sábado, 28 de março de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O RETRATO

Aprumou-se o melhor que pôde.

Verificou todos os detalhes da farda; os botões doirados, o cinturão, o talim(1), o ângulo do sabre, a faixa amarelo-doirada que denotava seu grau de oficial; tudo estava no maior apuro; precisava fazer os parentes, no interior de São Paulo, saberem que estava bem e em forma. Tinha apenas mais um dia de folga e o aproveitaria para fazer as fotos; o estúdio do francês estava sem muito movimento, pois os oficiais de alta patente já tinham tirado os seus retratos e os soldados rasos e sargentos eram atendidos em outra barraca, que cobrava mais barato pelos “cartes de visite”(2), que podiam ser com moldura de madeira ou de metal, dependendo do bolso do cliente; uns se aprumavam em armas, todas à mostra, como a dizer que não tinham medo da refrega; outros em poses altivas, outros em contemplação, outros mesmo em prece, ao lado de imagens de seus santos de devoção; o motivo , em todos os casos, era o mesmo: mandar notícias, numa tentativa de acalmar , de diminuir angústias em mães , esposas, noivas e demais parentes.



Ele preferiu um retrato maior, que pudesse mostrá-lo inteiro, em compleição plena, no mesmo querer falar a todos que a guerra não o modificara; não era bem assim – as cicatrizes de um golpe de sabre no ombro esquerdo e um de lança no braço direito diziam o contrário – mas ele estava ali, a dor das feridas ainda aferroando um pouco, mas bem menos do que antes; tinha sido surpreendido por um piquete de cavalaria paraguaio e não tivera tempo de ajeitar a montaria; antes que sacasse da arma para se defender, um sabre e uma lança o atingiram, fazendo-o cair da sela; somente a presteza do sargento Matias, de Spencer(3) já em mão, o salvou, mas não sem sangrar, o corte detido pela clavícula e pelo osso do antebraço; “sorte desses bugres não saberem afiar sabre, meu tenente”.

Esperou pacientemente o francês ajeitar a lente, conferir o ângulo da máquina fotográfica e ajustar o foco; foram quase dois minutos, mas pra ele pareceram uma eternidade; de tanto ficar sem movimento, a dor dos ferimentos ficou mais forte e ele já queria praguejar todos os impropérios ao pobre fotógrafo quando este levantou o polegar, dizendo que estava tudo pronto; foram duas fotos; uma, sentado, os olhos num ponto focal fora da cena; na outra, em pé, altivo, olhar firme, em todas as galas de oficial; “a família vai gostar”, pensou ele; depois acertou o preço com o homem que iria enviá-las no próximo correio para Araraquara, onde os pais já deviam aguardar, como sempre, ansiosos por notícias do filho; deixou a tenda do fotógrafo e voltou à sua barraca, onde já o esperava Inácio, seu ordenança pessoal, liberto recomendado por seu pai para acompanhá-lo; cuidava das roupas, dos objetos pessoais e das armas , sempre deixando o sabre afiado e as pistolas carregadas; tirou a farda de gala, verificou as bandagens dos ferimentos e vestiu a farda de campanha, já deixada ao alcance pelo ordenança; nem se notavam muito os rasgos da lança e do sabre; a farpela(4) Lourença já deixara tudo bem cosido; “boa mulher”, matutou, olhando para a cama de palha ao lado do catre, onde ela, de vez em quando, anoitava; desviou os pensamentos da mulata e pensou nos pais, lembrando do inopino com que se alistara, contrariando a vontade deles que o queriam em casa; o pai mesmo já separara dinheiro para “pagar um substituto”, que fosse pra guerra no lugar dele, mas ele se recusou, com a alegação de que não podia fugir do dever cívico; “Às favas”, disse o pai; “quero meu filho aqui, comigo, cuidando da fazenda, não se metendo em briga que não nos diz respeito; os gaúchos têm fuças pra se zangar, nós aqui não; deixe eles lutarem”; isso, porém, não convenceu o filho, ainda contagiado pelo rataplã dos tambores do recrutamento; mesmo com a ameaça de ser deserdado pelo pai, fez as malas e foi-se.  O pai, depois, se convencera de que não conseguira demover o filho; mandou Inácio, antigo escravo que agora era meeiro, acompanhá-lo na frente de batalha.

Agora, se lembrava disso e dizia: “bravata boba”, de si pra si, pensando no que vira desde que chegara à frente de combate: desorganização, doença, a mais completa falta de tudo; mesmo Caxias, com sua vontade férrea e disciplina idem, promovendo alguma ordem naquele caos, não conseguia ainda dar àquela turba uma forma de exército; dizia-se que a briga maior dele era com o Conselho de Ministros, na Corte, para conseguir com que viessem os suprimentos tão necessários; mas a maior frustração era que a Guarda Nacional, convocada juntamente com o exército para engrossar o contingente, simplesmente virou as costas, com a alegação de que, sendo uma “agressão externa”, não competia a ela se envolver; Caxias não estava surpreso; sabia que a Guarda era , apenas e somente, um instrumento dos chefetes políticos das províncias, que se pavoneavam de suas patentes e jamais tinham sequer visto uma arma na vida; sentia-se igualmente um tanto aliviado por não ter que cuidar daqueles trastes.

Tentou relaxar , mas algo não deixava que ele pregasse o olho; os primeiros combates lhe aguçaram o instinto, aprimoraram o senso de alerta, o perceber do perigo; colocou a cabeça pra fora da barraca, mas nada via, apenas soldados de folga vagabundeando, entre idas e vindas às tendas das farpelas; algumas, melhor ataviadas, se aventuravam nos alojamentos dos oficiais; tudo rescendia a preguiça, a nada fazer; então, um rugido distante, como que um trovão, começou a crescer; ele, então, alçou as pistolas, o sabre-baioneta, que preferia, por ser mais curto e leve pra se manejar a cavalo, e ordenou a Inácio para que selasse sua montaria; logo ouviu o assoviar do primeiro obus e o ribombar da explosão das granadas; começava a batalha de Tuiuti, a maior batalha campal até então.

A encomenda foi entregue pelo estafeta logo de manhã cedo, quando os escravos iam pro eito; passou o pacote à mucama sem apear, apressado que estava em aviar-se; o Comendador Lourenço recebeu o pacote com ar sério, tentando não mostrar-se tão ansioso por abrir; sua mulher não escondia a ansiedade, mas esperou que o marido passasse a encomenda a ela para que a abrisse; nela estavam duas cartas do filho, e, embrulhados em chumaços de estopa, estavam duas fotografias, que a mãe apertou contra o peito, depois entregou ao marido; ele observou com mal disfarçado orgulho, vendo a transformação que o filho sofrera;  via no olhar firme que ele, enfim , se tornara um homem; voltaria, casaria, teria uma família e tomaria conta da fazenda quando ele cansasse ou morresse;

Ele se viu novamente no hospital de sangue, entre tantos outros feridos; desta vez a coisa era mais séria: dois tiros na altura do peito, depois de quase duas horas de peleja; entre ataques e contra-ataques, os paraguaios tentaram pegar os brasileiros de surpresa, mas a ausência de atividade deixou algumas unidades alerta, especialmente a artilharia de Mallet, que de tão precisa, destroçou as cargas de cavalaria dos paraguaios; tal feito rendeu as guarnições o apelido de “artilharia-revólver”; ele viu, num leito a poucos passos do seu, deitado, igualmente ferido, o general Antônio de Sampaio, cujo corpo de voluntários cearenses foi o primeiro a sentir o impacto da carga; três balaços o derrubaram do cavalo; ainda teve tempo de ditar um despacho ao ordenança: “avise ao Imperador que eu estou ferido”, foi retirado do campo de batalha, mas já não se tinha mais esperança que ele sobrevivesse; 
Ele já sabia que também não tinha mais esperança; perdera sangue demais, as forças já faltavam; viu então Inácio, à sua cabeceira, mãos no queixo, num jeito mal dormido; chamou-o junto a si e deu recomendações a ele para que fizesse saber aos pais que ele estava moribundo e que já sabia que ia morrer; o ordenança se recusou, fazendo o sinal da cruz e esconjurando as palavras do oficial; “o que eu vou dizer ao senhor seu pai se eu chegar sem o filho dele?” O oficial ainda pensou nos pais, que, pensava ele, já deviam ter recebido suas últimas cartas e os retratos; Inácio tentou aquietá-lo, mas ele não ouvia mais; os olhos fixavam o alto da tenda, a mão caída para o lado direito, já sem vida...

Os pais avistaram de longe o cavalo castanho, reconhecendo a montaria com a qual o filho saíra de casa; chegando mais perto, deram com Inácio montando o animal, seguido por um carroção que seguia logo atrás; A expressão esperançosa se tornou pesada, pois o pai sabia o que aquilo queria dizer; olhou para o cavalo selado perto do alpendre, mas não o montou; esperou que cavalo e carroça chegassem na entrada da casa, para só então ver o que se passava; Inácio, ao chegar, apeou e entregou ao comendador o talim, o cinturão e o sabre, além da medalha de valor, concedida postumamente; depois tirou a lona do carroção e mostrou o caixão com o corpo do filho; Inácio explicou que precisou conservá-lo em vinagre e sal até que chegasse no Rio de Janeiro, onde o embalsamou e o conduziu de volta; havia prometido que o faria e o fez; o Comendador, com voz rouquenha, agradeceu à dedicação do liberto e quis recompensá-lo, mas ele recusou, dizendo que fez isso “pela amizade do tenente e pela caridade cristã”; o comendador insistiu , então, para que ele aceitasse o cavalo castanho com o qual ele voltara; após muita insistência, Inácio aceitou, despediu-se e tomou o caminho da saída da fazenda; ao entrar, o comendador viu que os retratos do filho já ostentavam uma faixa preta atravessando o canto superior, mostrando o pesar e o luto; a mãe fitava os retratos em silêncio, a dor compungida, sem alardes nem desespero; o marido afastou-se sem dizer palavra; sentia a mesma dor, a mesma agonia, mas tinha de ser forte, para que os dois não desmoronassem; tratou de sair, cuidar dos preparativos para o enterro do filho, que seria na capela da fazenda, ao lado dos avós e dos bisavós; olhou para o caixão e não conteve o pensar alto: “está em casa agora meu filho; fique em paz...”

NOTAS
1- Conjunto de anéis e tiras de couro que atados ao cinturão, prendiam a bainha da espada/sabre/baioneta, facilitando a rapidez do desembainhar da arma

2 - Eram pequenos retratos do tamanho de cartões, emoldurados de madeira ou metal, que eram enviados aos parentes como lembrança ou mesmo para lembrar datas alusivas, como casamentos, aniversários ou funerais; fotógrafos famosos como Militão Augusto de Azevedo, Christiano Junior e Marc Ferrez produziam tais retratos, sendo que Christiano Junior fez seu estudo dos escravos do Rio de Janeiro em retratos nesse formato;

3 - O Rifle Spencer , de calibre 58, foi o primeiro rifle de repetição de cartucho metálico efetivo que se tornou arma de serviço militar; usado na Guerra Civil Americana pelas tropas da União, foi rapidamente exportado, sendo o Brasil um dos primeiros compradores, que o usou para equipar a sua cavalaria; estranhamente, sua versão mosquetão, de infantaria, não foi adotada pelo exército brasileiro, com a alegação de que a cavalaria, que ainda considerava o sabre como arma principal, via o rifle apenas como “arma de último recurso”, usada apenas quando se tinha de desmontar e lutar numa posição estática; a alta taxa de tiro- um atirador hábil poderia disparar quinze tiros em dez segundos – fez com que a comissão de material bélico do Departamento Imperial de Guerra – presidida pelo então general Manuel Luís Osório – concluísse que,  para a infantaria, seria “desperdício de munição”


4 - Farpelas eram mulheres que, acompanhando os soldados em campanha, serviam como criadas pessoais, atuavam como enfermeiras informais nos hospitais de sangue e, muitas vezes, eram a válvula de escape sexual para os soldados na frente de combate; muitos oficiais e soldados tomaram algumas delas como concubinas, ou “esposas de guerra”; muitas mesmo pegaram em armas, lutando ao lado dos homens quando a situação apertava; eram diferentes das vivandeiras, que distribuíam suprimentos e muitas vezes, uma ou outra palavra de consolo aos soldados; estas últimas eram parte da estrutura militar, muitas vezes usando uma versão feminina do uniforme; as primeiras eram parte do volumoso contingente de todos os tipos que acompanhavam o exército em campanha;