sábado, 11 de julho de 2015

ESCRITOS AVULSOS - A CIVILIDADE É APENAS UMA ROUPA


Simples assim.

É desse jeito que a sociedade moderna coloca o conceito de civilidade; nos tempos do politicamente (in)correto, é apenas uma vestimenta que usamos de acordo com a ocasião, para não passarmos como dissociados ou mesmo marginais; na verdade, é o disfarce mais torpe para o que temos de mais sórdido: a selvageria e a intolerância.

Três exemplos são os mais marcantes: o assassinato de um homem, não somente por sua orientação sexual, mas por sua opção religiosa; o linchamento de um assaltante por uma população irada e a pesquisa recente de que os homens acham que, muitas vezes, uma mulher “pede pra ser estuprada”, porque faz a opção de usar um vestuário considerado por eles “ousado” ou “provocante”, levantam mais uma vez o debate sobre até onde somos mesmo a “democracia social, racial, religiosa e sexual” tão decantada pelos intelectuais.

Adriano, candomblecista, homossexual assumido, produtor cultural e dançarino, ganha as manchetes e a linha de investigação aponta o caso como “intolerância sexual e religiosa”. O que move tal coisa? Hoje beiramos por um fundamentalismo religioso tão irado que não poupou nem mesmo uma menina de 11 anos de idade, igual,mente candomblecista, apedrejada por elementos que se diziam “religiosos” e fizeram isso em nome de sua fé; que fé é essa que faz as pessoas cometerem barbaridades simplesmente porque outras têm um credo e um jeito de ser diferente?

Cleidenilson, 29 anos, foi capturado por populares enquanto tentava assaltar uma loja num bairro da cidade de São Luis-MA; os populares irados o amarraram a um poste e, depois de muitos socos, chutes, pedradas e garrafadas, ele não resistiu e morreu devido a uma hemorragia interna ( leia AQUI a matéria); poderia se considerar tal ato uma explosão da raiva de uma população cansada de ser roubada – falo de todos os tipos de roubo, do pequeno ao grande criminoso (pra bom entendedor meia palavra basta) – de ser violada em seu patrimônio; mas esperem, somos uma sociedade civil organizada, com regras(?) e um sistema judicial e penitenciário que, mesmo mal, existe e funciona. Com que autoridade somos juiz, júri e executor? Não somos diferentes dos russos no séc. XIX e seus pogroms (massacres) contra os judeus e os nazistas, que fizeram o mesmo. Não somos diferentes dos senhores feudais, donos da vida e da morte de seus servos. Mesmo “Justificada”, essa raiva nos dá essa autoridade? Que sabemos da vida do outro para nos arvorarmos de julgadores? Lembro-me das palavras de Jesus Cristo, ele mesmo mal interpretado e torpemente usado, quando falava aos que se arvoravam de moralistas: “antes tira a trave do teu olho, para poder tirar o galho no olho do teu irmão”.

O que nos leva ao terceiro exemplo: uma revista de grande circulação publica uma reportagem que constata um fato dos mais aterradores em pleno séc. XXI: por mais que a tecnologia e o progresso apregoem seu avanço, nosso pensamento acerca das relações interpessoais ainda é, sendo otimistas, baseado em conceitos bem medievais e canhestramente machistas; essa mesma revista mostrou o conceito da mulher que “pede pra ser estuprada”(leia aqui), porque simplesmente opta ou por vestir uma roupa mais ousada, ou por decidir usar uma maquiagem mais forte ou um comprimento de roupa que seja considerado “imoral”; assim, qualquer ataque tem a justificativa de que a mulher “pediu” para ser atacada, porque usava roupa provocante, ou insinuou algo pela mesma razão.

A mulher lutou arduamente para conquistar seu espaço na sociedade, deixando de ser mera peça, mero adereço sexo-reprodutivo, burro de carga e outras coisas degradantes pra se tornar personagem atuante, força de mudança e fazendo a diferença na história de vários países; lutou pelo mais ínfimo de seus direitos com a mesma coragem e determinação; como é que, no alvorecer do terceiro milênio, a relação com as mulheres – e, por conseguinte, o respeito – ainda segue um atroz e bestial – para ser até brando – retrocesso?

Então, aí vestimos a nossa “roupa de civilidade”, lamentamos, damos declarações de pesar, falamos mil palavras que, no fundo, sequer acreditamos; somos selvagens cruéis e torpes, usando um disfarce mais torpe ainda; uma civilidade que, como toda roupa, só usamos em ocasião adequada; longe de ser parte de nós, ela é apenas o que temos para ocultar nossa faceta mais cruel e impiedosa, fazendo-nos palatáveis ao gosto geral; nossas mãos podem não ter matado nem Adriano nem Cleidenilson, ou mesmo nem sequer tenhamos encostado em nenhuma mulher que tenha se insinuado – ao menos na crença dos que defendem esse ponto de vista – mas seremos coniventes se, como cidadãos e pessoas de bem, ficarmos de braços cruzados enquanto pessoas fazem justiça com as próprias mãos e a religião, a raça, a cor e a orientação sexual continuem a ser motivo de segregação e exclusão da cidadania; não seremos muito diferentes da situação a que o Dr. Martin Luther King dizia: “Para que o Mal triunfe somente é necessário que os bons não façam nada”; mas a grande contradição é exatamente essa; enquanto a civilidade for apenas a roupa de ocasião que vestimos e não se tornar verdadeiramente parte de nós, seremos apenas selvagens brutais e ignorantes disfarçados de cidadãos.