sábado, 11 de outubro de 2014

CRÔNICAS DA CASA ALTA 9 - UMA POESIA



UM BANCO NA PRAÇA

O Banco de praça
É poesia de espera
É conto de encontro
É crônica de movimento
É soneto de lembrança
É Elegia de Saudade
É estado de arte
Da praça
É o que acolhe
Abraça
Consola
É parada
Meditação
Além de tempos...

(Thomé Madeira)

sábado, 13 de setembro de 2014

ALUÍZIO E SATÔ - UMA HISTÓRIA DE AMOR



Os que conhecem a obra de Aluízio Azevedo, sabem bem que, como fiel seguidor da escola Naturalista, sempre procurou mostrar, dento do matiz da época, todos os desdobramentos de uma sociedade, suas transformações e, sobretudo, suas mazelas, sempre fazendo do pano de fundo de suas histórias seu maior personagem; mas ele, igualmente, foi protagonista de uma grande história de amor, nos seus tempos no serviço diplomático; no seu primeiro posto, em Yokohama, Japão, tomou-se de amores por Satô, uma jovem gueixa que trabalhava em uma casa de chá nas proximidades do consulado; de intensa paixão torna-se amor tórrido, que vence o antes taciturno Aluízio; vive cada dia desse amor como se fosse o último, como a prever que não duraria; transferido para La Plata, Argentina, insta em querer levá-la, mas Satô, presa a uma dupla tradição - a primeira é que uma gueixa tinha de cumprir um "tempo de obrigação" que a prendia à casa em que servia; a segunda, ela não poderia se desligar de seus pais, já muito velhos, obrigada igualmente pela tradição a cuidar deles até que morressem; a última vez que a vê é exatamente quando se despede dela no cais,a caminho de seu novo posto; os colegas que serviram com ele na Argentina lembram-se dele como "macambuzio, de rosto fechado, raramente a entabular conversa; muitos sabiam quem ele era pelos livros que tinham lido, mas ele parecia nem querer se lembrar desse tempo, como se fosse nada, um quê sem importância"; uma vez conseguiram arrancar dele apenas uma frase, quase um desabafo:
"Hoje não preciso mais escrever romances para comprar melões". Morreria no estrangeiro, e, dizem os que arranjaram o seu funeral que, no ataúde, entrelaçado junto ao terço que trazia nas mãos, uma fita de seda bordada, que enlaçava um ramalhete de flores dessecadas de cerejeira...


terça-feira, 9 de setembro de 2014

RETURN TO A VIEW - UM CONTO



Florença, Agosto de 1977

"Debruçou-se na janela e contemplou longamente o Duomo, deixando os sentidos livres para absorver todas as sensações daquele momento; parecia que nada havia mudado; os mesmos eflúvios, a mesma brisa soprando do Arno, o farfalhar das asas dos pombos em revoada, o cheiro dos produtos vendidos; a música, esta sim, tinha mudado; não mais as dolentes canções de amor, mas uma mistura de ritmos que ia desde os latinos ao rock. Procurou isolar isso, retendo apenas o que tinha  de lembrança...
Os dedos correram pela velha esquadria de madeira, como que procurando algo; logo ela cedeu um pouco no ponto onde ele buscava, revelando um pedaço de couro velho, amarrado por um cordão também de couro; puxou-o e tomou nas mãos, desenrolando-o sem pressa; dentro dele, um pedaço de papel, igualmente enrolado e amarrado por um cordão dourado; ele não continha mais as lágrimas enquanto abria o cordão e desenrolava o pedaço de papel; reconheceu a caligrafia elegante, o jeito suave das letras, respirou fundo e leu;

'Florença, Agosto de 1910,
Caro Robert,
De três coisas uma: ou leremos juntos esta carta, ou lerei eu sozinha ou você sozinho; não importa; a promessa que fizemos foi que , no dia que pudéssemos, voltaríamos a este mesmo lugar e abriríamos para ler o que escrevemos no começo de nossas vidas, para ver quão sonhadores fomos e quanto poderíamos ousar sonhando até realizarmos tudo, para apenas descobrir que ainda haveria tanto a sonhar e realizar, logo eu , que sempre fui tão cheia de realidade, tão presa no chão com meus pés; me ensinaste a voar, a alcançar o céu, a viver cada parte de mim sem ter pressa de descobrir tudo; me deste com teu amor asas pra alcançar lugares onde jamais eu tinha ido; agora, meu amor, voemos juntos, até onde nossa vista alcançar; te amo, Meu Robert, e te amarei por todos os dias da minha vida. Te fiz prometer que jamais veria o conteúdo desta carta até que se cumpra o nosso tempo, ou passaremos para os filhos, que poderão ler o que vivemos então; que nosso amor seja o supremo arauto de nossa felicidade...

Amor por toda a vida,
Sua 
Lucy'

Ele ficou em silêncio por longo tempo, as lembranças daquele amor preenchendo os pensamentos; logo o silêncio foi quebrado por batidas leves na porta, a voz da filha e da neta  preenchendo o pequeno quarto.
- Está tudo bem, papai? - Perguntou a filha com ar preocupado - Não vimos o senhor descer para o café da manhã...
- Está tudo bem, filha, tudo bem. Venham aqui, quero mostrar uma coisa.
Ele mostrou a elas então o que encontrara e contou a história de como tudo aconteceu. O semblante curioso da filha e da neta deu lugar à emoção, e as duas se abraçaram e choraram.
- Não chorem, não é uma história triste; ela está mais viva do que nunca em cada palavra que nós lemos; ela não gostaria de nos ver assim, não é mesmo?
Desceram para o desjejum e depois passearam pela Piazza del Belvedere,  ele reconhecendo cada lugar e contando para a filha e a neta a história de como ele e Lucy se conheceram; de repente, pareceu a ele sentir uma presença familiar; virou-se ligeiramente e a vislumbrou, os mesmos olhos verdes, o mesmo cabelo castanho, o mesmo sorriso encantador, vestida no redingote azul e com o chapéu de palha com um botão de rosa...
Ela sorria...

quinta-feira, 7 de agosto de 2014

CRÔNICAS DA CASA ALTA 9 - UMA POESIA



BECO DAS GARRAFAS

No Rio
No Beco
A Fossa
A Bossa
Dançam meio que estranhas
Uma de derrotistas patranhas
Outra de românticas manhas
Uma conquista o mundo
Outra canta e decanta
Os amores que não se permite
Mas que o âmago insiste
Em buscar no limite
Canção de uma
Lamento de outra
De bar em bar
No beco
Se enlaçam
Dançam
Se entrançam...

(Thomé Madeira)

sábado, 26 de julho de 2014

RESENHAS E AUTORES - VISÃO DE UM MARANHENSE SOBRE A ARTE DO BRASIL 2

A poeira da Copa baixou e agora buscamos outro rumo; deixamos a expectativa pra Russia 2018; vamos trocar a pinga pela vodka, tirar os casacos de dentro do guarda roupa e vamos embora..mas isso é pra 2018...
Por ora, vamos continuar nossa viagem textual por esse Brasil tão artista e tão especialmente vibrante, buscando seus sensíveis videntes e visionários, ou mesmo simples cronistas desse nosso tão diverso cotidiano...
Ainda neste post falemos um pouco mais de futebol, apenas pra fecharmos com um autor  que era mais que um simples comentarista; assim como um outro autor que mencionarei aqui, mas músico ao invés de escritor, este passou sua paixão para o que seria simplesmente a observação fria do esporte e o apontar de virtudes e defeitos; ele derramou sua prosa com uma habilidade sem igual, fazendo do espetáculo mais que isso; ele o fez literatura...Ninguém menos que Nelson Rodrigues...


Não falarei aqui do Nelson polêmico, do Suzana Flag das histórias que desnudam hipocrisias e pecados que os protagonistas delas sempre tentam esconder, mas que, mais cedo ou mais tarde, se revelam;  não vou falar aqui do Nelson achincalhado, vilipendiado como o "Tarado", o "destruidor da família", ou coisa que o valha...Ruy Castro, no seu excelente "NELSON RODRIGUES - O ANJO PORNOGRÁFICO", já discorre muitíssimo bem sobre o tema;
Falarei de outro Nelson, o do apaixonado por futebol, que trouxe uma verve nova ao texto esportivo, dando-lhe dimensão, intensidade e , acima de tudo, alma; tudo o que vemos dos modernos cronistas esportivos, desde osmarianas entonações, passando por grandiloquências lucianodovallescas até "galvãonices" nem sempre benquistas, devemos a esse grande escritor brasileiro chamado Nelson Rodrigues...Torcedor apaixonado do Fluminense, era de frequentar quase religiosamente os jogos, embora seus problemas frequentes de visão não o deixassem distinguir um time do outro, mas nem isso diminuía sua paixão e sua habilidade - marcou sua prosa futebolística cunhando expressões do tipo "complexo de vira-lata", frase que foi o símbolo da derrota brasileira em 1950 (confesso que sonhei com uma final Brasil x Uruguai nessa última copa, mas, seteaumescamente falando, melhor não lembrar). Junto com seu irmão Mário Filho, consumado editor - devemos a ele o vetusto porém dinâmico "JORNAL DOS SPORTS", ainda no seu clássico papel róseo - agitou a cena esportiva da época; mas deixemos que ele mesmo dê o seu recado, no livro (link abaixo) "A Pátria de Chuteiras", em outra de suas expressões lapidares...Mesmo sendo um tricolor apaixonado, sabia reconhecer a igual paixão de outros torcedores, como estas palavras sobre os rubro-negros, tradicionais rivais dos tricolores...






http://www.ediouro.com.br/lancamentosdenelsonrodrigues/livros/ImagePatriaDeChuteiras%20em%20Baixa.pdf



segunda-feira, 7 de julho de 2014

CRÔNICAS DA CASA ALTA 8 - UM CONTO



Ele esperava já com uma inquietação sem limites. Faltavam cinco minutos para o filme começar e ele já estava com os ingressos na mão, olhando de um lado para o outro da rua. Será que ela não viria? Já fora muito vencer a timidez para fazer a ela o convite , depois de um tempo de ensaios na frente do espelho; já fora igual desafio vencer as troças da irmã mais nova, vendo-o indeciso entre qual camisa ou qual gravata usar, o terno ou o sapato certo. Esperava, e esperava...
Lembrou-se então de quando a conhecera, quando foi comprar uma gravata nova na loja A Exposição, para usar no casamento de um amigo;  tinha aproveitado a hora do almoço, pois estava atulhado de serviço no Ministério da Viação, no qual recentemente tomara posse como servidor; o amigo era um dos mais antigos, o único dos de infância com quem ainda mantinha contato. Os outros ou tinham saído da cidade ou tinham suas vidas tão ocupadas que não havia tempo para um contato mais próximo.
Então, ela. 
Ele prestou primeiro atenção nos cabelos castanho-escuros arrumados num coque elegante, que emolduravam um rosto levemente ovalado, de olhos verdes vivos e um sorriso leve, que o fez corar. Ela igualmente corou, baixando o rosto, como que não querendo retribuir o olhar; o tempo pareceu parar entre os dois...
Compra feita, voltou para o trabalho, mas saiu da loja não mais o mesmo...e nem ela...
Depois foram as passadas pela loja sob as mais variadas desculpas, os "encontros casuais", no fim do expediente, até que trocaram as primeiras palavras, a conversa fluindo dia após dia, até que , reunindo toda a coragem que tinha, a convidou para ir ao cinema, na sessão soirée do Éden; antevendo a negativa, surpreendeu-se com a resposta sorridente.
- Por que não? Não tenho nada programado para essse fim de semana.
Não era a resposta que ele esperava. Sentiu-se um tanto constrangido, achando que ela só aceitara porque nada melhor havia pra fazer. Mal ele sabia que a resposta tinha sido porque não havia outra melhor; ela ansiava por isso, mas não queria mostrar-se "oferecida", lembrando-se dos conselhos da tia Arminda, que dizia que "moça de familia espera o homem fazer o convite e mesmo assim, demora pra dizer sim"...
A exasperação terminou quando ele a divisou virando a esquina, o tailleur azul delineando as formas, num passo calmo, não parecendo estar atrasada. A ansiedade nele desapareceu quando ela chegou; ele a beijou no rosto, avisando que faltava pouco para o filme começar. Tomando-a pela mão, acompanharam o lanterninha até os lugares do andar superior; o filme já estava nos créditos...
Assistiram a fita sem piscar, as cenas da história de amor tocando-os e fazendo se darem as mãos, ficando assim até que ele, numa inciativa, beijou-a ternamente nos lábios...Ela não resistiu; deixou-se levar, o beijo ficando mais intenso, até que se sentiram como se nada mais houvesse...
Saíram enlevados da sessão, de braços dados,  num andar sem pressa; já um pouco longe do cinema, ela percebeu que faltava o brinco da orelha esquerda; era um brinco de pérola que fora presente da Tia Arminda quando ela completara quinze anos, do qual tinha muita estima, Eles voltaram e encontraram o cinema quase fechando,mas ainda conseguiram falar com o lanterninha, pedindo que desse uma vasculhada nos bancos pra ver se não o encontrava. Depois de procurar por todas as partes, mesmo na platéia baixa do cinema, não encontrou o brinco. "Talvez tenham encontrado e levado", finalizou, sentido.
Ela sabia que Tia Arminda ia ficar chateada, mas, o que se há de fazer? Ele a tomou nos braços e ficaram por um tempo em silêncio, contemplando a luz dos postes da Rua Grande. Ela virou-se para ele e o fitou , ainda assim, contente.
- Perdi um brinco, mas encontrei um tesouro em você - disse, com um sorriso que o encantou.
- Então ambos encontramos. - ele respondeu ao sorriso com um beijo.
A vida foi seguindo, os dois cada vez mais juntos. Veio o casamento, a progressão da carreira dele, a aprovação dela como professora primária. Os filhos crescendo,  cada qual seguindo suas vidas; mesmo assim, o cinema jamais deixou de fazer parte, em todas as soirées de fim de semana, ou mesmo nas tardes, sempre um algo mais a ver, a sentir. Então vieram os netos, alegrando ainda mais um lar sempre feliz, até que a doença a levou, tão de repente que ele não teve nem tempo de chorar, se despedir...Chorou depois, na falta dela, a mão segurando o brinco, do qual jamais encontrara o outro par...Agora era a solidão, apenas quebrada pelos netos, que o alegravam e faziam-no ainda viver...
Os olhos marejaram com o que ele via. O simbolo de todo um passado, de toda uma história de vida, dele e dela, agora virava um amontoado de poeira e entulho. Era o fim de um tempo, O dono morrera e os herdeiros venderam o cinema a uma cadeia de lojas; a fachada fora preservada, mas todo o interior estava sendo demolido. Caixilhos das janelas, restos de vitrais, ventiladores estropiados jaziam em montes no interior do cinema, outros tantos objetos em caçambas de entulho. Ele entrou,  o lenço no nariz pra evitar o excesso de poeira; reconhecia cada parte daqueles escombros como se fosse alguém morto, ao qual se negara uma sepultura digna.
De repente, junto a um monte de bancos quebrados , pareceu ver algo que brlhava; afastou os pedaços de uma fileira deles, retirando os pedaços de madeira e reboco espalhados no chão. Quando conseguiu remover tudo, ele não conseguia crer no que seus olhos viam: diante dele, depois de tanto tempo, o brinco perdido!!! Nunca o conseguiriam achar , pois, ao cair, ele encaixara no ressalto de um dos bancos, ficando escondido todo esse tempo. Apenas quando os bacos foram removidos ele tinha se soltado, ficando ali sujo de poeira; ele limpou-o com o lenço, beijou-o e guardou-o no bolso. Um encarregado que passava viu-o e perguntou o que fazia ali.
- Só levando uma lembrança do velho cinema, meu filho - disse, com um pedaço do ladrilho na mão - Vivi momentos muito felizes aqui.
O encarregado olhou para ele com um ar de estranheza, como se o achasse louco; saiu dali com pressa, com ar compngido. Tomou um táxi para o Cemitério do Gavião e, lá chegando, dirigiu-se à sepultura dela, trocando as flores e depositando o par de brincos junto com o buquê. Olhou para a foto dela na lápide, o mesmo sorriso que o encantara há tantos anos. Apenas a fitou e disse, com ar de alívio, como se tirasse o peso dos anos das costas; "eu encontrei, meu amor, eu encontrei". Uma leve brisa soprou e só então ele reparou que já era fim de tarde, o sol se pondo num vermelho intenso. Tomou outro táxi e voltou pra casa, pela primeira vez, sem tristeza no semblante, sem pesar. Ao dormir, sonhou que era o mesmo rapaz de antes, a esperá-la na porta do cinema; ao vê-la chegar, abraçou-a, beijou-a e, sem que ela pudesse dizer palavra, pôs nas mãos dela o par de brincos tão amados...

sexta-feira, 4 de julho de 2014

RESENHAS E AUTORES - VISÃO DE UM MARANHENSE SOBRE A ARTE DO BRASIL



Quero, em primeiríssimo momento, brindar à sua presença como leitor e apresentar uma série especial de "resenhas", não de livros, mas de artistas (e seus interiores); não a leitura de linhas - embora eu apresente alguns excertos -  mas uma viagem ao coração e à alma destes, sejam escritores, pintores ou de outras estirpes da arte; coração e alma, as verdadeiras fontes da genialidade...
Comecemos então...
Vendo os jogos do Brasil na Copa e o futebol sendo a moda do momento, nada melhor do que começar essa resenha sobre um autor pouco lembrado em nosso tempo que, no limiar do século passado, já antevia o futebol como um esporte que cedo conquistaria terreno nos corações do povo, podendo falar disso mesmo em razões de sangue, porque dois dos seus filhos foram intimamente ligados com o futebol, fazendo-o experimentar "a dor e a delícia" , como tão bem o disse Caetano...


Falemos então do tão injustamente esquecido Henrique Maximiano Coelho Netto. O "Príncipe dos Prosadores Brasileiros" era um grande entusiasta do futebol quando o esporte ainda nem era chamado assim (era chamado "ludopédio", um nome pedante demais que nem os ingleses falavam), sentindo o potencial desse esporte de agitar as massas. Seus filhos, Emmanuel ("Mano") e João ("Preguinho"), se deram de corpo e alma a ele, a ponto de um deles, Emmanuel, morrer numa partida, quando uma bolada no abdomen lhe rompe o peritônio; mesmo na dor, a pena corre pra fazer nascer MANO, um livro de crônicas da vida desse filho tão querido, fluminense de coração, jogador de rara habilidade. O livro é mais; é a pena elegante de Coelho Netto a descrever a dor da morte e da saudade;

"...A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era contínuo. Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:
“Se eu dormisse uma hora!”
O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam - tantas noites despertos! - só não lhe chegava, a ele.
Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.
De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.
Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.
“Se eu dormisse uma hora...!” arquejava, cansado, o pobrezinho.
O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.
Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras tristes:
“Se eu dormisse uma hora...!”
E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!..."

Seu outro filho, João Coelho Netto, igualmente atleta magistral, teve a honra de ser o primeiro brasileiro a fazer um gol na história das copas, na Copa de 1930. Preguinho, como era chamado, mesmo depois da profissionalização do esporte recusou-se a receber qualquer incentivo financeiro por parte do clube, dizendo que jogava "por amor ao Fluminense e era o que o fazia ir em frente com o esporte". Priscos e tão saudosos tempos...
Gol de Preguinho (à direita) contra a Iugoslávia na Copa de 1930 (Fonte: Wikipedia)

Injustamente tornado em saco de pancadas dos modernistas, Coelho Netto foi em muitos aspectos mais modernista que estes, que encapsularam sua Semana de Arte Moderna sem sequer se identificarem com os ventos que agitavam o país nesse tempo. Muito mais antenado e centrado que os últimos, foi em defesa do movimento tenentista, que buscava  reformas políticas profundas no país, especialmente contra o sistema viciado da "política do Café com Leite", escrevendo mesmo um ensaio em defesa dos 18 do Forte, episódio que os "Modernistas de 22" passaram em brancas nuvens. O ensaísta e crítico Franklin de Oliveira , no seu texto "A Semana de Arte Moderna na Contramão da História" o redime.  Um autor que precisa ser mais e mais conhecido, neste Brasil de memória tão curta sobre sua própria glória...

Aguardem para a próxima: Nelson Rodrigues e a verve futebolística...

sábado, 28 de junho de 2014

EU SEI POR QUÊ E VOCÊ TAMBÉM


"O salão estava apinhado. A orquestra de Harry James caprichava nos acordes e os casais dançavam absortos; apenas ele permanecia na mesa, pensativo; já decorara todos os detalhes da missão e revisava tudo a cada momento, procurando não esquecer de cada detalhe que tinha sido passado pelo coronel Sink. Seu batalhão iria liderar o salto na França, logo atrás dos Pathfinders, que marcariam as zonas de salto. Tudo estava azeitado e sincronizado como um relógio...

Procurou prestar atenção na orquestra, que agora apresentava a canção "I've Heard That Song Before" e ele reconheceu prontamente a bela voz de Helen Forrest, a sensacional vocalista da banda.


Isso relaxou-o um pouco e ele batia os pés no ritmo da canção. Era uma das prediletas dele e o fazia lembrar de dias felizes em Manhattan, em tempos diferentes; virou-se para ver melhor e esbarrou com uma oficial do corpo auxiliar do exército, quase derrubando o coquetel que ela carregava.
- Parece que estamos um pouco nervosos aqui, não, major...? - Riu, o sorriso iluminando o rosto emoldurado por um cabelo cortado curto, em um estilo elegante.
- Thomas Woods, 2o. Batalhão, 506 Regimento de Paraquedistas, 101a Divisão.
- Ora, ora, ora, um paraquedista! - Sorriu novamente, de um jeito descontraído - Bem, falemos de igual para igual então. Major Leslie Maxine Firebrand, corpo auxiliar.
Ele apertou a mão dela cerimoniosamente, um tanto tímido talvez. Ainda carregava as cicatrizes do divórcio feito há um ano, quando comunicou à mulher , Carol, que se alistaria nos paraquedistas; isso gerou um conflito que acabou na separação e no consequente divórcio, que só não foi mais traumático porque não tinham tido filhos
- Muito prazer , Major Firebrand - respondeu, um tanto sem jeito - espero que esteja apreciando a festa.
- Bem, major Woods, se prefere ser chamado assim, eu esperava alguém, mas acho que não vir deve ter sido a maneira dele dizer que não íamos muito longe; prefiro que me chame de Leslie.
- Tudo bem se não se incomodar em me chamar de Thom. Aceita um coquetel? Preciso compensar o que quase derrubei - disse, num sorriso mais descontraído.
- Aceito sim; um Manhattan, se não se importar. Gosto de coquetéis fortes.
- Sem problemas. Eu a acompanho.
Ele foi até o bar e trouxe os coquetéis, a conversa fluindo mais espontânea. Era a primeira vez que tinha companhia feminina em muito tempo desde o divórcio. Evitava os casos com as enfermeiras da base, pois ainda não se sentia seguro pra engrenar nenhum relacionamento com ninguém. Mas ela era diferente; bem articulada, ainda com um sotaque da Virgínia que a fazia ainda mais atraente; de repente a orquestra começou "It's been a long, long time", com a inconfundível voz de Helen Forrest.
Sem que os dois sequer mencionassem palavra , um seguiu o outro para o salão, onde começaram a dançar. Sem palavras, ficaram mais próximos, se deixando levar pela canção, esquecendo, mesmo que por um instante, que era no meio de uma guerra que a música soava...
Amaram-se da mesma forma espontânea como se conheceram, parecendo saber um do outro como se há anos se vissem; ele quis dizer algo, mas ela levou os dedos aos lábios dele, não o deixando falar.
- Não diga nada e não prometa nada; apenas retorne, apenas isso. Eu estarei esperando as notícias que vierem...
O rádio tocava "I know why and so do you", com a orquestra de Glenn Miller, quando ele saiu do hotel de volta à base...


Agora, o som que ele ouvia era o do ronco dos motores do C-47 que transportava o estado maior do batalhão. Mesmo nesse momento, ele ainda pensava nela, em cada parte, em cada sorriso, em cada volta no salão de dança...
O ronco dos motores se misturava agora ao pipocar dos disparos da artilharia antiaérea, que indicava que eles haviam chegado ao objetivo. Agora, era apenas questão de minutos...Era dia 6 de junho de 1944...
A luz verde se acendera. Hora de saltar...

sábado, 21 de junho de 2014

MOMENTO DO DIA


De repente, os acordes de "AS TIME GOES BY", invadem o escritório e eu não resisto; te convido pra dançar e me deixo levar pro Rick's, em Casablanca, onde não importa que alemães e aliados se digladiem, eu só tenho olhos pra ti, Leonor, pois és minha Ilsa...
ITVBA ETAVC

CONSTRUINDO UMA NOVA ROTINA


Tempo de novos ares, de novas perspectivas, de vontades e anseios inopinos, de simplesmente querer levantar no diferente, tomar o contrário, ou, como diria um tio meu por quem tenho muito apreço, "ir de revés contra a bolina".
Vivi anos uma inquietação que não apenas me turvou o sono, mas simplesmente me colocou em diversas situações em que, ao pensar que ela acabava, ela simplesmente recrudescia...
Hoje, meu sono me traz de volta os dias, as horas, os minutos e os segundos que eu achava que jamais aproveitaria; é tempo de viver novo momento, mas, desta vez, não efêmero, e sim, duradouro, não apenas no aspecto pessoal , mas no profissional idem;
Não pensem muitos que, ao viver esse novo momento, esqueci ou desmereço tudo o que vivi anteriormente; muito aprendi, muito carrego de outras etapas, sem carregar contudo, rancores ou ressentimentos. Guardo tudo como tesouros incalculáveis, preciosas dádivas da vida, onde tudo, mais que aprendizado, é soma. Todos os dias, penso no que vivi e minhas preces são, exatamente, para que a vivência traga mais sabedoria, mais equilíbrio, mais maturidade, não somente para mim, mas para todos os que caminharam comigo em todos esses passos, pois quem apenas vê em si o que espera da vida, jamais será merecedor de sabedoria...
Novo sentimento, nova cumplicidade, onde mesmo a menor de minhas palavras parece a maior das carícias...Onde uma imagem de cabelos prateados se materializa aos meus versos....Como chamá-la? Poderia dizer felicidade, mas eu , no meu coração emotivo, prefiro chamá-la Leonor...Como Dirceu, que quando Amor pediu que grafasse seu nome em uma árvore, ele escreveu Marília; Amor, então, aquietando Dirceu, simplesmente verseja;

"Não chores, Dirceu,
Não mudes de cor;

Neste doce nome
Escreveste Amor"


domingo, 15 de junho de 2014

Grande Voz , Enorme Descoberta

Dizem que as descobertas mais interessantes são aquelas que a gente não espera, que vêm no chofre, no instante, no inopino de algo que a gente sequer imagina; os sentidos são aguçados, a vontade de querer mais se faz forte, se quer deixar levar, se deixando sonhar, acarinhar.... Assim é o CD "Pra Você", da grande Jô Holtz, onde viagem é pouco pra se falar desse trabalho; ouvi-o durante um domingo dividido entre os afazeres de casa e os planos da rua, e, onde estivesse ou como estivesse, todos os meus instintos se aguçaram, cada um deles tocado pela intensidade da voz da Jô. Com uma verve que vai da bossa gostosa ("Que Tal Heim"?) ao blues rascante ("Assim Como Você Fez"), indo ao grito de um amor que luta pra viver contra o mundo, numa marcha rancho magistral (As Veias de Uma Mulher) pelo samba canção e pelo samba de roda, é uma declaração de amor à musica e à vida, numa paixão que só Jo Holtz pode nos proporcionar com seu jeito mais do que encantador. Meu domingo ficou melhor com ela.

segunda-feira, 5 de maio de 2014

UMA ESTRANHA CONTRADIÇÃO

Nesses últimos tempos de ecoapologia, onde as verdades inconvenientes surgem, pra alerta de uns e desconforto de outros, a palavra “biodiversidade” tem sido mais que repetida: foi praticamente cunhada no nosso vocabulário para, acima de qualquer outra, justificar toda ação que reverta em qualquer tipo de impacto, para o bem ou para o mal, em nosso meio ambiente. Surgem a toda hora os chamados “paladinos da biodiversidade”, que mesmo a vida sacrificam pela manutenção de nosso amado ecossistema… Mas, em minhas andanças, observações e leituras tenho visto uma, essa sim, inconveniente contradição: os mesmos seres humanos tão preocupados em salvar o ecossistema querem, por força de influência, marketing ou mesmo o odiado bullying, reduzir a raça humana à uma tipologia monocórdica e “igual”, onde a consistência é trocada por uma “aparência” desconsistente, superficial e mesmo agressivamente cruel com quem ousa ser diferente. Passamos a ter vergonha da diversidade humana, raiva do que não é igual; viramos narcisos frustrados que, ao não acharmos espelhos nos quais possamos nos mirar, acabamos por querer destruir o que não nos faça reflexo; ou seja, viramos perseguidores de um ideal monocromático desestimulante e sem sentindo. O universo em que vivemos maldosamente prega uma imagem de respeito às diferenças, mas o que vemos é, na verdade, uma cruel agressão contra tudo o que transgrida o “ser ideal”, seja por causa de tipo físico, orientação sexual, opinião ou mesmo simplesmente o fato de existir sem traumas ou sequer complexos; nos vingamos de nossa infelicidade perseguindo quem é feliz; nos preocupamos – que me desculpem os ecologistas se de alguma forma eu os atinjo – em demasia com o “meio ambiente” e seus valores que nos esquecemos de cultivar a essência dos valores humanos. Daí nascem o preconceito, a omissão ante os problemas sociais, o completo desprezo e a desvalorização da vida humana. A vida humana tem menos valor, se pensarmos bem, que a de um mico-leão dourado ou mesmo quaisquer outros animais ameaçados de extinção; na verdade, a grande extinção que já se processa não é a de nenhuma dessas espécies, mas a da espécie humana enquanto tal; nos tornamos cada vez mais autômatos, escravos de valores que, longe de nos fazer mais humanos, nos maquinizam – e escravizam – cada vez mais. Ao exercitar a memória, me lembrei de uma campanha de certa entidade assistencial que, para despertar a consciência das pessoas para o descaso das crianças abandonadas, sem nenhuma perspectiva de progresso e de futuro, identificou cada uma delas com uma espécie em extinção; encarando o olhar carente dessas crianças, nos deparamos no final do anúncio com a frase muito apropriada, que me marcou muito desde então: "GENTE TAMBÉM É BICHO; PRESERVE"

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Crônicas da Casa Alta 7 - Tempos de Aprendizado

Falei de tempos, de gostos, de sons, eu sempre atento a registrar tudo, memórias que são mais que isso: são o revelar de uma alma que sempre foi curiosa, inquieta e intensa em todas as suas coisas, que gostava de buscar tudo em todas as coisas que lhe caíam nas mãos. Era meu começo de aprendizado...Falemos então, dessas memórias... Minha mãe, sendo professora, alfabetizou-me em casa; ela viu o meu interesse pelos livros e logo passou a me introduzir às cartilhas e abecedários, com especial atenção para a caligrafia; minha mãe sempre teve - e ainda tem - uma caligrafia esmerada, aprendida com um amanuense que era amigo da família; assim ela passou igualmente esse conhecimento a mim, de modo que muita gente acha a minha maneira de escrever um tanto rebuscada, dizem alguns, mas tudo bem... Meu primeiro livro foi um livro de Julio Verne, chamado "Miguel Strogoff, o Correio do Czar", que falava das aventuras de um correio especial a serviço do czar, que recebe uma missão especial para tentar deter a rebelião que ameaçava destronar o monarca russo; li-o com tanta avidez - até demais para um menino de quatro anos - que eu pegava a lanterna e lia o livro debaixo da coberta da cama pra não acordar ninguém com a luminosidade. A paixão pela leitura - e igualmente por Julio Verne - não parou mais... Mas era chegado o tempo de enfrentar a prova de seleção para as escolas, e minha mãe optou pelo Marista, escola muito tradicional na cidade, famosa por ser a que mais tinha alunos bem colocados em faculdades e universidades Brasil afora - na minha cidade só havia a Universidade Federal - UFMA e a estadual - UEMA. Feita a escolha, no dia da prova de seleção fui, compenetrado, pra sala de testes, recebi a folha mimeografada com as questões - a prova ainda estava cheirando a álcool - e me entreguei ao teste. Somente dois dias depois é que minha mãe recebeu a notícia de que eu tinha sido aprovado e, pelas minhas notas - fui o segundo melhor colocado - tinha ganho o direito à bolsa. Começava aí minha história com o Colégio Marista
Meu primeiro dia foi de susto - eu era o menor da minha turma - mas essa impressão foi logo desfeita pelas primeiras amizades que fiz - Cláudio e Luiza, dois gêmeos que foram os meus primeiros amigos; depois os outros foram pouco a pouco se aproximando: César, o maior da turma, que era uma pessoa de coração de ouro; Antonio Pecegueiro, que já desde esse tempo era uma pessoa observadora e cheia de ideias para o futuro; Rogério e Lenka, dois irmãos que eram muitíssimo inteligentes e que se tornaram meus grandes companheiros de conversa. Assim se passaram os meus primeiros dias... Um lugar logo me tomou de assalto: a biblioteca da escola, uma das mais bem equipadas da cidade, rivalizando mesmo com a Biblioteca Pública do Estado, nela passava as minhas horas livres e alguns recreios, mas não pensem que eu era somente rato de biblioteca: sempre tempo tinha para as brincadeiras, embora o sempre atento irmão Jorge procurava impor um certo limite. Tenho ainda fortes lembranças dele, sempre andando pelos corredores, pra ver se os alunos se portavam, mesmo na saída para o recreio... Outra lembrança forte era a da cantina, onde seu Elias, um simpático libanês de sobrancelhas de taturana e espírito bonachão, tentava organizar a fila, ajudado na maior parte das vezes pela esposa, dona Vilma e pela filha Jacqueline , que idem estudava lá. Em todo o meu tempo de escola, jamais os vi sequer ter uma discussão; era uma família unida As professoras eram todas muito dedicadas e diligentes, mas três foram marcantes: Profa. Paula, minha primeira professora; Profa. Margarida, que ajudou , acima de tudo, a aprimorar meu interesse pela leitura e me fez ficar mais encantado ainda pelo francês, que eu aprendera na infância; e, finalmente, A Profa. Isabel, de Ed. Musical, que me abriu as portas de um novo e maravilhoso mundo, o da música erudita - eu já conhecida o jazz por causa de meu avô - e simplesmente me embeveceu os sonhos... A vida escolar me abriu os horizontes e me deu mais confiança pra muitas coisas, especialmente para reparar melhor o mundo que me cercava, a ponto de arriscar muitas coisas novas; um dia, minha mãe demorou muito a me buscar por causa de um problema no escritório,e, quando me dei conta de que passava do horário, assumi o risco de voltar pra casa sozinho; falei isso para a inspetora com tanta convicção que ela me deixou ir; quando eu cheguei em casa sem minha mãe, Maria do Carmo e minha avó tiveram um susto tal que ainda hoje lembro da expressão delas, embasbacadas com o meu feito; eu havia decorado todo o caminho da escola pra casa...

Crônicas da Casa Alta 6

Incrível como basta uma pequena memória para desencadear o caudal de recordações e episódios tão adormecidos em sua mente, sem sequer um aviso ou mesmo o menor laivo de pressentimento; eles simplesmente vêm, como uma pequena torrente no inicio, mas depois um pujante e poderoso afluente de lembranças... Eu falava antes dos paladares, dos gostos, dos sabores, que simplesmente se aderem aos nossos pensamentos como marcas indeléveis; agora, porem, falarei dos sons, dos barulhos, que, longe de ser incômodo que muitos adoram alardear, eram, na minha mente e no meu coração de criança, linguagens que eu procurava traduzir, para compreender o mundo ao me redor... O dia começava com a sineta do leiteiro, que batia de porta em porta pra vender o seu leite fresquinho; eu, que acordava primeiro, era que o via se aproximar no começo da rua e dava já o aviso pra minha avó que me dava o dinheiro pra pagá-lo e levar os vasilhames vazios, que eram trocados pro vasilhames cheios de leite fresquinho, que era fervido e servido no cafe da manhã; depois eram os sons dos pregoeiros que passavam vendendo as mais variadas coisas, desde carvão - que minha avó comprava para preparar a torta de camarão, concorridíssimo prato de almoço - até objetos feitos com latas de óleo, que iam desde lamparinas até plataformas de cozinhar arroz - que se colocavam no bico do fogão pra retardar o cozimento e evitar que o arroz queimasse; o som que eu mais amava, porém, era o do sorveteiro que vendia ou sorvete de coco ou o misto com bacuri, que eu amava de montão - olha aí o paladar entrando de novo na história...Daí os sons que vinham eram os da algazarra na escola, até por volta das cinco da tarde, quando eu voltava pra casa, de mãos dadas ou com minha mãe ou com Maria do Carmo; daí, então, se seguiam os do burburinho das conversas de minha mãe, minhas tias e minha avó e meu avô; então, já era hora de ir pra cama, e começar mais um dia...

Crônicas da Casa Alta 5

Caros Já que falamos de lembranças e sentidos e ainda estamos no paladar, deixem que eu fale de uma outro sabor, inconfundível e profundamente especial das minhas lembranças: falo da MANTEIGA REAL, que fez parte da minha infância e reforçou o maravilhoso sabor não apenas meu café da manhã, mas tantos outros pratos, doces e salgados, que margearam essa fase de minha vida; lembro da lata de cor peculiar e sabor sui generis, elogiados por todos os que tiveram a oportunidade de provar da iguaria que era e das demais outras que forma preparadas com ela; basta dizer que o bolo de tapioca já citado não era o mesmo sem ela, o pão massa grossa no café da manhã ficava sem alma, o manuê de milho ficava chocho e sem gosto, e mesmo aquele ovo frito ou mesmo o mais simples bife ganhava personalidade e glamour quando preparado com a tão gostosa manteiga Real... Assim era meu universo de sentidos no tocante a sabores..Há muito mais que farei todos os que lerem saber...Devagarzinho as lembranças se abrem, se descortinam, se descerram...Mais e mais as memórias da Casa Alta se fazem vivas... Um Grande Carinho

quarta-feira, 30 de abril de 2014

Crônicas da Casa Alta 4

Já havia falado das memórias de minha infância, especialmente as do paladar; bem, conforme vão aparecendo algumas vão tomando forma de receitas outras apenas do registro dos sabores; como eu falei do bolo de tapioca, aqui vai a receita dele: Bata no liquidificador uma xícara de leite, ½ xícara de óleo, 4 ovos, três xícaras de farinha de goma (ou polvilho/fécula de mandioca/tapioca), um pires (ou um pacotinho) de queijo ralado, sal a gosto (cuidado porque o queijo de pacote já é muito salgado). Depois de bater por uns 5 a 8 minutos, põe numa forma de buraco no meio, levemente untada com óleo. Forno por uns 30 a 40 minutos.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Crônicas da Casa Alta 3

É sempre assim: quando puxamos da memória as coisas elas ou podem vir como um gotejar ou como um caudal sem precedentes; no meu caso, agora, elas vêm como uma correnteza sem doma, onde no máximo posso fazer as vezes de guia pra que elas não se dispersem; bem, as que me chegam agora têm a ver com um momento bem especial; quando uma de minhas tias, a tia Balbina - carinhosamente chamada de Netinha - dirigiu pela primeira vez. Ela namorava um rapaz bem apessoado chamado Aníbal Faria, filho de portugueses, cuja família era dona de um grande armazém/casa comercial chamado Casa Faria, que dava pra ser visto do terraço de casa. Um dia, ele chegou e chamou minha tia pra baixo e, assim que ela desceu, ele mostrou a ela o DKW e a convidou pra dar uma volta; eu , curioso como era, desci junto e fiquei olhando comprido, até que ela me chamou pra ir junto; entrei mesmo estando de bermuda e chinelos eme juntei ao que, pra mim, era uma aventura. No final, ela se saiu muito bem e algumas vezes ela dirigia e ele ficava como passageiro, e eu mesmo outras vezes repeti essa mesma aventura. Ainda na memória o som do motor dois tempos e a fumaceira que ele fazia, mas era um carro que eu achava particularmente bonito...

Crônicas da Casa alta 2

Uma das lembranças da Casa Alta que mais me é marcante é a do café da manhã - tinha o aroma do pão massa grossa comprado por Maria do Carmo na Padaria Cerejeira, logo no começo da manhã; o leite, já trazido da porta de casa e fervido, fumegava na mesa que ficava perto da entrada, bem no fim da escadaria; ainda tenho na memória a manteiga derretendo sobre o pão quente, que já me esperava antes de ir pra escola; havia ainda o o bolo de tapioca que vinha das mãos de minha avó e de Maria do Carmo, assado caprichosamente e devorado com café bem quentinho... Mais importante, era uma festa quando minhas tias chegavam e se congraçavam com a casa; tinha uma visão privilegida das coisas especialmente no carnaval, onde eu via do alto, as brincadeiras do povo...

Cronicas da Casa Alta

Um dia/ Voltei à casa onde vivi minha meninice/ A casa alta da Antônio Rayol/ Onde ainda ouço os ecos de família/ Mas a casa, antes grande,/ Tão pequena me pareceu!/ Percorri os quartos como se percorresse continentes;/ Não anseio pela grande metrópole/ Mas sei que por ela um dia passarei/ Até que chegue ao que sonho/ A cidade pequena ainda plena de silêncios/ Pequena como a casa minha meninice O terraço onde achava que em criança parecia ser os confins do mundo, onde via minha mãe vindo do trabalho e minhas tias , onde me debruçava sem medo e via onde minha vista alcançava...Onde minha avó cultivava jardins de antúrios e espadas-de-são-jorge com cascas de ovos nas pontas.. nas manhãs, o pão massa grossa com manteiga real cujo gosto ainda me aguça a memória...Pão que vinha da Padaria Cerejeira, onde numa das paredes havia um desenho de um homem com roupa de cozinheiro segurando uma bandeja com pães e um balão com a frase "O PÃO É O ELEMENTO BÁSICO DA ALIMENTAÇÃO DE TODOS OS POVOS"...Jamais me esqueci