domingo, 24 de maio de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - PARTE I


A cerimônia de inauguração havia sido um sucesso.

Os lofts tiveram uma grande aceitação e estavam sendo muito aceitos como um novo conceito de revitalização do Centro; impressionaram mesmo o pessoal da Secretaria de Patrimônio, acostumado a torcer o nariz diante de inciativas que não partiam de lá.


Entre um sorriso e outro e boas rodadas de champanhe, ela colhia o fruto daquele sucesso; dessa vez, deixou a atitude reservada que sempre tinha nessas horas e juntou-se à equipe; gracejou, tomou algumas taças a mais; percebendo, porém que isso iria deixá-la incapaz de dirigir, deixou o carro na garagem do prédio recém-inaugurado e foi para casa de táxi.

Ao chegar, o mesmo ritual de chegar com os sapatos na mão, parte das roupas jogadas no sofá e o resto na cadeira perto da cama; tirou o resto da roupa e meteu-se no chuveiro, deixando a água não tão quente, para reanimá-la e a recolocar no esquadro. Como era sexta, não armou o despertador para acordá-la à seis e meia, como de costume; queria esticar o sono, acordar mais tarde; não tinha nada para fazer no dia seguinte, mas uma inquietude a açodava; mesmo assim, forçou-se ao sono.

Não cumpriu a promessa; exatamente às seis horas já estava sentada na cama, mas não tinha a sensação de noite mal dormida que antevira; acordara disposta, como se algo a espicaçasse para fora da cama.

Ainda de pijama, foi até a sala e deparou com o recanto de seu pai, ainda do jeito que ele o deixara da última vez; tentara conciliar os interesses dele com os dela, mas simplesmente o projeto consumira seu tempo e não dera muita atenção àquela miscelânea de objetos e documentos dentro daquele baú; lembrou-se da carta do pai, pedindo que se desse o devido tratamento para aquela coleção de coisas que, se para ela eram apenas objetos aleatórios, para ele eram a razão de uma vida.


O celular quebrou o silêncio do início da manhã, quando ela levava a xícara de café à boca; interrompeu o primeiro gole e atendeu.
- Bom dia Eliza, desculpe te ligar tão cedo, aqui é Emília, sua velha amiga de curso; desculpe, vi seu nome no noticiário e não resisti em entrar em contato; um de seus funcionários me deu seu celular;
- Sem problemas, Emília – disse em um tom que tentava disfarçar a contrariedade – Sempre bom que os amigos liguem de vez em quando; no que eu posso te ajudar?
- Bom, meu chefe igualmente viu o seu trabalho mais recente e ele tem grande interesse nele; na verdade ele gostaria e te contratar para um projeto aqui em Belém do Pará, nos mesmos moldes do que fizeste aí no Rio
- Teria de ver as condições e o contrato para dar uma resposta, Emília; podes me ligar em mais ou menos dois dias?
- Sem problema, eu ligarei; mas pense com carinho na proposta.

Desligou o celular ao mesmo tempo em que o atirava no sofá e voltava para cama, rememorando a voz da pessoa que telefonara; só depois ligou o nome à figura; tinham sido colegas na faculdade de arquitetura, mas a tal largara o curso dois semestres antes de se formar pra se casar com um jovem político em ascensão, cuja família era amiga da dela; lembrou do convite enviado, entregue pelo pai quando ela estava de viagem marcada para Amsterdam, onde iria participar de uma comissão de arquitetos; nem se dignou a responder, apressada que estava para tomar o voo; viu depois a cobertura pelo jornal, a prodigalidade da festa , que muitos murmuraram que tinha vindo de “presentes” dados por empresas em troca de favores; nada , porém, foi provado. Ainda assim, tinha uma pulga atrás da orelha...

Não conseguira dormir novamente e o domingo foi de mais inquietação; arrumou a sala, mexeu em algumas coisas do recanto do pai e foi então que notou o envelope deixado na estante da última vez que mexera nas coisas dele, após o encontro com Lisandro. Pegou-o e começou a esvaziá-lo; num estalo de intuição, verificou o testamento do pai, até que viu a cláusula que despertara a intuição; nela, ele deixava uma quantia em dinheiro para uma mulher chamada Albertina Ribeira, residente em Belém do Pará; a quantia, já separada do montante financeiro dele, teria de ser transferida pelo herdeiro, no caso, ela...

A ex-colega ligou no fim da tarde.

A conversa girou em torno dos objetivos do projeto, que era quase do mesmo tipo do que o escritório concebera no Rio, mas era apenas uma parte de algo mais ambicioso, a revitalização da Cidade Velha, que era o grande centro comercial nos tempos áureos da borracha; a intenção era usar os prédios como sedes de escritórios, prédios de apartamentos – aí ficava a parte dela – e opções de turismo. Ela pediu uma prévia da parte que caberia ao escritório no projeto, para que desse um aval de viabilidade e só assim aceitaria; em minutos, ela recebeu um plano detalhado, com todas as etapas do projeto e alguns croquis; a ideia a atraiu, mas ela queria examinar mais. A colega fez a oferta final.

- Olha, você pode ver a coisa mais de perto, examinar sem compromisso e aí dizer se aceita ou não; não é uma boa proposta?

Ela finalmente aceitou; iria mais uma vez tentar conciliar as coisas que seu pai lhe pedira e as obrigações profissionais dela; mas algo mais a impulsionava; algo que, dentro dela, dizia que deveria ir mais fundo naquele mistério deixado pelo pai...

A lufada de calor a atingiu logo que desceu a escada do avião no aeroporto de Val de Cans; o calor e a umidade eram muito grandes, fazendo-a enrolar as mangas da blusa ao passar do avião para o túnel de desembarque; vislumbrou das vidraças do corredor a paisagem do aeroporto, distante do centro da cidade; o céu estava nublado, mas não havia vento e o calor aumentava em ondas, fazendo-a transpirar.

O ar condicionado foi um alivio, ao sair da área de desembarque e entrar no saguão do aeroporto, já com a bagagem liberada; viu a placa com seu nome logo antes da saída, segurada por um homem de camisa branca e calças jeans, com o emblema da construtora que a contratara; acenou e ele prontamente tomou conta da bagagem, conduzindo-a para o veículo que a esperava do lado de fora; entrou, recostou-se no banco e observou mais uma vez a paisagem que se descortinava, uma paisagem de espaços ainda não ocupados entre o aeroporto e a cidade.

O centro de Belém a impressionou; a mistura entre os velhos palacetes e prédios modernos era bem evidente, com o avanço cada vez maior dos segundos; a cidade estava com o transito caótico, devido ao constante fluxo das obras de revitalização; imaginou como seria na época áurea da borracha, quando apenas os grandes palacetes dominavam a cidade; seus pensamentos foram de súbito interrompidos pelo barulho da chuva, que caía torrencialmente.



Chegaram ao prédio ainda com a chuva caindo, mas já com sinais de amainar; o motorista mostrou a identificação do estacionamento e o carro entrou lentamente na garagem, estacionando na primeira vaga da esquerda; depois de descer e já tendo em mãos a bagagem descarregada pelo chofer, ele levou-a até o elevador e disse a ela que o apartamento ficava no oitavo andar; depois, entregou a chave e se retirou.

O apartamento era amplo e confortável, com uma grande sacada que se abria para uma interessante vista da cidade; ficou alguns minutos contemplando a paisagem, completamente diferente do Rio, sem muitos espigões e ainda muitas casas ao redor; depois de desarrumar as malas, viu um pequeno pedaço de papel dobrado em cima da mesa de jantar; desdobrando-o viu que era um recado de Emília, que dizia : “O motorista vai te buscar por volta das seis e meia; nos vemos na Estação das Docas às sete; Abraços Emília”




Deixou o pedaço de papel de volta na mesa e se preparou para tomar um banho e descansar um pouco; daqui a algumas horas iria ao encontro de Emília, mas era também o começo de outra coisa.

Iria saber mais sobre Albertina Ribeira...

(Continua…)

Imagens: Arquivo Google