que ele já tinha voltado; pousou os olhos no papel e leu sem a pressa com a qual abrira o envelope; a carta falava das coisas vividas por ele no Paraguai, desde o princípio até o momento em que fora ferido, e de como a imagem dela foi a única guarida dele todo esse tempo; pedia perdão pelo beijo roubado e pelo impulso infantil, dizendo que “uma pessoa diferente votara da guerra, e que o coração dele seria dela, se assim ela quisesse”. Essa última frase a fez arfar, apertando a carta contra o peito; mas a conclusão a fez bambear, quando ele disse que viria visita-la, assim que pudesse...

O pai chegara pelo fim da tarde, contrariando a previsão dada pela esposa, mas, tendo resolvido a contento o caso em Santa Branca, iria descansar para retomar o trabalho no dia seguinte; pendurou a sobrecasaca e o chapéu no mancebo e só depois percebeu o jovem de cabelos castanhos e barba a esperá-lo na sala; percebeu o olhar firme, como se instilasse uma calma coragem, presente naqueles que souberam ultrapassar com galhardia a adversidade.
- Boa tarde meu jovem, não sei se tinha algum compromisso com o senhor, mas espero que minha esposa o tenha recebido bem
Manuel Fogaça olhou novamente para o homem, percebendo algo de familiar, algo de conhecido no ar daquele que o fitava. Esforçou-se para lembrar, mas não conseguia saber de onde vinha aquela sensação de familiaridade.
- Posso saber o que o traz a minha casa, senhor...?
Jerônimo levantou-se e foi na direção do pai; só então que Manuel Fogaça reconheceu o jeito de andar, de passo firme e resoluto, que era o que mais se lembrava do filho; controlou o espanto, limitando-se a manter a expressão impassível. Viu a mão que o filho estendia, sem saber o que fazer; Lidia, a mãe, observava de longe.
- Será que o seu orgulho será maior que o seu amor, a ponto de negar o perdão ao seu filho, meu pai?
Manuel Fogaça continuou impassível; dentro dele, a alegria de reencontrar o filho lutava com o brio da autoridade desobedecida; queria derramar toda a raiva e a vergonha que sentia ao ver seu esforço jogado abaixo, quando ele havia ignorado o contrato e se alistado; mas se sentia alegre porque o filho retornara vivo da guerra; deixou, então que a alegria vencesse, e, recusando a mão que o filho estendera, em vez disso, abraçou-o demoradamente.
- Não há mais nada a ser dito, meu filho – disse o pai – voltaste, e sei que voltaste um homem. Vi no seu olhar. Um olhar duro, de quem viu o pior da vida.
- Sim, meu pai, eu vi; não sou o mesmo que saiu daqui, em muitas coisas.
-Conversaremos sobre isso, meu filho; mas antes precisas fazer uma coisa que me aliviará muito. Visite o Barão; converse com ele e fale do que você viveu; ele saberá escutá-lo.
-Sei muito bem da situação difícil que o senhor ficou com ele, meu pai. Não se preocupe, eu conversarei com ele.
Abraçaram-se mais uma vez e caminharam juntos até a sala de jantar; Lidia, observando da cozinha, não cabia em si de felicidade.

O Barão de Santa Branca o recebeu no começo da noite, pois de dia ficava feitorando as fazendas, sendo difícil encontra-lo nessa hora. Jerônimo entregou o chapéu e a bengala ao criado e esperou na sala de música; não demorou muito e o Barão apareceu, usando uma sobrecasaca cinza e calças pretas. Convidou Jerônimo a sentar-se e observou o porte diferente; não era mais o jovem que jantara naquela mesma casa anos antes; agora era um homem que o encarava, olhar sério e decidido.
- Com que então está vivo, meu rapaz; mas a que devo a honra da visita?
- Bem, Senhor Barão, minha visita diz respeito à dívida que eu e meu pai temos com o senhor; sabemos que eu não honrei o contrato de substituição e isso eu estou preparado para reparar o fato, dentro de minhas possibilidades.
- Ora essa, meu rapaz! Eu disse a seu pai que isso era um favor de amigos e que eu não queria mais saber de tal coisa! Seu pai é um homem de brios e honra e o respeito por isso; não é tal coisa que fará nossa amizade de anos se desfazer! Diga a seu pai que não se apoquente que o assunto está morto e enterrado e diga a ele que esqueça disso, entendeu?
- Entendi, sim, Barão, eu falarei a ele.
- Me faria muito feliz se ficasse para o jantar, meu jovem; posso pedir que ponham mais um prato à mesa? Quero que me conte das coisas da guerra, se não se opuser, é claro.
- Nem um pouco Barão; sinto-me honrado.

Depois do jantar, voltou para casa e conversou com os pais, relatando a conversa que teve com o Barão; depois, foi para o quarto e arrumou algumas mudas de roupa em uma mala, pois ainda tinha uma coisa muito importante para fazer.
Ia para Vassouras, ver Luiza
Já havia avisado que iria, para que ela tivesse tempo de preparar pai e mãe para tal chegada; o pai foi o mais difícil de dobrar, pois ainda se recordava da atitude de desobediência que o fez ir à guerra; mas, ao saber que pai e filho tinham se acertado, concordou em recebe-lo.
Ele chegou de manhã cedo, procurou uma hospedaria para ficar e, logo que pôde, dirigiu-se à casa do Comendador Andrade; chegou às onze, sendo recebido por Izolina, que o encaminhou ao vestíbulo, onde o Comendador o esperava.
- Seja bem-vindo, Jerônimo; agradeça a Luzia por eu ser receptivo; na verdade eu queria muito lhe passar uma compostura, mas como soube que seu pai e você resolveram suas diferenças, achei por bem encerrar o assunto; de qualquer maneira, a guerra já terminou e a vida voltou ao normal, ao menos para algumas pessoas.

Luzia e a mãe, logo atrás do Comendador, sorriram; Jerônimo acompanhou-os até a sala de estar, onde foram servidos refrescos de pitanga e laranja; conversaram sobre amenidades, a guerra sendo posta de lado, mas o pai da moça não pôde deixar de discutir os problemas recorrentes do retorno dos veteranos
- Seu pai, meu colega, deve enfrentar os mesmos problemas que eu aqui, imagino – falou com ar sério – muitas viúvas e órfãos para amparar e resolver problemas. As senhoras, incluindo minha esposa, montaram uma comissão para tentar ajudar as famílias dos que ficaram despojados. Ocorre o mesmo em sua cidade?
- Da mesma forma, Comendador, da mesma forma; meu pai está se desdobrando muito para dar cobro de tudo.
- E qual será seu passo a partir de agora, meu rapaz, depois dessa guerra?
- É minha intenção voltar às Arcadas e concluir meus estudos, mas ainda não sei o que escolherei dentro da carreira jurídica. Penso talvez a Procuradoria Imperial
- Faça bem sua escolha, meu rapaz; abrace-a como se fosse um sacerdócio e se dedique de corpo e alma; só assim terá sucesso; e fique longe da política; ali só existem mandriões e mentirosos.
Dentro de si, Jerônimo exultava. As palavras do Comendador pareciam se perder ao vento; só tinha olhos para ela, para o rosto suave, os olhos expressivos, cabelos castanhos como os dele; cada movimento era um encanto.
A voz de Izolina avisando que o almoço estava servido trouxe-o de volta a realidade; sentou-se ao lado de Luiza, enquanto a refeição era servida; frangos de leite com molho de laranja, acompanhado de vinho tinto leve; comeu devagar, prestando atenção nela. O sorriso a fazia ainda mais encantadora.
- Bom, mas o senhor não veio aqui apenas falar dos seus planos como futuro advogado, não é mesmo? -  O comendador perguntou com leve ironia – poderemos tratar disso depois de um licor no estúdio, não acha?
Não pôde evitar o rubor nas faces; pousou os garfos na mesa, limpou os lábios com o guardanapo e pigarreou. Luiza e a mãe cobriram os sorrisos com os guardanapos, mas foi o pai que quebrou o gelo.
- Senão, o que manteria alguém vivo e o faria ainda viajar essa distância toda se não fosse por uma boa razão? Já fui jovem como você e sei ver quando o coração guia uma pessoa; termine sua refeição meu rapaz; mais tarde conversaremos. Um brinde a vocês, jovens!
O tilintar das taças era apenas um dos sinais de alegria naquela casa.

Mais tarde, no terraço, puderam dedicar um momento a eles; havia muito a ser dito, mas eles teriam tempo para dizê-lo. Olharam-se como se nada ao redor existisse.
- Agora não precisa mais me roubar beijos, mon cher – disse num sorriso – estou aqui e eles são seus...
Então veio o beijo, mais intenso que antes; agora, não mais duvidavam do que sentiam; era como se fosse aberta uma porta onde tudo se iluminava; para ele, era como se uma represa se rompesse; durante a guerra, evitava de toda forma as “farpelas”, mulheres que acompanhavam os soldados e que eram a válvula de escape na dureza dos combates; não que fosse talhado pra ser celibatário; estava apaixonado e não queria se deixar levar pelos prazeres fáceis dos soldados, o que deixava os colegas oficiais um tanto desconfiados. Mas acabara se acostumando, deixando que o dever militar fosse mais forte, virando quase um monge-soldado.

Ela reconheceu a medalha na lapela dele, tocando-a levemente; agradeceu do fundo do coração ao Menino Jesus de Praga por tê-lo protegido e o trazido de volta; deixou-se abraçar, enlevar, como se voasse...

A conversa com o Comendador Andrade foi amigável e bem-humorada, ele dando a bênção aos dois que, a partir de agora, eram noivos; organizaram os detalhes da festa que, a pedido da filha, seria feita em Jacareí; era importante, reunir lá as famílias dela e do futuro marido; o pai assentiu, vendo a felicidade nos olhos da filha.

Ela viajou com a mãe e com ele para organizar tudo; quando soube dos planos do casamento, o Barão de Santa Branca se prontificou a organizar a festa; não adiantaram os protestos dos pais dos noivos; o Barão fincou pé e deu o assunto por encerrado.
- Considerarei como desfeita se não aceitarem – disse com firmeza – será meu presente aos noivos!
Tudo assentido, começaram os preparativos...

Jerônimo estava exultante.
A dor dos ferimentos já era uma lembrança distante; as cicatrizes ficaram, mas agora ele só via felicidade; o tempo das dificuldades, das adversidades, dores e desencontros ficara para trás; agora, era viver o resto de sua vida com a mulher pela qual se apaixonara e que queria para a vida inteira. A mãe tentava ajeitar-lhe o colete, alinhá-lo com a calça para que as juntas dos suspensórios não aparecessem, mas a inquietude e a ansiedade falavam mais alto.
- Te põe quieto, meu filho, senão acabo te machucando! Calma que tudo se ajeita, logo estarás na Igreja.
Ele bem que tentava, mas não conseguia ficar quieto; só conseguia pensar que, logo, logo, estaria casado com a mulher que amava, coroando uma espera que começara com um beijo roubado e muito, muito sofrimento e dor; ele se transformara em outra pessoa e mesmo seus pensamentos e seu olhar sobre as coisas agora eram diferentes; existiam, porém, outras transformações, que guardara para si e que dividiria somente com a mulher amada, pelo menos por enquanto...

A Baronesa, a mãe da noiva e a mucama Izolina se esmeravam com o vestido; renda e seda vindas de França, além de tafetás e tules finíssimos foram pouco a pouco transformados, pelas mãos das três mulheres, em um belíssimo vestido de noiva, que Luzia experimentava pela primeira vez; não foi nem sequer necessária uma segunda prova; o vestido assentou perfeitamente.



A festa não poderia ter sido mais bonita.

Todos estavam presentes na Matriz, naquele domingo; Manuel Fogaça e Dona Lidia, O Barão e a Baronesa, assim como colegas das Arcadas que tinham ido prestigiar a cerimônia; apenas Jonas, detido por negócios no Rio de Janeiro, não poderia comparecer a tempo, mas mesmo assim enviou um presente aos noivos; Jerônimo não se cabia de tanta ansiedade, indo de um lado para outro, a espera difícil de acalmar
- Ora filho – a mãe tentava aclamá-lo – você a esperou três anos numa guerra; pode esperá-la mais um pouco – disse num gracejo

A espera finalmente foi quebrada pela chegada da noiva, de braço dado com o pai; o vestido, de rendas sobrepostas na seda, fazia a ilusão de quase flutuar, não andar; o véu de fino tule deixava uma visão apenas translúcida do rosto, como se reservasse a visão dela apenas quando chegasse junto dele; o buquê, uma combinação de rosas brancas e flores de laranjeira, foi arrumado de forma elegante e realçava a beleza da noiva; o pai cumprimentou-o e a deixou com ele, os dois de mãos dadas de frente para o celebrante, padre Júlio; diferente de outras cerimônias , mantiveram-se de mãos dadas o tempo inteiro, até o fim, entre os cantos e a liturgia, se entreolhavam em felicidade; finalmente, ele levantou o véu e viu o rosto que o encantara tanto, que seria o encanto de toda a vida; beijou-a terna mas intensamente, como se antevisse a felicidade que viria...

A Igreja inteira irrompeu em palmas.

O trem chegou em Petrópolis no meio da tarde, com um leve vento a agitar as folhas das árvores perto da estação; Jerônimo desceu de braço dado a Luzia,, enquanto os carregadores organizavam a bagagem nas caleças, a distancia era pouc até o chalé do Barão, que ficava no alto de uma das colinas que dominavam a cidade.
Entrou com ela nos braços, as bagagens previamente arrumadas no meio da sala; levou-a ao quarto principal, onde ervas aromáticas já haviam sido colocadas e davam um toque de frescor; os empregados e o caseiro já haviam cuidado de tudo antes da chegada do casal, deixando o chalé arrumado e bonito; apesar da simplicidade da fachada, era uma casa com decoração fina e móveis muito bem acabados;




Passearam depois pelo interior da casa, se encantando com cada detalhe;  encantaram-se com a vista da serra, a atmosfera que contrastava com o ar abafado da capital; percorriam todo de mãos dadas, unidos mais do que nunca; voltaram então para o quarto, onde uma garrafa de vinho e duas taças já estavam à espera; Jeronimo serviu a primeira taça, entregando-a a Luzia, serviu uma segunda taça e , olhos nos olhos, brindaram o seu amor.
- A nós, meu amor, felizes pra sempre – disse ele num sorriso – não mais dor nem espera.
- A todos os momentos que teremos, não mais apartados – completou ela
Beijaram-se intensamente, muito mais que da primeira vez; as mãos descobriam os caminhos apaixonados que tanto tempo sonharam; ela o despiu sem pressa, ela deixou que as mãos dele a revelassem; ela tirou a camisa e sentiu as cicatrizes do passado no corpo dele, ainda visíveis como relevos na pele; ele respirou fundo, como se as lembranças voltassem. Ela respondeu com um sussurro leve
- Devagar, meu amor, teremos todo o tempo do mundo; para trás ficou a tua dor; me toma nos braços e me faz tua...
Ela desatou o último laço de seda, a camisola descendo devagar, revelando a nudez plena de paixão.
- Venha, agora são nossos os dias...
E se amaram intensamente...

ITU, SÃO PAULO, ABRIL DE 1873

O casarão estava agitado; vários representantes, tanto de cafeicultores quanto de profissionais liberais e membros da sociedade local, se acotovelavam na sala do andar de cima, onde o anfitrião, Carlos Vasconcelos de Almeida Prado, tratava de  conversar com cada um , explicando cada parte do que seria tratado ali; por mais diferentes que fossem as vertentes políticas ali reunidas, estavam sob uma causa comum; a formação de um partido republicano; estavam ali desde lideranças radicais, que queriam o justiçamento da família imperial e a libertação completa dos escravos, até os mais moderados, que apenas queriam que a transição se desse por meios pacíficos; a causa atraíra membros dos quadros políticos do Império, como o deputado Prudente de Morais, influente na região de Piracicaba,  Presidida pelo cafeicultor João Tibiriçá Piratininga, começou com discussões acaloradas, mas logo depois se revestiu de solenidade; começavam naquele momento as primeiras deliberações do movimento republicano no Brasil.


Jeronimo, de braços cruzados, acompanhava as deliberações com vivo interesse; a guerra tinha transformado completamente suas convicções; o contato com oficiais argentinos e uruguaios tinha aberto os seus olhos para a natureza do regime republicano e sua ênfase na democracia plena e no sufrágio como forma de escolha dos governantes; vira mesmo as caixas de votação serem trazidas até onde estavam os soldados, para que eles pudessem votar; a simples visão disso o transformou para sempre; dividira suas opiniões com a esposa, ela simplesmente dizendo que ele deveria seguir o coração onde ele apontasse. E ele apontava pra onde estava agora. Tinha sido chamado por Jonas, que, dono de uma casa comercial em Valença, no interior da província fluminense, tinha prosperado e falara a Jeronimo sobre a convenção; o convite foi prontamente aceito e , ao reencontrar o amigo, puseram as conversas em dia
- Com que então prosperaste, meu caro Jonas; isso é muito bom! E estás muito bem pelo que vejo – comentou ao ver o ar jovial do amigo
- Sim, e tenho de agradecer a você que nunca desistiu de viver e isso me ajudou.
- Ajudamos um ao outro, Jonas , e tivemos sorte, mas o que temos nesse momento é algo que , no tempo certo, vai sacudir nosso país, acredite.
- Não estaria aqui se não acreditasse, caro amigo.
Abraçaram-se e retornaram para o salão, onde ainda corriam os debates...

CEMITÉRIO DO ARAÇÁ, MAIO DE 2014

O mapa não ajudava muito.
Tinham escolhido o sábado porque não era dia de muito movimento; tinha tirado uma abonada e queria aproveitar muito o dia, pois sabia que não teria mais tempo na semana seguinte;
- Vamos escolher os corredores mais adentro, Leonor, são os mais antigos, possivelmente do século XIX
- Vamos então, Thomé, quem sabe achamos.
Percorreram então o corredor lateral, que dava por muro leste; esquadrinharam as inscrições, deram voltas e nada, até que encontraram um senhor calvo, arrumando um ramalhete em um dos túmulos; o macacão surrado dava a ele um ar de ser tão velho quanto os túmulos ao redor.
- O senhor pode nos ajudar?
- Claro que sim, o que procuram?
- Um túmulo de um antepassado dela, Jeronimo Fogaça.
Ah! É fácil de onde estamos; é só seguir em frente, virar a primeira à direita e seguir em frente até o fim da quadra, é o primeiro à esquerda.
- Muito obrigado senhor – disse, tomando a direção indicada pelo homem.

Quando chegaram, a respiração dela parou.

Lá estava ele. 

Era um túmulo duplo; o relevo mostrava um homem e uma mulher deitados lado a lado, de mãos dadas, em trajes de época. Acima deles uma placa onde se lia ; “JERONIMO FOGAÇA – 1845- 1912 e LUZIA ANDRADE FOGAÇA – 1847-1913”, abaixo outra placa, onde se lia um poema “TANTO VIVEMOS TANTO AMAMOS; QUE O AMOR NOS GUIE NA ETERNIDADE”
Leonor e Thomé fitaram longamente as figuras do túmulo, sem dizer palavra; sentiram a essência do amor de tanto tempo, que parecia ser uma energia ainda presente...Olharam uma vez mais e se foram, não antes de deixar uma corbeille de rosas brancas...

JACAREÍ, JULHO DE 2014
  
André o deixara na porta do cartório, antes de tentar estacionar o carro; encontrou-a na porta já esperando, junto com a grande amiga Mara Lucia, que amara ser testemunha e madrinha daquele acontecimento; Leonor esperava ansiosa, o vestido ocre e a echarpe de cores vivas combinados em tom elegante; ele chegara de túnica branca e calça creme, e ainda lidava com as mangas quando finalmente o enteado chegou; subiram todos juntos...

A cerimônia foi simples mas significativa; após assinarem a declaração, Mara tirou uma pequena caixa de metal trabalhado, onde estavam as alianças; após a assinatura da certidão; cada um colocou a aliança no dedo do outro, sob os olhares felizes de Mara Lucia e André;

Na Praça da Matriz, tiraram fotos e passearam ao redor; lembraram-se dos votos feitos na mesma igreja pouco tempo antes, depois de terem retornado da descoberta no Araçá; olhavam-se felizes, embevecidos, lembrando quando ele dissera, do mais fundo do coração, “não sei mais ficar longe de você”. “Não fique”, foi a resposta dela, que marcava o toque final de uma história de amor que começara bem antes...


Percorreram o olhar pela praça, tentando imaginar como ela seria nos tempos da história do antepassado dela; imaginaram como seria o sobrado do Barão, as festas, a descoberta do amor de Jerônimo e Luzia; pareceu que o tempo se misturara e podiam ver como se os acontecimentos passassem na frente deles...
Subitamente, sentiu uma presença, como se fossem observados por alguém que só ela podia intuir; de repente, pareceu ver um homem e uma mulher, de braços dados a observar de longe e se desvanecerem...
Abraçou e beijou o marido; caminharam lentamente, junto com Mara Lucia, até o carro; na praça, um pôr-de-sol dava um brilho diferente à cidade...