domingo, 7 de junho de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - BELÉM - PARTE III


O Bairro da Pedreira era um dos bairros mais pitorescos e boêmios da capital paraense.

Conhecido como “Bairro do Samba e do Amor”, sempre teve fama de lugar despojado e de ambientes descontraídos, onde sempre havia gente se divertindo e os bares atraíam muita gente durante os fins de semana


Mas não havia muito movimento nas ruas quando ela chegou, talvez porque fosse ainda meio de semana; só os locais já ensaiando sua diversão. Jeremias percorria o local devagar, prestando atenção aos lugares que se lembrava, para localizar o endereço que ela passara a ele.
- A senhora está certa do endereço, Dona Eliza?
- Estou sim, Jeremias; Travessa Lomas Valentinas 483, a não ser que aquela afilhada dela tenha mentido.
- Não sei não, senhora, aquela mulher parecia ser tinhosa

O motorista continuou guiando devagar, prestando atenção nos números, até que percebeu um sobrado, pintado de branco com azulejos escuros e beiral, destacado das demais casas baixas da rua; conferiu o número e parou em frente; Eliza desceu e tocou a campainha; não demorou muito uma jovem de cabelos negros compridos e olhos verdes veio até a porta.
- Bom dia, estou procurando Dona Albertina Ribeira, ela mora aqui?
- Mora sim, senhora; ela é minha avó; espere um minuto que eu vou chamar,

Eliza fez um sinal para Jeremias de que estava tudo bem; ele já tinha encontrado alguns conhecidos e já entabulava uma conversa, enquanto ela esperava; logo uma senhora de porte altivo, cabelos brancos amarrados num coque, veio até a porta.
- Bom dia, moça, queira entrar; minha neta me disse que a senhora queria falar comigo? Posso saber o motivo?
- Vim da parte de meu pai, Silvano Tomaz, que conheceu um parente seu, Antônio Ribeira. Sua afilhada me passou o seu endereço e lhe manda lembranças
- Ele era meu avô sim, senhora – falou em tom suave, mas seguro, ignorando completamente a menção da afilhada – como o seu pai conheceu ele?
- Faz muito tempo, em São Luís do Maranhão; ao que parece meu pai o ajudou e tinha grande estima por ele.
- Eu era ainda meninota quando ele morreu, mas minha mãe falou uma vez desse amigo dele...como é mesmo o nome?
- Silvano, Silvano Tomaz
- Ah, sim, ela me falou uma vez; um senhor que parecia ser jornalista, não é mesmo?
- Sim, meu pai era jornalista; na época ele ainda era um jovem sem muita experiência.
- E o meu avô era bem velho já naquela ocasião, minha mãe me contava. A senhora aceita um café? Acabei de passar. Mas venha pra sala, a gente conversa melhor
- Vou aceitar sim, obrigada
Eliza observou-a servir o café, cujo aroma era muito atrativo; depois de servir, sentou-se e começaram a conversar.
- Mas o que a senhora traz do seu pai pra mim? Estou ainda meio encafifada.

Eliza tirou da bolsa o envelope que tinha tirado da caixa entregue por Lisandro e falou de todos os detalhes da transferência legada pelo pai em testamento, enquanto sorvia o café; Albertina assustou-se com tudo aquilo, procurando saber o porquê da generosidade daquele senhor, por mais que possa ter sido amigo de seu avô; então lembrou-se de uma das últimas conversas com a mãe falando desse amigo, que tinha mesmo coberto o pagamento do traslado e do enterro do avô no cemitério da Soledade; onde a mãe também estava sepultada.
- Senhora, não me entenda mal, mas não sei se devo aceitar essa generosidade – disse Albertina, espantada com tudo aquilo - é muito para uma pessoa como eu; a senhora viu que minha vida é simples, de aposentada; minha neta mora comigo aqui e me ajuda, a senhora pode ver; não posso me aproveitar do seu pai, mesmo que ele tenha sido muito amigo do meu avô
- O meu pai deixou em testamento esse dinheiro, Dona Albertina, e ele fez questão de que eu pessoalmente entregasse a ordem de pagamento pra senhora; isso foi a vontade expressa dele; uma carta dizia que era uma obrigação que ele tinha com o seu avô.
- Ele foi um homem que lutou muito, senhora – continuou Albertina, recompondo-se do espanto – sempre foi. De jamais deixar faltar nada pras filhas. Ele teve duas, minha mãe e uma tia mais nova, que morreu de cólera ainda menina; minha mãe guardou muita recordação, acho que ainda tenho tudo numa caixa que guardei. Amanhã mesmo vou levar flores na sepultura dele e de minha mãe lá na Soledade. A senhora não quer ficar pra almoçar? Estou fazendo um guisado de frango caipira.

Eliza olhou para o relógio de parede. Quinze para o meio-dia. Ela declinou do convite, mas disse que encontraria Albertina no dia seguinte, se ela não se incomodasse. Queria saber mais sobre a ligação de seu pai e Antônio Ribeira. Iria resolver seu assunto com Emília e iria mais a fundo na história
- Não, não me incomodo não; mas vou pra Soledade logo de manhãzinha, porque de lá já passo pro mercado pra comprar umas coisas pra casa, a senhora sabe.
- Não há problema, dona Albertina, eu a encontro lá; a que horas?
- Cuido de chegar cedo; sete e meia estaria bom?
- Sem problema para mim. Encontro a senhora lá. Obrigado pela conversa e pelo café.
- Desculpe pelo espanto, senhora, mas essas coisas não se dão assim todo tempo
- Eu entendo, não se preocupe. Até lá.

Eliza pediu a Jeremias que a levasse em um bom restaurante no centro; ele a levou a um que ficava perto do Forte do Castelo, de onde tinha sido fundada a cidade; pediu uma refeição leve de frutos do mar para ela e para o motorista e, depois do almoço, pediu que a levasse em casa; teria muito o que pensar...


Já no apartamento, espalhou os croquis pela cama e examinou cada um deles; eram projetos ambiciosos, e, se realmente saíssem do papel, seriam o espelho de uma política sensata de preservação funcional do Patrimônio Histórico; embora admirasse de cara o arrojo do projeto, ela bem sabia que serviria mais pra vitrine política de alguns do que qualquer outra coisa; mas decidiu examinar minuciosamente cada dum deles, a fim de dar um parecer ponderado.

Mas não deixava de pensar um Albertina Ribeira, e na amizade de seu pai com o avô dela...