domingo, 9 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VI



Eliza despertou, pela primeira vez, com uma inquietação que não sabia explicar...

Buscou dentro de si todas as coisas que fizera, tudo o que ocorrera nos dias anteriores desde que retornara de Belém; não gostava de deixar pendências, de qualquer tipo; procurou se lembrar, e foi aí que percebeu o que realmente a inquietava...

Fazia tempo que não sentia os pensamentos se desdobrarem de forma tão intensa; ela controlava cada coisa em sua cabeça como um computador, mas desde que o pai lhe dera essa missão que nada mais parecia sob controle; no trabalho, conseguia sempre a eficiência que exigia, até dela mesma; mas em casa, parecia que não tinha mais o controle de si...

Então, ela se lembrou...

Desde que ele chegara, era como se seu equilíbrio interno fosse deslocado; nada conversaram além do profissional e do trivial, apenas o vira fora do escritório no restaurante, mas havia algo no olhar que parecia dobrar quem o encarasse, algo de desnudar quem o fitasse...

Procurou tirar tais coisas da cabeça, pois teria um dia cheio no escritório, com muitos projetos chegando, especialmente o de restauração de uma casa, cujo dono queria que ela se tornasse moderna sem, contudo, alterar a estrutura original; o que fosse moderno teria de ser bem discreto; procurou colocar tudo em foco, discutindo com a equipe os aspectos da restauração e os termos do contrato com o cliente, pois queria usar esse trabalho como parte de uma campanha para consolidar ainda mais o escritório no mercado.



Ao chegar , percebeu que Eunice tinha uma expressão contrafeita, como se tivesse que transmitir más notícias; recebeu dela a agenda do dia, as pastas de projetos e o bloco de atas da reunião; não teria nada nas próximas três horas, assim poderia se dedicar a examinar os projetos em andamento; o cliente da restauração tinha excelentes conexões e um projeto bem-sucedido seria um algo a mais para o status da firma.

Sentou-se e só então percebeu o envelope sobre a mesa, na caligrafia inclinada e linear que reconheceu ser de Wagner; abriu-o e não conteve a surpresa...


No envelope, estava a carta de demissão dele; alegava motivos pessoais e a decisão era irreversível, pois alguns contratempos o levaram a tomar outra direção, mas que não havia , em momento algum, ressentimento ou mesmo qualquer tipo de desentendimento; apenas algumas contingências que o forçaram a não permanecer onde estava.

Mesmo no emaranhado de coisas que se passavam, conteve o impulso de perguntar a Eunice a razão dele ter se demitido; continuou com os afazeres do dia, recebendo potenciais clientes e resolvendo as pendências que esperavam; dentro de si, porém, o turbilhão de pensamentos parecia querer testar a força de vontade dela, sondando cada ponto em que pudesse desequilibrar; mas ela foi mais forte, esperando o expediente acabar para, assim, procurar saber o que havia acontecido.

Já se preparava para sair quando voltou a atenção para o envelope; pareceu perceber uma leve diferença de tom na aba, como se tivesse algo colado lá; era um envelope autocolante de tamanho médio, com aba simples; ela o pegou e examinou-o, percebendo algo escrito na borda inferior da capa; era um número de telefone, com algo que parecia ser uma frase; reconheceu a caligrafia inclinada e linear escrita a caneta...


A frase dizia : “Me ligue que eu explicarei minhas razões”

Pela primeira vez na vida, dirigiu com pressa, e, ao chegar em casa, não tirou os sapatos ao entrar; jogou a bolsa e o blazer no chão e correu para o quarto; a pilha de cartas estava como ela havia deixado, mas elas teriam que esperar; naquele momento, o celular era o que ela buscava com mais avidez...

(Continua...)

Créditos das ilustrações: Google Images