sábado, 4 de abril de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - RIFLERO(1)



Augustin Ybarra, desde criança, tinha o olho apurado.

Ele sempre sabia onde poderia estar um animal ou mesmo sentia os movimentos que o denunciassem; tinha agudez não só durante o dia, pois mesmo à noite podia divisar movimentos combinando seus reflexos com sua audição; daí a ter a pontaria aguçada, o caminho foi bem curto.


Seu pai, Raul, o ensinara a atirar antes de completar doze anos; ensinou os truques do caçador, da emboscada ao tiro certeiro; eram raros os animais que escapavam de sua mira precisa; costumava passar dias caçando dentre as plantações de mate do pai, sempre voltando com algo abatido, que era prazerosamente preparado por sua mãe, Filomena; os irmãos o tinham como ídolo; Juan, o mais velho, vinha sempre quando as atividades em Assunção assim o permitiam; Mario, envolvido nos estudos preparatórios, ainda vivia na fazenda, mas logo iria para Buenos Aires cursar medicina; Julian tinha aulas com Mr. Simpson, tutor inglês contratado pelo pai, que o preparava para os estudos do Liceu; mas era Diego, mais jovem, quem nutria pelo irmão verdadeira adoração; Augustin nutria outra ambição: queria seguir a carreira militar, como o avô, que lutara pela independência e fora comandante militar durante a presidência de Gaspar Francia, primeiro presidente do Paraguai.
Os negócios faziam sempre o pai se ausentar por algum tempo, entre Assunção e Buenos Aires; havia dificuldades a resolver, desde as taxas e passagem pelo Prata até os portos argentinos e a proteção dos comboios e embarcações que seguiam pelos rios, especialmente ao passar pela província de Mato Grosso, no Brasil, onde sempre havia risco de apresamento por funcionários alfandegários corruptos; mas os negócios vinham prosperando mesmo assim, embora já existisse um clima de tensão desde que o filho do presidente Carlos Antônio Lopez, Francisco Solano Lopez, endureceu o tom com os vizinhos platinos; seus discursos eram assestados especialmente contra brasileiros e argentinos, culpados, segundo ele , de levarem o país à quase condição de penúria. Raul se preocupava demais com esse tom usado pelo presidente pois, se os países vizinhos resolvessem, podiam facilmente cortar o acesso do país ao mar, aí sim estrangulando a economia.

Augustin não se incomodava com os rumores; continuava seus estudos para a escola de formação de oficiais em Assunção, e continuava suas expedições de caça nas horas vagas; mesmo assim, sentia que algo se aproximava no horizonte; seus instintos, como a prevení-lo, avisavam de algo iminente.

A notícia do estado de guerra entre o seu país e os vizinhos Uruguai, Argentina e Brasil alcançou a família Ybarra no almoço; Raul, recém-chegado da viagem, foi quem trouxe as notícias; o governador da província de Mato Grosso, no Brasil, teve o seu navio apresado e o próprio governador fora aprisionado; exigências de reparação foram emitidas pelos governos brasileiro, argentino e uruguaio, para que o governo paraguaio libertasse o governador e restituísse a embarcação apresada; o governo não só ignorou as exigências como incorporou o navio à marinha paraguaia; mesmo antes das tensões, Solano Lopez já vinha comprando armas e contratando conselheiros para treinar o exército, já aumentado em tamanho com a mobilização declarada meses antes. Tudo o que Raul mais temia estava acontecendo; o comércio seria muito prejudicado, isso se já não se colocasse à falência; o filho mais velho, em Assunção, já tinha se alistado e comandava um regimento de cavalaria.



Foi o suficiente para que Augustin se decidisse; arrumou sua bagagem e se dirigiu para o alistamento em Assunção; a mãe, incapaz de demovê-lo, apenas pôde acompanhar a partida dele, com o choro do irmão mais novo, enquanto ele se dirigia para a capital.

Assunção, a princípio, foi uma surpresa total; acostumado ao silêncio das noites da fazenda, a cidade era um burburinho sem fim; tropas marchando de um lado a outro, oficiais gritando ordens, carroções de suprimentos atravessando as ruas; entrou no posto de recrutamento e se apresentou a um sargento rotundo chamado Morales, os botões quase a estourar do uniforme.


- Então quer entrar no exército, rapaz? - Rosnou o sargento, olhando Augustin de alto a baixo – vamos ver se tem bagos pra isso; entre naquela fila e assine seu nome na lista com o cabo Gonzalez; rápido, ande logo! A guerra não vai esperar por você, garoto da fazenda; vá logo!!!

Logo depois de assinar o termo de alistamento, Augustin e mais outros foram encaminhados para treinamento nos arredores de Assunção; os primeiros dias foram difíceis, a comida rustica, bem diferente da fazenda, o burburinho dos outros recrutas e o barulho do rancho o incomodavam; foi, aos poucos, se acostumando com aquilo; o que mais o entediava eram os constantes treinamentos de marcha e ordem-unida; queria logo entrar em ação, enfrentar o inimigo cara a cara; mas aguentou firme, esperando o tempo de ir à linha de frente.



Depois de quatro meses já dominava as artes de marcha e tiro de fuzil, com a pontaria já apurada ainda mais precisa; já ansiava o dia e que sua tropa ia ser mandada para a frente de batalha; já tinha ouvido falar que iriam ser mandados pra fronteira com o Brasil, onde o general Estigarribia já tinha capturado a cidade brasileira de Uruguaiana.

Ao entrar no refeitório, notou uma figura que destoava da massa de túnicas vermelhas que se aglomerava no rancho; era um homem alto, de cabeleira comprida ruivacenta e um vasto bigode; fumava calmamente um cachimbo feito de sabugo de milho, e observava com frieza a massa de recrutas que se acotovelava para comer; do mesmo jeito calmo, saiu depois de bater o cachimbo e colocá-lo no bolso do casaco curto. Minutos depois, o sargento Aragon entrou no salão, olhando rapidamente a soldadesca.

- Soldados Ybarra, Oviedo, Echevarria e Gazcon, o comandante os chama; rápido!

Os quatro soldados foram conduzidos pelo sargento até o posto do comandante, na parte leste do quartel; aguardaram alguns minutos e logo depois o sargento levou-os adentro, onde encontraram o coronel Barrios em seu dólmã azul, e , ao lado dele, o mesmo homem que Augustin vira no rancho; cabelereira longa e ruiva, bigode vasto e olhar frio; que percorreu os quatro soldados de alto a baixo; depois de trocar algumas palavras com o coronel, numa língua que Augustin não entendia, fez um movimento de concordância com a cabeça e o coronel passou as instruções aos soldados;

- Vocês foram escolhidos para integrar o Corpo de Rifleros, um regimento especial de nosso exército, que reúne os melhores atiradores das fileiras para servirem de maneira especial ao nosso país; este é o Major Sorrell, do exército confederado americano(2), que será seu comandante a partir de hoje; sucesso em sua missão, bravos soldados da Pátria!

Ainda sem saber muito sobre o que seria essa nova tropa, os quatro seguiram o major até um carroção onde já estavam outros soldados; o major montou a cavalo e sinalizou para que o cocheiro se pusesse em marcha; depois de umas duas horas de jornada, chegaram a um acampamento diferente, onde as tendas eram distribuídas com bandeiras coloridas: branca, verde, amarela e vermelha; ouviu o barulho de tiros vindo do fundo do acampamento e soldados vestidos não com as túnicas vermelhas do exército, mas com um uniforme cor de terra, parecido com o do homem ruivo, com faixas na manga de cores iguais às bandeiras das tendas; foram conduzidos até o centro do campo, onde outro homem, desta vez de cabelos louros encaracolados e divisas de sargento, falou a eles.


- Bem-vindos ao Corpo de Rifleros, a unidade de atiradores do exército! Aqui vocês vão se tornar soldados de verdade, saber o que é a verdadeira guerra; a partir de agora, esqueçam o que aprenderam; vamos fazer vocês conhecerem um tipo diferente de guerra, onde um tiro pode ser a diferença entre a vitória ou a derrota; agora, tirem essas túnicas!

Augustin e os outros tiraram as túnicas vermelhas e as amontoaram em ordem ao lado do sargento, que, assim que o último dos quatorze o fez, ateou fogo nelas, sob o olhar espantado dos demais; minutos depois, elas nada mais eram do que farrapos carbonizados; o sargento então os conduziu para a tenda de bandeira branca, onde um cabo indicou onde deveriam dormir; passou a cada um uma túnica curta, da mesma cor de terra que tinham visto, com uma faixa branca amarrada na manga.

- A cor branca é a cor do iniciante; se vocês conseguirem completar o treinamento, usarão a vermelha; boa sorte e boa caçada – disse o cabo, no mesmo tom sem expressão.

No dia seguinte, o toque do clarim reuniu todos no centro do acampamento; Augustin contou cerca de trezentos homens, divididos em grupos de dez, cada um sob o comando de um sargento, de braçadeira vermelha na manga; entraram em forma e, minutos depois, o homem de cabeleira ruiva saiu de dentro da tenda central, fumando o seu cachimbo de sabugo; olhou para os sargentos e depois para os recrutas, começando então a falar; seu sotaque estrangeiro era carregado, mas sabia bem da língua para não cometer erros

- Vocês foram escolhidos para um papel importante na luta da Pátria! Suas vidas serão, a partir deste momento, remodeladas para atingir o inimigo de forma mortal e precisa! Vocês já ouviram que um tiro pode ser a diferença entre a vitória e a derrota nessa guerra! Agora, vamos fazer vocês aprenderem como fazer para que seja sempre vitória! Muitos aqui irão desistir, mas os que conseguirem chegar até o fim serão uma força que o inimigo vai pensar duas vezes antes de enfrentar! Sua vida nova começa agora! Sargentos! Assumam seus postos!

Os sargentos gritaram ordens e reuniram os homens. O treinamento começara...

Cada etapa fora vencida com determinação e vontade; vindo do ambiente rural, Augustin passou fácil nas etapas de ocultação, camuflagem, rastreamento e emboscada; sua pontaria, já bem adestrada, se mostrou mortal; aprendeu a julgar distâncias com precisão, usando a ponta dos dedos; mesmo nos mais longas distâncias sua perícia era mortal; de um morro alto, o ruivo major Sorrell observava os progressos dos recrutas; Augustin sempre o via, fumando o inseparável cachimbo de sabugo; da faixa branca passou rapidamente à verde; passou então à amarela e, nesse dia, o major reuniu os que já estavam nessa etapa e apresentou o que ele chamava de “a ferramenta de guerra”; era um rifle diferente, com alça de mira como um anel com regulagem, o cano sobreposto por um longo tubo, completamente alinhado.




- Este será seu companheiro a partir de agora; aprendam a dominá-lo e ele será o instrumento da vitória; decorem cada parte dele como se fosse parte de vocês e serão temidos e respeitados – disse num tom respeitoso, ao entregar o Whitworth 53, o rifle de precisão que fizera a sua fama na Guerra Civil Americana(3); efetivo até quase um quilômetro, era o terror dos inimigos; muitos oficiais caíram sem nem saber o que os atingira; Augustin sopesou o seu e viu que era leve e fácil de empunhar e apontar; pra surpresa dele, o longo tubo sobre o cano revelou ser um telescópio, com um campo marcado na lente para enquadrar o alvo. Sentiu que o rifle era como uma luva nas mãos dele, o que foi comprovado no dia seguinte, quando conseguiu acertar um alvo a mais de 800 metros, guiando-se apenas pelo leve brilho dos botões do uniforme usado como alvo. Ao ver isso, o major Sorrell desceu de onde estava e, pessoalmente, retirou a faixa amarela e amarrou a faixa vermelha na manga do uniforme de Augustin

- Orgulhe-se, você mereceu cada vitória aqui; agora, outras coisas serão aprendidas

O treinamento de campo foi substituído por outro; desta vez, era a hora de saber as diferenças entre os oficiais brasileiros, argentinos e uruguaios, seus graus e galões, as maneiras que os mesmos se portavam, para reconhecê-los bem no campo de batalha; depois disso, os movimentos de tropa do inimigo a organização, e como faziam ataque e defesa; soube que cada grupo de rifleros seria distribuído entre cada regimento, sempre havendo pelos menos dois atiradores em cada tropa de infantaria; avançariam como ponta de lança para, abatendo os oficiais, desarticular o inimigo;

Quando o treinamento terminou, apenas Augustin havia completado todo o treinamento; seus outros três colegas de tropa, um morrera de uma picada de cobra, outro simplesmente desertara e não fora mais visto e o último simplesmente desistira e voltara à unidade de onde tinha vindo; no último dia, empacotou suas coisas, o rifle e seguiu para onde fora destacado, a guarnição da Fortaleza de Humaitá; antes de deixar o acampamento, porém, o major Sorrell o encontrou, entregando um pequeno embrulho, Augustin o abriu e tirou dele um outro sistema de mira, onde um poste regulável terminava em um anel que tinha as mesmas medições. O ruivo o encarou nos olhos, como se o olhar aconselhasse; por fim se despediu.

- Aceite isso como prêmio por ter se destacado; uma pequena lembrança. É um sistema de mira Vernier, muito preciso, vai ajudar muito. Agora vá e lute, sem olhar pra trás.

Augustin saudou-o numa continência solene, respondida pelo major com igual solenidade; os dois se encararam ainda uma vez e trocaram algumas palavras antes do jovem atravessar o portão e ir de encontro à guerra...

Ele sabia que seria diferente, mas não imaginava que seria tão cruel.

A missão dele era neutralizar qualquer ameaça de artilharia que pudesse chegar ao alcance da fortaleza; gostava de operar sozinho, mas de vez em quando dois outros rifleros, Alvar e Olmedo, o acompanhavam; sem ser percebidos, chegavam a uma distância onde podiam atirar sem que o inimigo pudesse saber a direção dos tiros; visavam especialmente oficiais e apontadores, facilmente identificados pelos galões e dragonas, além da maneira como eram tratados pelos outros recrutas; muitas vezes ousavam a ponto de, para registrar os acertos, se esgueirar e pegar botões do uniforme, para mostrar ao comandante da companhia; os demais soldados os invejavam, por terem muito mais independência que o resto; mas ainda assim eram evitados, e mais de uma vez se ouviu a palavra “Assassinos” falada às suas costas; respondiam somente ao comandante da guarnição, que sempre exigia relatórios das incursões.

Num dia , acordou com um barulho de explosões , que vinham do lado do rio, levantou-se e pôde ver os navios com a bandeira imperial brasileira começando a bombardear a fortaleza; mas, por imprecisão dos artilheiros navais ou porque os barcos não queriam se arriscar a chegar ao alcance das baterias de Humaitá, os disparam passavam longe, caindo muito atrás; nem mesmo as trincheiras de defesa na retaguarda foram atingidas; ele correu para seu posto, na trincheira avançada situada no esteiro perto da fortaleza de Curupaiti, e começou a explorar a linha adiante; não precisou de muito tempo para ver as linhas de soldados que avançavam, os oficiais organizando-as e as colocando em posição de ataque; os que vinham não sabiam das peças de artilharia posicionadas em plataformas sobre o esteiro e nem dos atiradores em trincheiras rebaixadas, fora da linha de visão dos que avançavam; as silhuetas se tornavam mais nítidas, mais e mais próximas; os rifleros, espalhados por entre as unidades, tinham ordem de abater os oficiais assim que avistados.



Augustin ergueu o rifle, divisando pelo telescópio o oficial de dólmã azul e dragonas douradas, que conduzia a coluna em perfeita ordem; apertou o primeiro gatilho, armando o gatilho de precisão, ativado na menor pressão do dedo; um leve toque e fez-se o disparo, derrubando e matando instantaneamente o oficial; 

foi o sinal para que o resto da tropa atirasse, numa fuzilaria que desfez a coluna em grupos desordenados; ele via a tentativa de se preencher os claros e manter o avanço, mas os oficiais abatidos abalavam o moral da tropa; mesmo assim, ele viu carga atrás de carga de infantaria se esbater na muralha de fogo das trincheiras na retaguarda da fortaleza; depois que se constatou que não podiam romper a linha de defesa, as tropas argentinas, brasileiras e uruguaias se retiraram, deixando o campo juncado de mortos e feridos; somente quando as tropas se retiraram e recolheram os feridos é que os soldados e oficiais deixaram as trincheiras e começaram a inspecionar o campo, despojando os mortos de roupas e pertences pessoais. Um dos oficiais reconheceu o corpo de um oficial argentino caído, chamando o comandante da fortaleza; o oficial era Domingos Fidel Sarmiento, filho mais jovem do presidente Domingo Faustino Sarmiento, um dos mais importantes políticos da Argentina, segunda autoridade do país, depois de Bartolomé Mitre, então presidente; o comandante ordenou que o corpo fosse removido e levado em bandeira branca até a linha argentina, para que fosse sepultado. Os outros foram enterrados em valas comuns, apenas com um marco indicativo do sepultamento.



Augustin ainda fez algumas expedições de exploração, para localizar possíveis piquetes de tropas aliadas; depois da derrota de Curupaiti, apenas o exército brasileiro fazia operações na área; os argentinos diminuíram sua participação e a dos uruguaios apenas ficou simbólica, com um batalhão, o Florida, cujo comandante, o capitão Palleja, tinha sido mortalmente ferido. Os brasileiros fizeram um anel de trincheiras avançadas circundando a defesa paraguaia, com piquetes impedindo a passagem de qualquer tipo de suprimento; aos rifleros cabia fustigar esses piquetes, abatendo oficiais e sargentos; Ele sabia marcar os alcances de seu rifle com sinais nas árvores, de onde podia se posicionar para atirar; numa tarde , com o sol às costas; conseguiu divisar um oficial de uniforme mais engalanado; devia ser alguém recém-chegado, pois os oficiais brasileiros , sabedores da precisão mortal dos atiradores, tiravam as dragonas e sinais que denotavam seu posto e recebiam apenas saudações verbais dos soldados, para evitar se tornarem alvos; visou o peito do homem, elevando a mira por causa do vento forte; o tiro atingiu-o abaixo do pescoço; não precisou se certificar; sabia que o disparo o matara instantaneamente. Desceu devagar, evitando ser localizado, e se deslocava para o próximo local de espreita, quando sentiu como se fosse atingido por um martelo; caiu de costas, os olhos fixando o céu; pensou nos campos de mate do pai, na sua mãe, e, depois, nas últimas palavras do major Sorrell antes de se despedirem: “Você é muito bom, mas tome cuidado que vai aparecer um melhor, e nem sempre estará do mesmo lado que você”; agora ele entendia, e, ao saber-se batido, cerrou os olhos...

Na fazenda Ybarra, Filomena, a mãe , sentiu um vento frio vindo não se sabia de onde; tomou o terço, rezou em silêncio e tomou o tecido que deixara dobrado sobre a cama; o filho Juan a esperava e os outros já estavam em uma carruagem que os levaria a Assunção; a fazenda não era um lugar seguro para mais ninguém, pois não se sabia se os soldados conseguiriam defendê-la...

O soldado rastejou com cautela, indo até onde achava que o corpo poderia estar; encontrou-o mais adiante, próximo a uma árvore alta que tinha um corte profundo no tronco: estava deitado de costas, o rifle sobre ele, o madeirame destroçado pela bala que atravessara a arma e o atingira no esterno; o cano estava esmagado pelo impacto, inutilizando a arma; o soldado revirou os bolsos e, ao tirar o bornal do morto, viu o saco de estopa cheio de botões de uniforme, alguns ele reconhecendo de unidades em que conhecera alguns homens; estava ali o que tinha tirado a vida de muitos de seus amigos...tirou o rifle, colocou-o no ombro e ia deixar o corpo ali, mas de repente, lembrou-se que não seria correto deixá-lo sem enterrar; usando a coronha do rifle do morto, cavou uma cova rasa, quebrou a madeira em duas partes, improvisou uma cruz amarada com os cordões dos sapatos e, depois de enterrá-lo, marcou o túmulo com ela; fez o sinal-da-cruz, rezou brevemente e se afastou em direção às trincheiras avançadas brasileiras; levou como recordação, o telescópio que retirara do rifle do falecido...

NOTAS

(1) Os Rifleros eram corpos de infantaria especialmente treinados e equipados para abater oficiais e observadores/apontadores de artilharia inimigos, desarticulando os movimentos da tropa; geralmente formados em grupos de dez ou doze; iam como ponta de lança/escaramuçadores dos regimentos, em formação mais livre que as cerradas colunas de infantaria;

(2) Não há realmente notícias confirmadas que mercenários confederados tenham sido contratados para treinar unidades do exército paraguaio, mas as táticas que o exército empregava e as táticas demonstradas pelos rifleros e o seu equipamento suscitam suspeitas de treinamento por “sharpshooters” (atiradores de elite) confederados

(3) O rifle Whitworth 53 era a arma de escolha dos rifleros e foi comprada em grande quantidade para equipá-los; com alcance prático de mais de 800 metros, disparava uma bala de seção hexagonal que tinha enorme grau de precisão; alguns generais Unionistas na Guerra Civil Americana e oficiais brasileiros e aliados na Guerra do Paraguai foram vítimas de atiradores equipados com esse rifle, o que fez com que Caxias, comandante do exército da Tríplice Aliança, baixasse ordens proibindo o uso de galões e insígnias conspícuas nas trincheiras avançadas, além de proibir que os soldados batessem continência, saudando os oficiais verbalmente; também foi proibido fumar à noite, pois a chama de um fósforo ou a brasa de um cigarro ou de um cachimbo fazia do soldado um alvo;