domingo, 30 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE IX


Ela acordou antes.

Viu o contorno do corpo dele coberto pelo lençol, a nuca e os cabelos dispersos no travesseiro; ainda se buscava depois da tempestade que sentira; era como se um rio inteiro jorrasse incontrolável por ela, rompendo todas as barreiras que um dia ela impusera a si mesma; era como se uma parte dela se libertasse, se revelasse depois de tanto tempo em uma reclusão auto-imposta...

Tudo passou -lhe nos pensamentos como num filme: a roupa apressadamente tirada, a urgência de quererem-se, que a fez voar, cavalgar, mergulhar num mundo que , até então, nem mesmo a palavra era capaz de sequer abranger; abriu todas as portas dos seu ser pra ele, assim como ele abria as portas dele para ela, numa entrega nova a ambos;

Procurou levantar devagar, para não o despertar; ele dormia um sono forte, mas sua respiração era suave como se apenas dormitasse; foi apenas ela levantar-se por completo que ele a alcançou, abraçando-a ternamente e beijando-lhe a nuca
- Desculpe, não quis te acordar; ia preparar algo para o café; coisas orgânicas, não sei se gostas.
- Claro que sim, alterei minha alimentação há algum tempo, quando tive um caso sério de intoxicação. Desde então me alimento quase exclusivamente de orgânicos.
- Com o que você se intoxicou? Não tem o tipo que pode ser suscetível a isso.
- Bom, antes de trabalhar com relações públicas eu me formei em história e me especializei em arqueologia; trabalhei três anos em sítios arqueológicos e num deles me aconteceu com a comida que era fornecida; depois fui diagnosticado com intoxicação aguda por agrotóxicos, mas sobrevivi, aprendendo a lição de apenas comer orgânicos, sem agrotóxicos.

“Mais uma coisa em comum”, pensou ela enquanto sorria; preparou o chá com ervas e o pão integral, colocando tudo no centro da mesa; ele serviu-se, tomou um gole do chá e reparou o espaço do apartamento com as coisas do pai dela; viu o baú, encostado a um canto, e os maços de cartas meticulosamente arrumados em uma mesinha perto dele.
- Coisas do seu avô? - perguntou de forma hesitante; não queria ser invasivo.
- Sim, são dele, ele era obcecado com a Guerra do Paraguai e colecionava coisas da época; ultimamente andei vasculhando algumas coisas pra ele, mas acho que não consegui ir muito adiante; me sinto mesmo um tanto culpada por não estar mais envolvida.
- Talvez eu pudesse te ajudar – aparteou ele – ainda sou bom em levantar dados de pesquisa e não perdi a mão como historiador; poderia dar uma olhada lá?
- Apenas vou pedir que tenha cuidado, algumas coisas são bem antigas.
- Não se preocupe, seu lidar bem com isso. Você tem luvas descartáveis? Assim posso examinar sem danificar.
-Acho que tenho sim, vou buscá-las.

Ela voltou com uma caixa pequena, de onde ele tirou um par de luvas de borracha, calçando-as cuidadosamente; indo até a varanda, abriu o baú e ficou fascinado com o que viu.
- É, parece que você tem um monte de histórias aqui – disse com uma expressão de admiração e surpresa.
- E eu tenho que te contar por que tenho tudo isso aqui; é uma história longa.
- Não esqueça que gosto de histórias longas – riu enquanto a beijava – temos todo o tempo do mundo, não? Depois de hoje, acho que temos muito ainda pela frente.

Ela riu enquanto o ajudava a abrir o baú; se sentia, pela primeira vez na vida, como se a felicidade lhe tivesse dado asas...

domingo, 23 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VIII



A vibração do celular a acordou num estalo.

Tentou segurá-lo nas mãos, mas ele parecia escapar; deslizou até o canto da cama,mas a ligação já tinha caído na caixa postal; ao verificar, viu que era de Eunice, deixando um recado sobre a reunião de conciliação de contas na segunda-feira; regurgitando a frustração, jogou o celular no recamier e despiu-se, indo para o chuveiro.

Deixou a água cair por cinco longos minutos, sentindo o deslizar pelo corpo; respirou fundo, e, de repente, sentiu-se como aquecer em ondas, um calor que não vinha da água, que parecia conduzi-la a algo que, para ela, parecia perdido, longínquo, apenas como uma lembrança; de início, tentou resistir, mas aquilo era mais forte que ela; rendeu-se e se deixou levar, até que, num átimo, viu-se mais intensa do que jamais fora na vida...

Enxugou-se e vestiu o robe sem pressa; olhando pela janela, viu que o sábado prometia ser nublado, sem muita promessa de melhorar; preparou o desjejum como de hábito, comendo sem muito prestar atenção, até que os acordes de Rhapsody in Blue – o toque que era a marca registrada dela – foram ouvidos de novo; lembrou-se do celular no quarto, chegando antes da chamada cair na caixa postal, só depois notando que a torrada ainda estava em sua mão; atendeu e reconheceu a voz de Walter, que se desculpava por não ter podido atender as ligações, pois estava resolvendo detalhes do apartamento que alugara. Combinaram de se encontrar num restaurante próximo do apartamento dela, onde finalmente conversariam...

Eram emoções desconhecidas para ela.

Jamais tivera interesse ou sequer atração por ninguém , mesmo em seu tempo de estudante; Lisandro, advogado e executor do testamento de seu pai, jamais escondeu a dedicação que sentia por ela, mas jamais tinha dado a ele esperança sequer; sempre fugiu de qualquer tipo de envolvimento, brigando inclusive com a terapeuta, que dizia que ela devia tentar algum relacionamento para “drenar energias”. Agora, ria consigo mesmo de tais lembranças...

Pela primeira vez vestiu-se com ansiedade; escolheu pantalonas de linho bege e uma blusa solta, que caiu confortavelmente; arrumou os cabelos com apuro e viu o tempo; ainda nublado, mas parecia que não iria chover tão cedo; saiu da garagem rápido, surpreendendo o porteiro; chegou ao restaurante primeiro, escolhendo uma mesa de onde podia ver todo o movimento de entrada. Ele chegou cinco minutos depois e não precisou de muito para localizá-la; acenou levemente e se dirigiu a ela num passo contido, como se quisesse decorar cada momento da aproximação; trocaram um aperto de mão tímido, como se estivessem se conhecendo naquele momento.



- Fiquei feliz por você ter vindo – disse ele, meio sem jeito – mais uma vez me desculpe por não ter atendido suas ligações; estava no meio da montagem do apartamento e não ouvi o telefone tocar.

- Não tem problema, pudemos nos falar depois e aqui estamos; estou igualmente feliz por vê-lo de novo.

Conversaram, em um primeiro momento, de amenidades, ele falando da nova empresa em que estava trabalhando , uma agência de publicidade, do apartamento que acabara de se mudar e de alguns hobbies; ela sentia que ele precisava estar mais confortável para começar a falar o que realmente queria; deu a ele o espaço necessário para que ele se sentisse à vontade.

Então, sentindo-se mais confiante, finalmente abriu-se, não numa torrente de palavras, mas num falar pausado, como se quisesse que nada ficasse perdido ou mal-entendido para ela

- Entenda, eu não poderia ficar como estava e onde estava, especialmente por causa do que se passou comigo; não poderia ficar lá porque...

O silêncio dele foi como se nada existisse ali, apenas os dois; ele pigarreou, folgou um pouco o colarinho e continuo no mesmo falar pausado

- Porque eu não poderia ficar sentindo o que eu sentia, e ainda sinto, por você; é mais forte que eu e é algo novo para mim; sempre fui profissional mais que pessoa, e isso me fez recuar e pedir demissão. Achei que jamais poderia falar o que falo agora, por isso tomei coragem e deixei a mensagem no envelope de minha carta de demissão.

Ele segurou a mão dela, apertando-a levemente; ela o encarou e sorriu sem falar nada, mas, por dentro, sentia que tinham mais em comum do que podiam imaginar; ele, igualmente , sempre pusera a carreira e a profissão acima de tudo, negando-se a viver seu lado pessoal em função do trabalho.

Almoçaram como se o tempo não passasse; cada olhar era como se fosse a mais animada das conversas, uma descoberta de sensibilidades que ambos se perguntavam por que não tinha sido descoberta antes. Depois que terminaram, dirigiram-se ao valet para pegar os carros, mas ela, como se não quisesse se despedir, disse: “vamos conversar mais, acho que temos muito ainda por falar”. Ele, tomado de surpresa, apenas assentiu com a cabeça, seguindo-a. Chegando ao prédio dela, esperou enquanto ela entrava na garagem, ficando no estacionamento dos visitantes, a aguardar a liberação da entrada pelo porteiro; este o observou por alguns minutos, até que o interfone tocou e a fechadura do portão deu um estalido seco, avisando-o de que podia entrar.

O elevador parecia subir mais devagar do que aparentava. Ele procurou disfarçar a ansiedade tamborilando os dedos na parede, imaginando que julgamento ela poderia estar fazendo dele; chegou mesmo a pensar que seria como um joguete, apenas diversão, mero passatempo. Dissipou tais pensamentos quando o elevador enfim chegou no andar; ela esperava com a porta aberta, convidando-o a entrar; perguntou se queria alguma coisa, alguma bebida; ele aceitou água, pois ficou com receio do que o álcool pudesse causar, especialmente naquele momento.

Conversaram mais um pouco, ele observando discretamente cada detalhe do apartamento, a mistura de decoração antiga e nova, recantos que pareciam ter vida própria; reparou na estante perto da sacada, os objetos parecendo que há tempos não eram arrumados.

- Aquele recanto era do meu pai – disse ela, como se adivinhasse os pensamentos – moramos juntos até a morte dele. Até então eu era como você, apenas o meu trabalho valia; ele mesmo me dizia que a vida não era apenas dever, mas prazer; não o levei muito a sério, como você pode ver.

- Também fui assim – respondeu ele na mesma fala suave – fui criado por duas tias solteironas que me diziam que a vida não era apenas a cara nos livros e trabalho, a vida tinha de ter arte.

Segurou a mão dela novamente, dessa vez com um pouco mais de firmeza; ela sentiu a energia do toque, o calor do aperto; deixou-se conduzir, enquanto ele a fitava com um fulgor nos olhos que não precisava ser traduzido; lentamente, a mão dela trouxe o rosto dele mais perto e os lábios se colaram devagar, mas não havia mais o que represar; a torrente dos dois rompeu as últimas reservas e não mais a razão, mas a pura vontade os guiava, os lábios como a querer devorar os anos de ausência, de solidão, de todas as coisas intensas há tanto tempo esquecidas...

(Continua)

Créditos das imagens : Google Images

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VII


Eliza segurava o celular nervosamente; buscou o número na agenda, mas lembrou-se do envelope e do número anotado na borda; repetiu os números no teclado, esperou enquanto o sinal de chamada se repetia até que recebeu o recado de que o celular estava fora de área ou desligado; respirou fundo, no intervalo do pensar se deveria deixar um recado ou não; preferiu não fazê-lo, esperando um pouco para ligar novamente...

Olhou para a cama: lá estavam os maços de cartas; imaginou o que poderia ter acontecido aos correspondentes, pois havia um hiato de datas de um maço de cartas para outro; separou os maços, amarrados por tiras de seda esmaecida, enquanto discava novamente o número dele no celular; procurou mais uma vez ler, uma forma de controlar a ansiedade que crescia cada vez mais...


RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 12 de Abril de 1863

Cara Irmã

Não me caibo de contentamento ao ver que me formei e já estou em vias de trabalhar com o pai do Mario Fonseca, um de meus colegas de curso; ele disse que tenho potencial para ser um bom advogado, apesar do meu juvenil entusiasmo, que , no dizer dele, pode arruinar as coisas; meu amigo, filho dele, me disse que eu conseguira conquistar o coração do velho, pois “jamais tinha visto o pai dar qualquer elogio, mesmo o mais lacônico”.

Fiquei feliz com a presença de vocês em minha festa de formatura; pela primeira vez vi meu pai esboçar um sorriso, acho que porque ele finalmente acreditava que eu havia me formado; fico pensando que o nosso pai realmente achava que eu estava no caminho certo. Mas isso ficou para trás; agora, tenho de pensar no futuro.

Agora me preocupo apenas com as coisas adiante de mim; podes acreditar ou não, mas nem mesmo a política tem me atraído muito para o cenário dos acontecimentos aqui em Recife; já há alguma agitação por conta dos acontecimentos no Prata, mas nada que mexa muito com o dia-a-dia.

Sei que não tens novas para mim, senão terias me escrito há mais tempo contando cada coisa que tivesse acontecido; mas mesmo assim folgo em receber tua carta, sempre uma razão de felicidade no entediante mundo de regras e normas as quais convivo sempre

Beijo Afetuoso

Do Teu Irmão
Julio



SÃO LUÍS, PROVINCIA DO MARANHÃO, 22 de Junho de 1863

Caro Filho

Te peço perdão por te ter escrito uma missiva tão escassa em palavras; não tinha muito o que relatar a não ser as coisas de praxe, as atribuições da magistratura e os destemperos dos que se veem prejudicados ou esbulhados; por mais incrível que possa parecer, a política parece ter dado uma trégua por aqui, sem mais refregas;

Encontrei por esses dias o estimado amigo Coronel Galdino Póvoas, do Cotonifício Aliança, em Cururupu; recebi dele notícias de que está expandindo os negócios, com a compra de uma fazenda de café no interior da província de São Paulo, mas ao invés de escravos, está negociando a vinda de imigrantes para trabalharem como parceiros ou meeiros, do mesmo jeito que ele fez aqui, mas com os escravos; ele os alforriou a todos e os fez meeiros igualmente.

Aproveito para te passar uma notícia um tanto perturbadora; lembra-se do Alvarez, o merceeiro que morava alpegado à casa de teu amigo Zuza Marcondes? Pois é, ele e o pai do seu amigo tiveram uma altercação que até agora desconheço o motivo; e não é que o doido do Alvarez desafiou o Seu Alfeu Marcondes para um duelo na barra da praia do Caju? Os dois loucos chamaram dois amigos para serem padrinhos e se bateram a fogo de pistola, mas, para o bem de todos, os dois tinham péssima pontaria e não se feriram seriamente.

No mais não há muito a comentar, apenas uma família inglesa que se mudou para a nossa rua recentemente; nosso novo vizinho se chama William Charlton e veio acompanhado da esposa e da filha, uma bela jovem chamada Agnes. Creio serem católicos, pois os vi indo à missa na Igreja da Conceição alguns dias depois de chegarem

Cuide-se bem, meu filho, e dê o melhor de si nesse novo desafio

Que Deus te Abençoe
Abraço do teu pai

Aurélio



SÃO LUÍS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO , 28 de junho de 1863

Caro irmão

Agora sim, posso te contar os últimos mexericos da cidade, depois que uma constipação me deixou de cara inchada; o que me salvou foram as mezinhas de Eméria, prestimosa como sempre; nosso pai a tem em alta conta, e eu igualmente; daí posso te escrever.

Nosso pai com certeza já contou o duelo do seu Alvarez com Seu Alfeu Marcondes e da família Charlton, os nossos novos vizinhos; já conheci a filha deles, a bela Agnes, e posso dizer que fiz uma grande amiga; passamos o dia conversando e o pai dela se tornou bom amigo de nosso pai, parece que busca os conselhos dele como juiz, pois o senhor Charlton é representante comercial, negociando as safras de algodão de alguns fazendeiros.

Ontem vi a Marília e o Manduca Zacarias, indo à missa com o filho de colo; ela foi sabida e tratou de agarrá-lo de jeito! Mas imagino que tal mexerico não te interesse tanto quanto um que tenho aqui; os filhos do Major Faria, Lucio e Clara, chegaram de fresco de Paris; não me contive e fui visitá-los; eles me deixaram com água na boca por todas as novidades, especialmente as modas; Clara me pôs a par de tudo, desde os salões elegantes até algumas coisas que me fizeram corar; Lúcio estava mais garboso do que nunca em uniforme naval; ele disse que vai assumir um posto no quartel general do Arsenal de Marinha, pois diplomou-se em engenharia; mas nem pense que ele me fez sequer arfar; sabes o que eu sonho , meu irmão, e não abrirei mão disso;

Espero que as coisas estejam bem por aí; fico escutando os comentários de meu pai e do nosso vizinho senhor Charlton, sobre os negócios na região sul; parece que as coisas estão um tanto difíceis por lá; sabe que não entendo desses assuntos, por isso não irei prolongar-me neles. Na oportunidade mais propícia venha nos visitar, que eu prometo apresentar-te a Agnes.

Beijo afetuoso
Da tua amantíssima irmã
Amália

domingo, 9 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VI



Eliza despertou, pela primeira vez, com uma inquietação que não sabia explicar...

Buscou dentro de si todas as coisas que fizera, tudo o que ocorrera nos dias anteriores desde que retornara de Belém; não gostava de deixar pendências, de qualquer tipo; procurou se lembrar, e foi aí que percebeu o que realmente a inquietava...

Fazia tempo que não sentia os pensamentos se desdobrarem de forma tão intensa; ela controlava cada coisa em sua cabeça como um computador, mas desde que o pai lhe dera essa missão que nada mais parecia sob controle; no trabalho, conseguia sempre a eficiência que exigia, até dela mesma; mas em casa, parecia que não tinha mais o controle de si...

Então, ela se lembrou...

Desde que ele chegara, era como se seu equilíbrio interno fosse deslocado; nada conversaram além do profissional e do trivial, apenas o vira fora do escritório no restaurante, mas havia algo no olhar que parecia dobrar quem o encarasse, algo de desnudar quem o fitasse...

Procurou tirar tais coisas da cabeça, pois teria um dia cheio no escritório, com muitos projetos chegando, especialmente o de restauração de uma casa, cujo dono queria que ela se tornasse moderna sem, contudo, alterar a estrutura original; o que fosse moderno teria de ser bem discreto; procurou colocar tudo em foco, discutindo com a equipe os aspectos da restauração e os termos do contrato com o cliente, pois queria usar esse trabalho como parte de uma campanha para consolidar ainda mais o escritório no mercado.



Ao chegar , percebeu que Eunice tinha uma expressão contrafeita, como se tivesse que transmitir más notícias; recebeu dela a agenda do dia, as pastas de projetos e o bloco de atas da reunião; não teria nada nas próximas três horas, assim poderia se dedicar a examinar os projetos em andamento; o cliente da restauração tinha excelentes conexões e um projeto bem-sucedido seria um algo a mais para o status da firma.

Sentou-se e só então percebeu o envelope sobre a mesa, na caligrafia inclinada e linear que reconheceu ser de Wagner; abriu-o e não conteve a surpresa...


No envelope, estava a carta de demissão dele; alegava motivos pessoais e a decisão era irreversível, pois alguns contratempos o levaram a tomar outra direção, mas que não havia , em momento algum, ressentimento ou mesmo qualquer tipo de desentendimento; apenas algumas contingências que o forçaram a não permanecer onde estava.

Mesmo no emaranhado de coisas que se passavam, conteve o impulso de perguntar a Eunice a razão dele ter se demitido; continuou com os afazeres do dia, recebendo potenciais clientes e resolvendo as pendências que esperavam; dentro de si, porém, o turbilhão de pensamentos parecia querer testar a força de vontade dela, sondando cada ponto em que pudesse desequilibrar; mas ela foi mais forte, esperando o expediente acabar para, assim, procurar saber o que havia acontecido.

Já se preparava para sair quando voltou a atenção para o envelope; pareceu perceber uma leve diferença de tom na aba, como se tivesse algo colado lá; era um envelope autocolante de tamanho médio, com aba simples; ela o pegou e examinou-o, percebendo algo escrito na borda inferior da capa; era um número de telefone, com algo que parecia ser uma frase; reconheceu a caligrafia inclinada e linear escrita a caneta...


A frase dizia : “Me ligue que eu explicarei minhas razões”

Pela primeira vez na vida, dirigiu com pressa, e, ao chegar em casa, não tirou os sapatos ao entrar; jogou a bolsa e o blazer no chão e correu para o quarto; a pilha de cartas estava como ela havia deixado, mas elas teriam que esperar; naquele momento, o celular era o que ela buscava com mais avidez...

(Continua...)

Créditos das ilustrações: Google Images

domingo, 2 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE V



SÃO LUIS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO, 01 de Maio de 1860

Caro Irmão

Que maravilha receber tua missiva! Estive imaginando o porquê de ficares de parcimônia em me escrever! Pensei que tivesse ficado zangado quando fiz menção de brigar contigo por causa de tua turronice quando fiz troça por causa de Marilia! No final, interesses acabam se encontrando; o Manduca Zacarias desistiu de vez de mim e arrastou a asa para ela, que , ao que se conta, já está cantando aos quatro ventos o noivado! Bom, assim as coisas se aquietam...

Espero que possas escrever de melhor lua, pois quero te ver sorrindo , sem essa de ficares macambuzio a cada tempo; sei que tens afinco em teus estudos e isso não te dá dores de cabeça; o que, então , te deixa assim tão triste? Espero que não seja por minha causa...

Te conto aqui um mexerico que peguei de uma amiga, a Cecília, cujo pai é escrevente do Tribunal da Relação, mas que o papai vai contar em breve; porém, não resisti e te conto de primazia: ele está pra ser nomeado Juiz de Paz, por merecimento!!! Quase o meu coração parou; nosso pai é um homem honrado e reconhecido como advogado, e é mais do que merecida a nomeação, mas não dê a entender que já sabes quando for escrever, viu? Segredo de irmãos...deixe ele te passar a notícia.

Não tenho muito mais o que comentar, apenas conversa de mulher, que tenho certeza não te interessa; não deixe de mandar notícias, meu irmão, e que Deus te guarde..

Beijo Afetuoso em tuas faces
Da tua irmã
Amália


SÃO LUÍS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO , 15 de Maio de 1860

Caro Filho

Escrevo para saber novas de ti; não entendi até agora por que as curtas notas que enviaste, como que estivesses sem assunto ou sem vontade de conversar; minha preocupação de pai é sempre no teu bem, jamais o oposto; quero apenas saber se as coisas vão em bons ventos, se os teus estudos estão em ordem e, principalmente, se tens feito tuas coisas direito; sei bem como é isso, já tive meu tempo de moço, com a cabeça cheia de ideias e sonhos e com todo o brio; mas temos de tomar tenência em nossas vidas e tomar nossas decisões para o nosso próprio bem;

Aqui na cidade, ao que parece, a calma reina; Cândido Mendes enfim assumiu a cadeira de deputado geral, mesmo com todo o dinheiro e as ameaças do coronel Izidoro; o mais novo rebuliço é o pipocar dos clubes abolicionistas, onde se misturam estudantes, jornalistas e alguns mais que começam a incomodar; a guarda já fechou alguns desses antros, mas no fechar de um, abrem-se outros; lembra do teu colega Juca Monforte? Aquele biltre fundou um desses valhacoutos e ganha cada vez mais gente para o lado dele! Nem rapou a primeira penugem e já se faz fumaças de líder; acreditas que tem gente que quer que ele seja vereador? Ora vamos! Um insolentezinho desses de assento na Câmara! Ora essa! U’a malta é o que eles são! Até o forro Elesbão, que tua mãe fez o favor de fazer liberto como vontade de testamento, anda a desfeitear todos! Para onde vamos desse jeito?

Bom, meu filho, deixe esse meu destempero de lado e procure dar acerto na vida; aqui fico esperando carta mais longa tua, pois apenas deixas um coração apertado de pai quando tens tanta parcimônia de palavras;

Só para contar a ti, fui nomeado Juiz de Paz do distrito de Anindiba, próximo do arraial da Maioba; assumi o posto há uma semana; novas coisas se revelam para mim, mas tenho certeza que minha fé me guiará no caminho certo. Espero que fiques contente com as boas novas e mande notícias logo.

Deus Te Guarde, Meu Filho
Abraço Afetuoso e minhas preces
Teu Pai 

Aurélio


RECIFE, PROVINCIA DE PERNAMBUCO, 06 de junho de 1860

Caro Pai

Por primeiro, aceite minhas escusas por delongar a resposta da carta que me enviaste mês passado; a razão da demora era porque eu estava acamado com uma forte constipação, que acabou quase virando pneumonia; tive de enfrentar aqueles terríveis sanapismos de mostarda, ventosas e  só não me sangraram porque me recuperei logo; assim, esta é uma carta para compensar as notas curtas que mandei; não queria apoquentá-lo com coisas que achei que fossem tolas, mas no final quase me abateram.

Fiquei muito feliz e orgulhoso com a sua nomeação a Juiz de Paz; o senhor indubitavelmente merece o posto, pois sempre foi um advogado de amplo domínio da prática e nada mais natural que o senhor fosse nomeado; me causaria estranheza se não fosse.

A situação é a mesma aqui, pai, mas com tintas mais fortes; há quem diga que alguns clubes abolicionistas estão organizando expedições para libertar escravos de fazendas e conduzi-los a quilombos ou mesmo para refúgios fora da província; a guarda aqui tenta recapturá-los sem muito sucesso.

Um colega aqui, o Jonas Almada, chegou recentemente da América. Tinha ido estudar leis, mas voltou porque o país está em estado de guerra civil, causada pela discussão sobre a escravidão nos territórios do sul; pois, segundo o que ele me disse, o sul está em guerra com o norte por essa razão; ouvi o relato dele e fiquei pensando: “tomara que não cheguemos a ponto de guerrear por escravos”

Continuo os estudos com afinco; quando estava acamado os colegas me ajudavam com os compêndios na cama; não fiquei atrás em nada, nem mesmo em direito romano, que, confesso, não ia muito bem; mas não levei bomba em nenhuma cadeira, isso eu posso garantir.

Não tenho mais para contar, meu pai, a não ser que os exames para o terceiro ano estão chegando e terei de me preparar bem, espero passar com boas notas.

Algo mais: minha próxima carta virá por um de meus amigos daqui, um paraense chamado Antônio Ribeira; ele deve resolver algumas coisas pessoais em Belém e passará por aí; se puderem fazer algo por ele, tenho certeza que ficará muito grato 

Recomendações e suas preces
Do seu filho
Júlio


RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 13 de Junho de 1860

Cara Irmã

Imagino que o nosso pai já deva ter contado a razão de eu me demorar tanto a escrever; não queria imaginar-te arfando pelos cantos em angústias e inquietudes; me feriria muito saber que ficaste assim; por isso não foi por turronice ou parcimônia, mas porque o teu irmão estava acamado e não queria te preocupar.

Com que então o Manduca Zacarias se arranjou com a Marília? Que bem arranjados fiquem; não me apoquenta qualquer coisa vinda deles; talvez, mesmo, bem se mereçam no fim das contas;

Me contes, recebeu o livro do Joaquim Manuel de Macedo que te enviei? Ele está a ser a sensação da cidade; recebi o exemplar do Rio de Janeiro e li-o de um fôlego só; é bom, mas acho que as moçoilas vão apreciá-lo mais; aqui os rapazes pelejam para memorizar poesia para fazer firula, mas fico a ver o ridículo disso; não me tome como sem sentimentos, mas é que tais coisas não me apetecem no presente momento. Espero que tudo esteja às boas e que apenas alvíssaras cheguem à nossa casa. Mande minhas recomendações aos amigos daí se os encontrar em tempo.

Terei mais o que contar na próxima carta; agora estou melhor, poderei escrever mais e contar mais coisas daqui; fique com o meu amor fraterno e minhas preces

Beijo afetuoso do teu irmão
Que te ama extremosamente
Júlio