domingo, 14 de junho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - PARTE IV




O cemitério da Soledade tinha um ar de deslocamento em relação à crescente modernização da cidade.
Antes o cemitério central, foi pouco a pouco substituído por campos santos mais modernos e mais afastados; parecia ainda difícil, mesmo com as pretensas cientificidades, pensar na morte como um fator constante, imutável na própria vida; daí a lonjura cada vez maior dos chamados “últimos lugares de repouso”

Eram exatamente sete horas da manhã quando Eliza atravessou o portão de ferro trabalhando em intrincadas volutas, num estilo que não mais se via tão facilmente; percorreu o corredor central sem pressa, pois ainda tinha trinta minutos antes de se encontrar com Albertina. Notou o estilo elaborado e sofisticado de alguns dos túmulos, claramente de famílias abastadas da época; uns muito bem cuidados, com ramalhetes de flores frescas ainda orvalhadas, outros com evidentes marcas de que há muito não vinham entes queridos zelar por eles; andou devagar , notando idiomas estrangeiros nas inscrições, notadamente em inglês, francês e alemão; num deles notou que uma família inteira, de origem inglesa, tinha sido enterrada com diferença de poucos dias, possivelmente vitimados por alguma doença tropical que não tinham defesa; em outro, um jovem que mal completara vinte e um anos, falecido em Paris, tinha sido transladado um ano depois de sua morte e enterrado com os pais, que faleceram um bom tempo depois; ficou a perguntar-se o que o teria levado em tão prematuro viço de idade, quando um leve cutucar tirou-a de suas indagações.
- Bom dia, Dona Eliza, tudo bem com a senhora?
- Tudo bem, sim, Dona Albertina, espero não tirar a senhora de sua rotina vindo nessa hora.
- Não mesmo! Aqui neste lugar de paz poderemos conversar melhor. Não se preocupe, deixei minha neta comprando umas flores pra pôr no jazigo do meu avô e de minha mãe

Sentaram-se num dos bancos de pedra que ladeavam uma pequena praça onde uma grande cruz demarcava o centro geométrico do local, onde a poucos metros, uma capela dominava o restante.
- Fiquei tentando atinar o que o meu avô teria com o seu falecido pai, Dona Eliza, mas não consegui pensar qual razão ; a senhora saberia de alguma coisa?

Eliza, ainda um tanto desconfiada, não quis se abrir imediatamente, mas, assim que a conversa fluiu, ela percebeu que não podia mais ficar apenas tateando para descobrir a verdade; precisava ir direto ao ponto, entre tantas outras coisas.
- Bem, Dona Albertina, ele me disse que o seu avô deixou algumas coisas pra ele, que ele deveria contar a história de tudo o que ele viveu

Albertina sorriu de forma condescendente, com um ar de compreensão veneranda, como um adulto a considerar o deslumbramento das descobertas de um adolescente.
- Minha mãe falava das maluquices dele, de guardar as coisas num baú velho; ela se perguntava pra que ele fazia aquilo; ele dizia que alguém “com mais leitura” que ele iria contar a história de todas aquelas coisas – disse, entre sorrisos – coisa de velho, a senhora sabe.

Eliza ficou em silêncio. Lembrava do pai, com o hábito de guardar a menor tira de jornal que tivesse importância, objetos que, pra ela, não tinham a menor serventia. Apenas assentia com a cabeça enquanto Albertina falava.
- Pois é, minha mãe pelejou muito com ele pra que largasse mão dessa doidice, mas ele nem aí pros falares dela; mas quer dizer que ele então deixou o baú pro seu pai e daí pra senhora; mas que valor ele dava pra isso, pra deixar tudo pro seu pai?
- É o que quero saber, Dona Albertina; o que liga tanto meu pai ao seu avô
- Pouco sei dele, pois eu era menina quando ele morreu; mas tenho muita coisa guardada na minha casa, lembrança dele que ainda ficou lá. A senhora pode tirar um dia e ver tudo; mas lhe digo que vai levar tempo; a única coisa que minha mãe dizia é que ele tinha lutado numa guerra num lugar chamado Paraguai no tempo dele de moço, e olhe que ele morreu muito velho, com cento e tantos anos; venha, deixe eu lhe mostrar onde ele está.



Caminharam alguns metros até uma pequena alameda, onde uma fileira de pequenos túmulos fazia frente com outra alameda onde túmulos mais suntuosos, de clara inspiração europeia, ladeavam um jardim pequeno; de início, Eliza julgou tratar que o túmulo do amigo do pai ficasse nessa extensão de locais mais simples, mas quando Albertina apontou para o local onde ficava a sepultura, não pôde deixar de expressar espanto; o túmulo era típico de uma família abastada, embora desse pra notar que era mais moderno em alguns aspectos , como a grade mais simples e sem mármores encimando a entrada, apenas uma placa de estuque onde se lia “JAZIGO PERPÉTUO DA FAMÍLIA RIBEIRA”. Albertina tirou do bolso do vestido uma chave, que usou para abrir a porta do jazigo; a neta esperava com vários ramalhetes dispostos nos braços; Albertina tomou-os e se dirigiu ao interior do local, onde começou a substituir os murchos pelos frescos. Eliza ia logo atrás dela, notando as placas onde se lia: ”ANTÔNIO RIBEIRA, 01-12-1851/24-08-1956”, depois ao lado se lia: “CECILIA RIBEIRA 02-05-1878/09-09-1885” e , por último, “AMÁLIA RIBEIRA BERGANTIM, 03-04-1874/12-03-1961". Ela reparou no retrato acima da sepultura do amigo do pai; era o retrato da época da Guerra do Paraguai e o mostrava jovem, altivo e com vivos olhos verdes que pareciam devassar completamente quem o fitava; “então este é você, Antônio Ribeira, finalmente o conheço”, pensou, de si para si...







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