domingo, 23 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE VIII



A vibração do celular a acordou num estalo.

Tentou segurá-lo nas mãos, mas ele parecia escapar; deslizou até o canto da cama,mas a ligação já tinha caído na caixa postal; ao verificar, viu que era de Eunice, deixando um recado sobre a reunião de conciliação de contas na segunda-feira; regurgitando a frustração, jogou o celular no recamier e despiu-se, indo para o chuveiro.

Deixou a água cair por cinco longos minutos, sentindo o deslizar pelo corpo; respirou fundo, e, de repente, sentiu-se como aquecer em ondas, um calor que não vinha da água, que parecia conduzi-la a algo que, para ela, parecia perdido, longínquo, apenas como uma lembrança; de início, tentou resistir, mas aquilo era mais forte que ela; rendeu-se e se deixou levar, até que, num átimo, viu-se mais intensa do que jamais fora na vida...

Enxugou-se e vestiu o robe sem pressa; olhando pela janela, viu que o sábado prometia ser nublado, sem muita promessa de melhorar; preparou o desjejum como de hábito, comendo sem muito prestar atenção, até que os acordes de Rhapsody in Blue – o toque que era a marca registrada dela – foram ouvidos de novo; lembrou-se do celular no quarto, chegando antes da chamada cair na caixa postal, só depois notando que a torrada ainda estava em sua mão; atendeu e reconheceu a voz de Walter, que se desculpava por não ter podido atender as ligações, pois estava resolvendo detalhes do apartamento que alugara. Combinaram de se encontrar num restaurante próximo do apartamento dela, onde finalmente conversariam...

Eram emoções desconhecidas para ela.

Jamais tivera interesse ou sequer atração por ninguém , mesmo em seu tempo de estudante; Lisandro, advogado e executor do testamento de seu pai, jamais escondeu a dedicação que sentia por ela, mas jamais tinha dado a ele esperança sequer; sempre fugiu de qualquer tipo de envolvimento, brigando inclusive com a terapeuta, que dizia que ela devia tentar algum relacionamento para “drenar energias”. Agora, ria consigo mesmo de tais lembranças...

Pela primeira vez vestiu-se com ansiedade; escolheu pantalonas de linho bege e uma blusa solta, que caiu confortavelmente; arrumou os cabelos com apuro e viu o tempo; ainda nublado, mas parecia que não iria chover tão cedo; saiu da garagem rápido, surpreendendo o porteiro; chegou ao restaurante primeiro, escolhendo uma mesa de onde podia ver todo o movimento de entrada. Ele chegou cinco minutos depois e não precisou de muito para localizá-la; acenou levemente e se dirigiu a ela num passo contido, como se quisesse decorar cada momento da aproximação; trocaram um aperto de mão tímido, como se estivessem se conhecendo naquele momento.



- Fiquei feliz por você ter vindo – disse ele, meio sem jeito – mais uma vez me desculpe por não ter atendido suas ligações; estava no meio da montagem do apartamento e não ouvi o telefone tocar.

- Não tem problema, pudemos nos falar depois e aqui estamos; estou igualmente feliz por vê-lo de novo.

Conversaram, em um primeiro momento, de amenidades, ele falando da nova empresa em que estava trabalhando , uma agência de publicidade, do apartamento que acabara de se mudar e de alguns hobbies; ela sentia que ele precisava estar mais confortável para começar a falar o que realmente queria; deu a ele o espaço necessário para que ele se sentisse à vontade.

Então, sentindo-se mais confiante, finalmente abriu-se, não numa torrente de palavras, mas num falar pausado, como se quisesse que nada ficasse perdido ou mal-entendido para ela

- Entenda, eu não poderia ficar como estava e onde estava, especialmente por causa do que se passou comigo; não poderia ficar lá porque...

O silêncio dele foi como se nada existisse ali, apenas os dois; ele pigarreou, folgou um pouco o colarinho e continuo no mesmo falar pausado

- Porque eu não poderia ficar sentindo o que eu sentia, e ainda sinto, por você; é mais forte que eu e é algo novo para mim; sempre fui profissional mais que pessoa, e isso me fez recuar e pedir demissão. Achei que jamais poderia falar o que falo agora, por isso tomei coragem e deixei a mensagem no envelope de minha carta de demissão.

Ele segurou a mão dela, apertando-a levemente; ela o encarou e sorriu sem falar nada, mas, por dentro, sentia que tinham mais em comum do que podiam imaginar; ele, igualmente , sempre pusera a carreira e a profissão acima de tudo, negando-se a viver seu lado pessoal em função do trabalho.

Almoçaram como se o tempo não passasse; cada olhar era como se fosse a mais animada das conversas, uma descoberta de sensibilidades que ambos se perguntavam por que não tinha sido descoberta antes. Depois que terminaram, dirigiram-se ao valet para pegar os carros, mas ela, como se não quisesse se despedir, disse: “vamos conversar mais, acho que temos muito ainda por falar”. Ele, tomado de surpresa, apenas assentiu com a cabeça, seguindo-a. Chegando ao prédio dela, esperou enquanto ela entrava na garagem, ficando no estacionamento dos visitantes, a aguardar a liberação da entrada pelo porteiro; este o observou por alguns minutos, até que o interfone tocou e a fechadura do portão deu um estalido seco, avisando-o de que podia entrar.

O elevador parecia subir mais devagar do que aparentava. Ele procurou disfarçar a ansiedade tamborilando os dedos na parede, imaginando que julgamento ela poderia estar fazendo dele; chegou mesmo a pensar que seria como um joguete, apenas diversão, mero passatempo. Dissipou tais pensamentos quando o elevador enfim chegou no andar; ela esperava com a porta aberta, convidando-o a entrar; perguntou se queria alguma coisa, alguma bebida; ele aceitou água, pois ficou com receio do que o álcool pudesse causar, especialmente naquele momento.

Conversaram mais um pouco, ele observando discretamente cada detalhe do apartamento, a mistura de decoração antiga e nova, recantos que pareciam ter vida própria; reparou na estante perto da sacada, os objetos parecendo que há tempos não eram arrumados.

- Aquele recanto era do meu pai – disse ela, como se adivinhasse os pensamentos – moramos juntos até a morte dele. Até então eu era como você, apenas o meu trabalho valia; ele mesmo me dizia que a vida não era apenas dever, mas prazer; não o levei muito a sério, como você pode ver.

- Também fui assim – respondeu ele na mesma fala suave – fui criado por duas tias solteironas que me diziam que a vida não era apenas a cara nos livros e trabalho, a vida tinha de ter arte.

Segurou a mão dela novamente, dessa vez com um pouco mais de firmeza; ela sentiu a energia do toque, o calor do aperto; deixou-se conduzir, enquanto ele a fitava com um fulgor nos olhos que não precisava ser traduzido; lentamente, a mão dela trouxe o rosto dele mais perto e os lábios se colaram devagar, mas não havia mais o que represar; a torrente dos dois rompeu as últimas reservas e não mais a razão, mas a pura vontade os guiava, os lábios como a querer devorar os anos de ausência, de solidão, de todas as coisas intensas há tanto tempo esquecidas...

(Continua)

Créditos das imagens : Google Images