segunda-feira, 27 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE IV


Eliza pousou as cartas na cama cuidadosamente; não queria que elas de desfizessem por serem mal manuseadas; mas a leitura deu mais uma pista de Antônio Ribeira que começou a intrigá-la; mas queria dedicar-se a essas divagações com calma; precisava contatar a equipe e mais do que nunca inteirar-se do que se passava no escritório. 



Chegou como de costume, recebendo a agenda do dia das mãos de Eunice, a prestativa secretária; tinha duas reuniões, uma às 14 horas e outra às 17; antes disso passou a vista no briefing geral de atividades e chamou a equipe para uma conversa informal sobre os projetos em andamento; todos estavam lá, curiosos para saber do projeto em Belém; ela respondeu laconicamente, dizendo apenas que “o negócio não foi em frente”; foi quando notou, sentado ao lado de Marcela, a estagiária, um rosto novo: cabelos grisalhos curtos, olhos negros, óculos de aro dourado encimados por sobrancelhas retas; segurava a caneta displicentemente na mão direita, tamborilando levemente.
- Eliza, esse é Walter, nosso novo relações públicas, você o tinha aprovado há alguns meses atrás – apresentou-o Marcela – você tinha dito que a entrevista não era necessária porque você confiava no currículo dele.
- Eu lembro bem; muito obrigado, Marcela. Seja então bem-vindo, Walter; espero que tenha sucesso em seu trabalho; mas vamos pôr as coisas em dia, não? – disse, num sorriso.

Walter assentiu com a cabeça e juntou-se à conversa.

Ela estava satisfeita com os resultados do grupo. Na ausência dela vários bons negócios tinham sido fechados, o que era muito positivo e consolidava ainda mais a imagem do escritório como um dos mais bem-cotados do mercado; vária s vezes foi sondada para adquirir capital acionário, mas polidamente declinara, preferindo investimentos mais sólidos e menos arriscados.

Saiu do escritório por volta das oito e meia da noite; jantou no lugar de costume, com o garçom levando -a para a mesa favorita, no canto do restaurante onde ela pudesse ver o movimento de vai e vem dos clientes; sentir o movimento dos lugares a relaxava, antes de voltar para casa. Demorou-se um pouco mais, saboreando lentamente a torta de trufas que tinha vindo de sobremesa; levantou os olhos para ver o movimento e deu de cara com o novo relações públicas, que entrara devagar e escolhera uma das mesas perto da porta. Notou a economia de gestos ao chamar o garçom e fazer o pedido, ao mesmo tempo que, ao notar a presença dela, acenou; Eliza respondeu ao aceno ao mesmo tempo em que pedia a conta; tinha pressa em chegar em casa e ler o restante das cartas que ainda repousavam na cama; acenou novamente ao passar pela mesa onde Walter estava, chamando o manobrista para trazer o carro; uma vez nele, saiu devagar e tomou o caminho de volta para casa.


Os sapatos já estavam nas mãos dela quando girou a fechadura, entrou em casa, deixou o blazer sobre o sofá e sentou para relaxar; respirou fundo e deixou-se levar pelo conforto, espreguiçando-se devagar e deixando os pensamentos a conduzirem; de repente, se viu relembrando o momento em que Walter entrara no restaurante, os gestos contidos, o modo espontâneo de acenar; surpreendeu-se ao sentir aquilo, pois já há muito deixara de buscar atratividade em qualquer pessoa; quis conter os pensamentos, mas algo dentro dela fez com que deixasse o pensamento fluir...

Mas logo os olhos dela se voltaram para o quarto e para as cartas espalhadas na cama; deixou esse novo pensamento, ao menos por enquanto, de lado, e voltou a tenção pra elas; não as leria agora, elas esperariam mais um dia...

Buscou o sono, mas ele demorou a vir...

( Continua...)


domingo, 19 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE III



SÃO LUÍS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO, 22 de Maio de 1858

"Meu Irmão

Deito estas linhas por razão de falar-te apenas do ameno, sem razão especial; espero que esta não te encontre em contratempos nem em outra qualquer tribulação; sei que teus estudos são prioridade e que os reclamos e amuos de tua irmã podem não ser considerados, mas te escrevo mesmo assim, pois somente em ti posso confiar, mesmo distante de mim.

A cidade ainda está debaixo de chuva torrencial; parece que os céus estão desabando!! Sei que já devia estar acostumada ao aguaceiro desse tempo, mas não consigo; as águas sempre me pegam de inopino, me dando susto atrás de susto; ao contrário de todos, a canícula me conforta, o sol forte me dá um alento que aos outros não chega.

Aqui não há muitas novas; apenas o Manduca Zacarias, com quem ficaste de cizânia por causa dos olhares de Marília, cansou-se dela e agora me faz a corte; imagine que os galanteios dele se limitam a dizer-me quão segura será minha vida se der a ele a honra de esposá-lo; diz ele que basta que eu peça que todas as portas se abrem, que todos os meus desejos serão atendidos, pois logo ele sucederá o pai como chefe da Casa Aviadora e uma carreira de vereador se abre para ele; Imagine! Nem uma palavra cortês, nenhum poema inspirado! Apenas uma verborragia de cifras e vantagens! Escuto-o apenas para distrair-me, pois ninguém conseguiu ainda tocar-me o coração, quanto mais esse declamador de números!

Nosso pai está em viagem, desta vez resolvendo pendências na vila de Barra do Corda, devendo voltar em mais cinco dias; na ausência dele, eu tenho de dar conta dos recados e mensagens e todos os cantos, anotar tudo e organizar a caderneta de assentos, mantendo-a em ordem até que chegue;

Te desejando sorte e bons estudos
Deus te guarde
Beijo-te amorosamente nas faces
Tua Irmã
Amália"



RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 01 de junho de 1858

"Cara Irmã

Desculpe não te deitar linhas tão logo, mas os estudos aqui me consomem por demais e o tempo me é mais verdugo que amigo; eu fico triste por não poder escrever no tempo que gostaria, mas somente agora posso fazê-lo, já te pedindo mil perdões por te escrever com tanta pressa assim, mas te prometo uma carta com mais assunto da próxima vez;

Poderia bem dizer que o Manduca Zacarias merece a sova de cadeira que dás nele, mas, se me permites um conselho, deixe ele em paz; não mereces um sujeito que não te inspira, nem mesmo penas; tenho certeza de que alguém fará teu coração saltar; no momento não tenho tempo pra tais veleidades; os estudos são a única amante que tenho e tão cedo não sei se meu coração desperta...

Diga ao nosso pai que escreverei com mais presteza daqui a mais ou menos cinco dias; não tenho igualmente muito a contar, mas logo darei mais notícias

Beijo do teu Irmão

Júlio"



RECIFE, PROVÍNCIA DE PERNAMBUCO, 19 de Junho de 1858

"Caro Pai,

Espero que estas linhas o encontrem em paz e harmonia e que seus negócios em Barra do Corda tenho sido resolvidos a contento; aqui me divido entre os estudos e o observar da agitação politica na cidade, com os abolicionistas e republicanos gritando cada vez mais alto, e começando a incomodar o governo da província; colegas de curso inauguraram um clube abolicionista e queriam que eu me filiasse mas declinei, dizendo que não tinha estômago pra tais patuscadas; melhor seguir seu conselho e continuar meu caminho, mas é difícil ficar sem tomar partido por alguma coisa.

Pela primeira vez tenho um grande amigo por aqui; trata-se de Antônio Ribeira, vindo da província do Pará; de conversa boa e humor muito melhor, tenho-o ajudado a se adaptar às coisas aqui do Recife, mas vejo que não terei muita dificuldade, pois o mesmo não teve empecilhos em já aviar-se em tudo, dando conta bem rápido das coisas; pelo menos posso conversar sem ser troçado pelos outros por causa da minha neutralidade em relação aos republicanos e abolicionistas.

As notícias mais recentes que recebi vieram de Nestinho Menezes, cujo pai dirige um escritório comercial na capital da Provincia de São Pedro do rio Grande do Sul e possui estâncias de cria de gado e ovelhas na fronteira; as coisas não serenaram por lá depois de se guerrear uruguaios e argentinos; ele diz que continuam os ataques e roubos e que o exército imperial não tem nem efetivo nem moral pra lutar, a despeito do comandante de fronteira, general Osório, ser homem de escol e de grande coragem pessoal; a saída foi armar os peões e dar ordem de atirar sem misericórdia em qualquer um sem intenção declarada; assim estão as coisas nesse nosso país.

Espero que tudo esteja melhor por aí
Amor e Respeito
Sua Bênção
Seu filho
Júlio"


SÃO LUIS, PROVÍNCIA DO MARANHÃO, 27 de Junho de 1858

"Caro Filho

O litígio em Barra do Corda se resolveu bem, sem mais contingências ; é como sempre digo: uma conversa civilizada sempre leva as coisas a bom termo e sem consequência séria para nenhum dos lados; assim se constroem a civilidade e os bons costumes.

As coisas não andam bem aqui em São Luis; as eleições estão para breve, mas a violência e a intimidação de eleitores continuam sem freio e sem uma autoridade competente, pois os juízes estão todos nas mãos do Coronel Izidoro Jansen Pereira, comprados pela mãe dele, essa sim a dona do dinheiro e do poder; acreditas que um sobrinho dela veio até mim para dizer que o meu apoio seria um grande incentivo à minha carreira, possivelmente com uma nomeação de magistrado? Respondi-lhe polidamente que iria levar muito a sério e daria em tempo certo a minha decisão; pense no descaramento! Principalmente depois que o adversário político do Coronel, o grande Candido Mendes, foi atacado na saída do Teatro União, após a apresentação de um drama lírico de nosso amigo Gonçalves Dias, e brutalmente espancado até quase morrer? Não se fala em outra coisa na cidade. De resto, todos estão bem; sua irmã manda recomendações e beijos e está preocupada com você; eu, de minha parte, só posso te desejar sucesso e perseverança nos estudos e que tenhas bom juízo na condução dos mesmos evitando aventuras sem sentido e pandegarias.

Sem mais novas e te desejando sucesso e felicidades
Abraço Paternal e recomendações
Do Teu Pai
Aurélio"


(Continua...)

domingo, 12 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE II


SÃO LUIS, MARANHÃO, 12 Fevereiro de 1858

“Caro Irmão

Mal me contive com as novas; então foste aprovado nos exames para a Faculdade de Direito! Nosso pai vai ficar muito satisfeito quando ler a missiva que mandaste; ele ainda está no interior, resolvendo um litigio em Caxias; lembras do Martim Pescada? Pois é, ele se meteu em encrenca por causa daquela rixa com o Jonas Louzeiro e ao que parece tudo não terminou em coisa pior por causa da firmeza do nosso pai. Tomei a liberdade de responder antes mesmo de contar a ele.

Aqui as coisas vão no de sempre; lembras da Carmen, a filha do deputado Sobreira? Ela casou com o Davi Moura, teu colega no Liceu e vai de mudas para a Corte; ele é oficial de Marinha e vai assumir posto no ministério; conversei com ela uns dias atrás e ela está mais do que animada; é sempre bom quando as coisas andam do jeito que queremos, não é? Quem sempre anda a perguntar por ti é a Marília, filha do Comendador Almeida; ela veio me dizer que ficou com o coração partido ao ter-te decidido ir ao Recife para te preparares para a faculdade; irmão, que prometeste a ela? Espero que ela não tenha sido mais uma a cair na tua conversa de maganão.

Assim mesmo, fiquei contente com teu sucesso; vais longe, nosso pai sempre disse isso; espero igualmente que a faculdade e a tomada de rumo te tirem da cabeças as idéias malucas de república e abolição que andaste alardeando por aqui; deixe isso por aí e tome emenda! Deixe os malucos e os poetas darem caso disso.

Não tenho muito mais para falar, o dia está cinza e uma chuva vem por logo; espero de coração que os estudos te transformem num homem, e te livrem desses devaneios malucos; te dediques com afinco às tuas responsabilidades e vais conseguir tudo o que queres.

Sinceramente
Beijo-te a face
Tua irmã
Amália"



SÃO LUÍS, MARANHÃO, 16 de Março de 1858

“Júlio, Meu Filho

Não imaginas quão contente e orgulhoso fiquei ao saber das novas de tua aprovação! Tua irmã veio me contar assim que cheguei, mas o estafeta já tinha me entregue a tua carta e já começara um pouco a ler quando Amália me falou do assunto. Folgo em saber que já estás dando um rumo à tua vida; confesso que fiquei preocupado com as tuas diatribes há algum tempo; tua mãe – que Deus a tenha – ficaria aflita em saber que te envolveste com a sorte de lunáticos que apregoa aquelas ideias absurdas. Agora uma nova responsabilidade te espera, e rezo a Deus que saibas te desincumbir dela com galhardia e orgulhe nossa família.

As coisas aqui andam agitadas; a campanha está cada vez mais acirrada e mesmo violenta; os capoeiristas do coronel Izidoro, filho de Donana Jansen, ameaçam eleitores e impõem um terror que nunca tinha visto na província; o presidente, de mãos atadas, nada faz; viemos um caos sem precedente aqui; a disputa política tem mesmo separado famílias e amigos veem uns aos outros pelas costas; com dinheiro à larga, o coronel Izidoro praticamente manda na província.

Mas não escrevi para lamuriar nem para dizer-te coisas tristes; ao contrário, cheio de orgulho, estas linhas são para exortar-te a não te desviares de teu caminho por nada, nem mesmo por devaneios que podes achar certos, mas que, na verdade só levam a perder-te; cumpre teu caminho nos estudos e verás que podes ir muito longe.

Tua irmã manda igualmente lembranças e esperamos a tua vinda no recesso, para pormos a conversa em dia; lembra-te bem deste conselho: conquiste sempre todas as metas, mesmo que elas te pareçam titânicas; só assim saberás o valor do que tens nas mãos.

Que Deus te Abençoe

Abraço Afetuoso

Do teu Pai

Aurélio”



RECIFE, PERNAMBUCO, 24 de Abril de 1858

"Caros Pai e Irmã

Escrevo estas linhas para aquietar o coração de vocês dois, para que não fiquem mais atribulados a respeito de minha situação aqui; em verdade, estou descobrindo sempre mais razões para desenvolver meus estudos com cada vez mais afinco, como sei que gostariam que eu fizesse; assim, eu vos peço que não se apoquentem, pois meu escopo é exatamente me tornar um bom advogado e pelejar pelos ideais que realmente valem a pena; sei que posso ter decepcionado a vocês com meus arroubos de radicalismo, mas peço aos dois que não se enervem com isso.

A vida em Recife é completamente diferente da de São Luis; aqui há um movimento muito grande de pessoas, tanto brasileiras quanto estrangeiras, pois o porto é um importante ponto de concentração de várias nacionalidades, o que contribui para transformar essa parte da cidade numa verdadeira Babel; fiz amizade com um dos assistentes de Mr. Hobart, representante comercial, cujo escritório dista poucas casas de onde moro; um rapaz chamado Philip, inglês de há pouco chegado; fizemos uma troca; ele me ensinaria inglês e eu o ensinaria português, e, embora esforçado, ele ainda sente muitas dificuldades enquanto eu, pelo menos no que ele disse, estou fazendo alguns progressos.

Posso imaginar como andam as coisas por aí, meu pai; aqui em Recife as coisas andam igualmente agitadas, mas com o coro dos republicanos, mesmo ainda em pequena monta, mas começam a incomodar o governo provincial, e mesmo dentro da faculdade já há uma pequena célula; sei que esposei tais ideias há tempos, mas acredito que se houverem mudanças, elas serão resultado de uma maioria, não de grupelhos interessados somente em se beneficiar de benesses e privilégios.

Irmã, diga a Marilia que não sei por que ela se diz de coração partido; eu é que deveria ficar, ao saber dela trocando olhares com o Manduca Zacarias na saída da missa no Carmo; ela, sim, é que se dividiu entre mim e ele; mas deixe, tenho coisas muito mais importantes para me preocupar no momento; tenho feito progressos na faculdade, mas não é fácil como imaginei; quase me esfolo vivo pra acompanhar todas as matérias, especialmente a que diz respeito aos estatutos da constituição e o mais recente Código Comercial; sorte não ter de me especializar nisto; meu escopo é o de ingressar nos procuradores da Coroa, uma carreira de grandes possibilidades; por isso tenho de exceder a expectativa e ter as melhores notas.

Sem muito pra falar mais, me despeço aqui, esperando que esta chegue em paz e bem a vocês; envio o meu amor e os meus respeitos

Um abraço apertado do irmão e do filho

Júlio”

sábado, 11 de julho de 2015

ESCRITOS AVULSOS - A CIVILIDADE É APENAS UMA ROUPA


Simples assim.

É desse jeito que a sociedade moderna coloca o conceito de civilidade; nos tempos do politicamente (in)correto, é apenas uma vestimenta que usamos de acordo com a ocasião, para não passarmos como dissociados ou mesmo marginais; na verdade, é o disfarce mais torpe para o que temos de mais sórdido: a selvageria e a intolerância.

Três exemplos são os mais marcantes: o assassinato de um homem, não somente por sua orientação sexual, mas por sua opção religiosa; o linchamento de um assaltante por uma população irada e a pesquisa recente de que os homens acham que, muitas vezes, uma mulher “pede pra ser estuprada”, porque faz a opção de usar um vestuário considerado por eles “ousado” ou “provocante”, levantam mais uma vez o debate sobre até onde somos mesmo a “democracia social, racial, religiosa e sexual” tão decantada pelos intelectuais.

Adriano, candomblecista, homossexual assumido, produtor cultural e dançarino, ganha as manchetes e a linha de investigação aponta o caso como “intolerância sexual e religiosa”. O que move tal coisa? Hoje beiramos por um fundamentalismo religioso tão irado que não poupou nem mesmo uma menina de 11 anos de idade, igual,mente candomblecista, apedrejada por elementos que se diziam “religiosos” e fizeram isso em nome de sua fé; que fé é essa que faz as pessoas cometerem barbaridades simplesmente porque outras têm um credo e um jeito de ser diferente?

Cleidenilson, 29 anos, foi capturado por populares enquanto tentava assaltar uma loja num bairro da cidade de São Luis-MA; os populares irados o amarraram a um poste e, depois de muitos socos, chutes, pedradas e garrafadas, ele não resistiu e morreu devido a uma hemorragia interna ( leia AQUI a matéria); poderia se considerar tal ato uma explosão da raiva de uma população cansada de ser roubada – falo de todos os tipos de roubo, do pequeno ao grande criminoso (pra bom entendedor meia palavra basta) – de ser violada em seu patrimônio; mas esperem, somos uma sociedade civil organizada, com regras(?) e um sistema judicial e penitenciário que, mesmo mal, existe e funciona. Com que autoridade somos juiz, júri e executor? Não somos diferentes dos russos no séc. XIX e seus pogroms (massacres) contra os judeus e os nazistas, que fizeram o mesmo. Não somos diferentes dos senhores feudais, donos da vida e da morte de seus servos. Mesmo “Justificada”, essa raiva nos dá essa autoridade? Que sabemos da vida do outro para nos arvorarmos de julgadores? Lembro-me das palavras de Jesus Cristo, ele mesmo mal interpretado e torpemente usado, quando falava aos que se arvoravam de moralistas: “antes tira a trave do teu olho, para poder tirar o galho no olho do teu irmão”.

O que nos leva ao terceiro exemplo: uma revista de grande circulação publica uma reportagem que constata um fato dos mais aterradores em pleno séc. XXI: por mais que a tecnologia e o progresso apregoem seu avanço, nosso pensamento acerca das relações interpessoais ainda é, sendo otimistas, baseado em conceitos bem medievais e canhestramente machistas; essa mesma revista mostrou o conceito da mulher que “pede pra ser estuprada”(leia aqui), porque simplesmente opta ou por vestir uma roupa mais ousada, ou por decidir usar uma maquiagem mais forte ou um comprimento de roupa que seja considerado “imoral”; assim, qualquer ataque tem a justificativa de que a mulher “pediu” para ser atacada, porque usava roupa provocante, ou insinuou algo pela mesma razão.

A mulher lutou arduamente para conquistar seu espaço na sociedade, deixando de ser mera peça, mero adereço sexo-reprodutivo, burro de carga e outras coisas degradantes pra se tornar personagem atuante, força de mudança e fazendo a diferença na história de vários países; lutou pelo mais ínfimo de seus direitos com a mesma coragem e determinação; como é que, no alvorecer do terceiro milênio, a relação com as mulheres – e, por conseguinte, o respeito – ainda segue um atroz e bestial – para ser até brando – retrocesso?

Então, aí vestimos a nossa “roupa de civilidade”, lamentamos, damos declarações de pesar, falamos mil palavras que, no fundo, sequer acreditamos; somos selvagens cruéis e torpes, usando um disfarce mais torpe ainda; uma civilidade que, como toda roupa, só usamos em ocasião adequada; longe de ser parte de nós, ela é apenas o que temos para ocultar nossa faceta mais cruel e impiedosa, fazendo-nos palatáveis ao gosto geral; nossas mãos podem não ter matado nem Adriano nem Cleidenilson, ou mesmo nem sequer tenhamos encostado em nenhuma mulher que tenha se insinuado – ao menos na crença dos que defendem esse ponto de vista – mas seremos coniventes se, como cidadãos e pessoas de bem, ficarmos de braços cruzados enquanto pessoas fazem justiça com as próprias mãos e a religião, a raça, a cor e a orientação sexual continuem a ser motivo de segregação e exclusão da cidadania; não seremos muito diferentes da situação a que o Dr. Martin Luther King dizia: “Para que o Mal triunfe somente é necessário que os bons não façam nada”; mas a grande contradição é exatamente essa; enquanto a civilidade for apenas a roupa de ocasião que vestimos e não se tornar verdadeiramente parte de nós, seremos apenas selvagens brutais e ignorantes disfarçados de cidadãos.

domingo, 5 de julho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO



Eliza chegou em casa em uma madrugada chuvosa.

Perdera a conexão em Brasília, tendo sido obrigada a ficar na capital federal mais tempo do que esperava; por sorte, já quase meia-noite conseguiu um encaixe de voos que a fez chegar no Aeroporto Internacional do Galeão por volta das três da manhã.



Não resistiu ao cansaço; largou as malas na sala e mal teve tempo de tirar a roupa, mergulhando nua na cama, e assim ficou até as nove da manhã.

Acordou com o som da vibração do celular antes do toque; atendeu e era Lisandro, querendo saber notícias dela; atendeu um tanto contrafeita, mas tinha prometido dar notícias assim que estivesse mais a par das coisas que o pai a incumbira; marcaram um almoço para daí a dois dias; teria tempo, então, de ver a caixa que Albertina tinha confiado a ela.

Tomou um banho demorado, deixando a água cair como massagem, recuperando cada parte de si do cansaço da viagem. O calor da água a revigorava, fazia-a se sentir renovada, com energia pra novos projetos, novas perspectivas, levantava-a para a vida.

Verificou o e-mail, respondendo o que podia em prioridade e deixou algumas coisas para depois; avisara que só iria reencontrar a equipe em quatro dias, pois precisava resolver alguns assuntos pendentes. Somente depois é que prestou atenção à bagagem ainda na sala; separou o que seria lavado do que não tinha sido vestido, mas depois decidiu lavar tudo; tirou um dos sacos da lavanderia do armário da cozinha, preencheu o rol e arrumou tudo para, mais tarde, deixar na portaria do prédio para o pessoal que viria buscar.

Separou com carinho a caixa que Albertina dera, abrindo devagar e cuidadosamente a tampa; tinha receio de rasgar o papelão, mas viu que podia confiar nas palavras da velha senhora, quando disse que o material era resistente. Dentro, um pacote de fotos, recibos velhos e outros documentos. Espalhou tudo na cama, separou documentos de fotos, sem reparar muito em cada grupo; só depois concentrou sua atenção em cada um...




Os documentos revelaram recibos do pagamento dos funerais e exéquias de Antônio Ribeira, desde a câmara ardente até o caixão, debitados a Silvano; antigos cadernos de assentos, com registro de soldos e adiantamentos, numa grafia inclinada e elegante, datados de 1866 a 1872; e, finalmente, uma carta de Silvano a Albertina, informando-a da morte do pai e tomando a responsabilidade dos funerais. 






Mas foi nas fotos que a atenção dela mais se demorou; algumas eram bem antigas, com um tipo de moldura metálica que parecia bem gasta pelo tempo, azinhavrada e fosca; outras eram de um tempo mais adiante, fotos de um casamento, depois de uma família com pai, mãe e duas filhas; Elisa reconheceu rapidamente o avô de Albertina; estavam vestidos como se fossem a um evento social, possivelmente uma festa de família ou mesmo uma missa; lembrou-se da expressão da mãe quando dizia que, ao se arrumar demais, ela estava a usar a “roupa da missa”; viu então fotos mais recentes e reconheceu seu pai, de terno e chapéu inclinado de feltro, ao lado de um senhor de barba branca, numa cama de hospital; no verso da foto, apenas uma menção ao local e à data: “Asilo de Mendicidade, São Luiz, 1955”


Examinou cada uma das fotos com cuidado, temendo estragar o papel tão sensível; numa viu um jovem com uniforme completo, como se estivesse prestes a embarcar para a frente de batalha; em outra viu um soldado armado de lança, escoltando um outro que parecia ser prisioneiro; no verso, apenas datas, entre 1867 e 1870; mas eram apenas algo superficial, que encobria algo mais...



Retirou tudo e descobriu, no fundo, um embrulho de veludo vermelho, preso por uma fita que parecia ter sido da mesma cor, mas que, agora, se esmaecera completamente; desatou com cuidado a laçada, mas, mesmo assim, a fita tanto tempo não tocada desmanchou-se como se virasse pó; desembrulhou receosa o envoltório de veludo, revelando um maço de cartas, amarradas desta vez com um laço de fita branca, de onde pendia um pingente com um coração, uma âncora e uma cruz; lembrou-se da mãe usar um pingente igual, que representava as três grandes virtudes: Fé, Esperança e Caridade; desatou com o mesmo cuidado o laço branco, separando a fita e o pingente e, desdobrando as cartas, começou a ler...


(Continua...)

Crédito das fotos: Google Images