domingo, 30 de agosto de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE IX


Ela acordou antes.

Viu o contorno do corpo dele coberto pelo lençol, a nuca e os cabelos dispersos no travesseiro; ainda se buscava depois da tempestade que sentira; era como se um rio inteiro jorrasse incontrolável por ela, rompendo todas as barreiras que um dia ela impusera a si mesma; era como se uma parte dela se libertasse, se revelasse depois de tanto tempo em uma reclusão auto-imposta...

Tudo passou -lhe nos pensamentos como num filme: a roupa apressadamente tirada, a urgência de quererem-se, que a fez voar, cavalgar, mergulhar num mundo que , até então, nem mesmo a palavra era capaz de sequer abranger; abriu todas as portas dos seu ser pra ele, assim como ele abria as portas dele para ela, numa entrega nova a ambos;

Procurou levantar devagar, para não o despertar; ele dormia um sono forte, mas sua respiração era suave como se apenas dormitasse; foi apenas ela levantar-se por completo que ele a alcançou, abraçando-a ternamente e beijando-lhe a nuca
- Desculpe, não quis te acordar; ia preparar algo para o café; coisas orgânicas, não sei se gostas.
- Claro que sim, alterei minha alimentação há algum tempo, quando tive um caso sério de intoxicação. Desde então me alimento quase exclusivamente de orgânicos.
- Com o que você se intoxicou? Não tem o tipo que pode ser suscetível a isso.
- Bom, antes de trabalhar com relações públicas eu me formei em história e me especializei em arqueologia; trabalhei três anos em sítios arqueológicos e num deles me aconteceu com a comida que era fornecida; depois fui diagnosticado com intoxicação aguda por agrotóxicos, mas sobrevivi, aprendendo a lição de apenas comer orgânicos, sem agrotóxicos.

“Mais uma coisa em comum”, pensou ela enquanto sorria; preparou o chá com ervas e o pão integral, colocando tudo no centro da mesa; ele serviu-se, tomou um gole do chá e reparou o espaço do apartamento com as coisas do pai dela; viu o baú, encostado a um canto, e os maços de cartas meticulosamente arrumados em uma mesinha perto dele.
- Coisas do seu avô? - perguntou de forma hesitante; não queria ser invasivo.
- Sim, são dele, ele era obcecado com a Guerra do Paraguai e colecionava coisas da época; ultimamente andei vasculhando algumas coisas pra ele, mas acho que não consegui ir muito adiante; me sinto mesmo um tanto culpada por não estar mais envolvida.
- Talvez eu pudesse te ajudar – aparteou ele – ainda sou bom em levantar dados de pesquisa e não perdi a mão como historiador; poderia dar uma olhada lá?
- Apenas vou pedir que tenha cuidado, algumas coisas são bem antigas.
- Não se preocupe, seu lidar bem com isso. Você tem luvas descartáveis? Assim posso examinar sem danificar.
-Acho que tenho sim, vou buscá-las.

Ela voltou com uma caixa pequena, de onde ele tirou um par de luvas de borracha, calçando-as cuidadosamente; indo até a varanda, abriu o baú e ficou fascinado com o que viu.
- É, parece que você tem um monte de histórias aqui – disse com uma expressão de admiração e surpresa.
- E eu tenho que te contar por que tenho tudo isso aqui; é uma história longa.
- Não esqueça que gosto de histórias longas – riu enquanto a beijava – temos todo o tempo do mundo, não? Depois de hoje, acho que temos muito ainda pela frente.

Ela riu enquanto o ajudava a abrir o baú; se sentia, pela primeira vez na vida, como se a felicidade lhe tivesse dado asas...