domingo, 5 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO



Eliza chegou em casa em uma madrugada chuvosa.

Perdera a conexão em Brasília, tendo sido obrigada a ficar na capital federal mais tempo do que esperava; por sorte, já quase meia-noite conseguiu um encaixe de voos que a fez chegar no Aeroporto Internacional do Galeão por volta das três da manhã.



Não resistiu ao cansaço; largou as malas na sala e mal teve tempo de tirar a roupa, mergulhando nua na cama, e assim ficou até as nove da manhã.

Acordou com o som da vibração do celular antes do toque; atendeu e era Lisandro, querendo saber notícias dela; atendeu um tanto contrafeita, mas tinha prometido dar notícias assim que estivesse mais a par das coisas que o pai a incumbira; marcaram um almoço para daí a dois dias; teria tempo, então, de ver a caixa que Albertina tinha confiado a ela.

Tomou um banho demorado, deixando a água cair como massagem, recuperando cada parte de si do cansaço da viagem. O calor da água a revigorava, fazia-a se sentir renovada, com energia pra novos projetos, novas perspectivas, levantava-a para a vida.

Verificou o e-mail, respondendo o que podia em prioridade e deixou algumas coisas para depois; avisara que só iria reencontrar a equipe em quatro dias, pois precisava resolver alguns assuntos pendentes. Somente depois é que prestou atenção à bagagem ainda na sala; separou o que seria lavado do que não tinha sido vestido, mas depois decidiu lavar tudo; tirou um dos sacos da lavanderia do armário da cozinha, preencheu o rol e arrumou tudo para, mais tarde, deixar na portaria do prédio para o pessoal que viria buscar.

Separou com carinho a caixa que Albertina dera, abrindo devagar e cuidadosamente a tampa; tinha receio de rasgar o papelão, mas viu que podia confiar nas palavras da velha senhora, quando disse que o material era resistente. Dentro, um pacote de fotos, recibos velhos e outros documentos. Espalhou tudo na cama, separou documentos de fotos, sem reparar muito em cada grupo; só depois concentrou sua atenção em cada um...




Os documentos revelaram recibos do pagamento dos funerais e exéquias de Antônio Ribeira, desde a câmara ardente até o caixão, debitados a Silvano; antigos cadernos de assentos, com registro de soldos e adiantamentos, numa grafia inclinada e elegante, datados de 1866 a 1872; e, finalmente, uma carta de Silvano a Albertina, informando-a da morte do pai e tomando a responsabilidade dos funerais. 






Mas foi nas fotos que a atenção dela mais se demorou; algumas eram bem antigas, com um tipo de moldura metálica que parecia bem gasta pelo tempo, azinhavrada e fosca; outras eram de um tempo mais adiante, fotos de um casamento, depois de uma família com pai, mãe e duas filhas; Elisa reconheceu rapidamente o avô de Albertina; estavam vestidos como se fossem a um evento social, possivelmente uma festa de família ou mesmo uma missa; lembrou-se da expressão da mãe quando dizia que, ao se arrumar demais, ela estava a usar a “roupa da missa”; viu então fotos mais recentes e reconheceu seu pai, de terno e chapéu inclinado de feltro, ao lado de um senhor de barba branca, numa cama de hospital; no verso da foto, apenas uma menção ao local e à data: “Asilo de Mendicidade, São Luiz, 1955”


Examinou cada uma das fotos com cuidado, temendo estragar o papel tão sensível; numa viu um jovem com uniforme completo, como se estivesse prestes a embarcar para a frente de batalha; em outra viu um soldado armado de lança, escoltando um outro que parecia ser prisioneiro; no verso, apenas datas, entre 1867 e 1870; mas eram apenas algo superficial, que encobria algo mais...



Retirou tudo e descobriu, no fundo, um embrulho de veludo vermelho, preso por uma fita que parecia ter sido da mesma cor, mas que, agora, se esmaecera completamente; desatou com cuidado a laçada, mas, mesmo assim, a fita tanto tempo não tocada desmanchou-se como se virasse pó; desembrulhou receosa o envoltório de veludo, revelando um maço de cartas, amarradas desta vez com um laço de fita branca, de onde pendia um pingente com um coração, uma âncora e uma cruz; lembrou-se da mãe usar um pingente igual, que representava as três grandes virtudes: Fé, Esperança e Caridade; desatou com o mesmo cuidado o laço branco, separando a fita e o pingente e, desdobrando as cartas, começou a ler...


(Continua...)

Crédito das fotos: Google Images