sábado, 25 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O SUBSTITUTO - PARTE II




Chegaram pontualmente às oito; Jerônimo, de braço dado com Luiza, seguia os pais logo atrás. Adentraram o amplo vestíbulo, adornado com pinturas de paisagens campestres e porcelanas de Sévres colocadas nos cantos ladeando cadeiras estofadas em veludo bege; um escravo de libré indicou a direção da sala de visitas, onde o Barão já esperava; homem já entrado em anos, ostentava sobrecasaca escura com gravata em tom solene azul escuro, destacando um alfinete de gravata de pérola e ouro; a mão direita pousava sobre o braço de uma das poltronas, a cabeleira densa e a barba hirsuta imaculadamente brancas, mascaravam uma energia que não tinha igual; feitorava ele mesmo as fazendas de sua propriedade, mas sabia igualmente manter um estilo elegante. Apertou calorosamente a mão do pai de Jeronimo, que respondeu da mesma forma

- Bem-vindo caro amigo, é sempre um prazer recebê-lo; meus caros, estejam à vontade; os cavalheiros desejam algum aperitivo? Charutos?



Jerônimo e o pai aceitaram a oferta; o escravo trouxe então uma garrafa de cristal e duas taças junto com uma caixa de pinho, de onde cada um tirou um charuto; a Baronesa , Luíza e dona Lídia passaram à sala contígua, deixando os homens à vontade para conversar
- Parece que vamos ter guerra, meu amigo – disse o Barão em tom sério – o documento foi lido no gabinete e submetido à sanção de Sua Majestade Imperial, que, como seria lógico, o aprovou; mas o que andei sabendo é que nosso exército não é tão forte quanto se pensa; soube igualmente das brigas entre Caxias e Polidoro, em que um quer tempo para aparelhar e treinar o exército e outro quer ação já; não se comenta outra coisa na Corte.
- Já soube disso também, Barão; o senhor acredita que o meu filho queria cometer a sandice de se alistar? Chamei-o às falas para que não fizesse essa besteira.

Jerônimo controlou-se para não exasperar com o pai; queria responder à altura, falar do que sentia naquele momento, mas o pai falava como se ele não existisse ali. Conteve o impulso de retrucar , em respeito à casa do Barão.
- Isso é assim mesmo, amigo; nós já fomos jovens, cheios de vontade e de ímpeto para fazer as coisas; mas os anos nos ensinam maturidade e bom senso; confie em seu filho, tenho certeza de que ele não vai decepcioná-lo; não é mesmo, jovem Jerônimo?
- Sim, senhor Barão, pode confiar que sim – respondeu, contendo a ira.

Um toque de sineta interrompeu a conversa, avisando que o jantar estava servido; o Barão apreciava muito os peixes do rio Paraíba, e o jantar era pintado ensopado com vinho branco, servido com molho de ervas; frangos fritos em azeite de oliva e um consomê especial  do mesmo peixe, muito apreciado pelos convidados; a conversa girou em torno da última viagem de Luiza à França, em que ela contou das últimas da grande cidade, desde a moda aos teatros e galerias de arte; a Baronesa e D. Lidia escutavam atentas, enquanto o barão, sobrolho levantado, não dava tanta atenção assim; ele tinha reserva em relação a mulheres assim tão viajadas, pois achava que tinham “liberdades demais”.

Jerônimo , por sua vez, extasiava-se a cada detalhe de bulevares, galerias e lojas charmosas; a voz de Luiza fazia com que o tempo não passasse; ficaria uma eternidade ali, escutando tudo o que ela dissesse; o fato dela ser como era o encantava ainda mais. Já tinha até esquecido tudo o que ocorrera entre ele e o pai, enlevado nas palavras dela.


Os convidados, depois do jantar, foram levados a uma sala anexa, onde esperavam bolos e café fresco, passado de pouco; o Barão e Manuel Fogaça conversavam em voz baixa, de vez em quando lançando um olhar a Jerônimo, que apenas notava a presença de Luiza na sala; de resto, a conversa fluía. O Barão, então, chamou Jerônimo para um lado da sala, ao lado do pai, e o encarou com um olhar sério.
- Então, Jerônimo, estivemos conversando, seu pai e eu; vamos resolver seu problema. Contrataremos um substituto para que ele cumpra o serviço por você; é perfeitamente legal e não prejudicará sua carreira.

- O quê?? – perguntou , perplexo.
- Um substituto cumprirá o serviço por você e não precisará se envergonhar disso; você é muito mais necessário aqui do que no campo de batalha, meu jovem; há um futuro brilhante esperando você, e tenha certeza de que não é se ferindo à bala ou a lâmina que terás louros de glória.

Jerônimo ficou mudo; então era assim! Uma outra pessoa iria em seu lugar cumprir o dever que era dele, ir ao campo de batalha e se ferir enquanto ele ficava! O simples pensamento o enojou, mas ele acedeu no momento, procurando ver os desdobramentos do que viria;
- Muito agradecido, Barão, será um favor que deverei – disse aliviado Manuel Fogaça.
- Ora, amigo, eu que lhe devo tantos favores! Considere como um favor de irmão.

Despediram-se já ia noite alta. Jeronimo conversou ainda alguns minutos com Luzia antes de ir, pois teria de levantar cedo se não quisesse perder a caleça para Campinas e de lá o trem para São Paulo.
- Então vais; parece que os argumentos de teu pai e do Barão te convenceram, ou algo me diz que posso estar errada?
- Apenas não provoquei tempestade por enquanto; quero amadurecer mais minhas idéias.
- Ah, mon enfant terrible! – disse ela num sorriso – veja lá o que vais decidir! Não esqueça de jamais deixar de usar o broche junto ao peito, para protegê-lo.
- Jamais me esquecerei disso, jamais.

Então, num arroubo que ele depois custou a se reconhecer fazendo, beijou-a.


A viagem de volta para São Paulo foi cheia de pensamentos e indagações. “Um substituto, como é que eles podem fazer isso?”, ficou a se perguntar enquanto a cidade aparecia no horizonte...

Consultou os compêndios assim que chegou; queria saber se havia amparo legal naquilo que o pai e o Barão tinham resolvido; para sua estupefação, verificou que essa saída realmente existia; o substituto poderia sim, cumprir o turno de serviço no lugar dele, com o pagamento de uma taxa, sessenta por cento para o dito substituto, quarenta por cento para a circunscrição militar responsável pelo alistamento.

Encontrou as Arcadas agitadas, com os estudantes fazendo listas de alistamento e alguns já de pena em punho, escrevendo artigos virulentos criticando a postura militar frente ao conflito; já se sabia que o conflito entre Caxias e Polidoro descambara em outros desdobramentos, com a Guarda Nacional se colocando à parte da convocação do exército, simplesmente pela justificativa de ser uma “agressão externa”, pois seu papel era, em essência, conter ameaças “domésticas”, tal o escopo criado pelo finado regente Feijó; isso causou uma celeuma que cindiu o conselho de ministros e nem mesmo o Imperador, com sua influência, conseguiu conter.

Sentou-se num dos bancos do pátio interno e meditou sobre a situação; pelo que viu , teria de haver anuência entre ele e o substituto para que o acordo fosse feito; assim, ficou a pensar o que poderia fazer para reverter ou mesmo se aproveitar da situação para enganar o pai e o Barão; queria lutar e não seria nenhum substituto que o faria mudar de ideia.


De repente, sua mão foi, como num reflexo, para o broche com o Menino Jesus de Praga que ela lhe dera; tocou-o de leve, como que quisesse evocar a lembrança daquele beijo; ficou a pensar se ela ainda quereria falar com ele depois daquele arroubo; no mínimo talvez merecesse uma bofetada por tal disparate; desfez tal pensamento e ficou a maquinar o que poderia fazer...

(Continua...)

Créditos das ilustrações: Google Images/ Blog Construindo Victoria)