quarta-feira, 4 de novembro de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O VELUDO VERMELHO - PARTE XVII


CRUZANDO O ATLÂNTICO, 1877

Ele contemplava o mar como se a imensidão das águas fosse dar resposta às suas indagações.



Agnes e as crianças ainda dormiam na cabine; levantara mais cedo por não conseguir conciliar o sono com o tempo da viagem; mesmo sendo os dezesseis dias um tempo mais rápido do que se tivessem partido do Rio – vinte e oito dias era o tempo em média que os navios levavam do Rio de Janeiro a Liverpool – ele não conseguia pegar no sono; mesmo assim, a viagem transcorreu sem um transtorno sequer, com tempo bom e mares calmos.



LIVERPOOL, 1877

O frio entrava pelos ossos.

Era completamente diferente do clima de São Luís; ele se lembrava desse frio de outro tempo, nos campos e esteiros do Paraguai; parecia agora, porém, mais forte, apesar do casaco de lã e do chapéu de feltro.



Supervisionou a descarga da bagagem com cuidado, enquanto organizava o transporte até a estação; seria uma longa viagem até Charlton House, onde teriam de fazer contato com Horace Thurnbull, tesoureiro e testamenteiro de Mr. Charlton, para o conhecimento do inventário e a leitura do testamento.



A viagem de trem foi um reconfortante alívio; mesmo com a travessia oceânica sendo tranquila e sem incidentes, preferiam muito mais se sentir com terra firme sob os pés; os campos ingleses foram uma agradável surpresa para Júlio e uma confortável familiaridade para Agnes, que revia o lugar de sua infância; o verdejar que serpenteava pela janela do vagão alegrava sobremaneira as crianças.


A chegada a Sussex se deu por volta das dez da noite, a bagagem novamente descarregada e organizada em carruagens; no pátio de saída, os esperava um homem de meia-idade, suíças brancas emoldurando olhos cinza-azulados sem o menor resquício de brilho.

- Senhorita Charlton, eu presumo? – o homem se apresentou sem o menor traço de emoção, inclinando-se levemente – Sou Horace Thurnbull, guardião do inventário e do testamento de seu pai.

- É Senhora Meira agora, Sr. Thurnbull; este é o meu marido Júlio Meira, e estes são os meus filhos, Anna e Aurélio.

O homem pigarreou, como que a ignorar o constrangimento com a situação que se apresentava; limitou-se a dizer que os aposentos de Charlton House já estavam preparados para recebê-los; com gelada cortesia, sinalizou ao cocheiro que aproximasse a carruagem , onde então Agnes , Júlio e os filhos embarcaram, seguindo então para a casa; Thurnbull, então, embarcou num cabriolé e os seguiu.

Chegaram quase meia-noite; Agnes acomodara bem o pequeno Aurélio para que dormisse sem o incômodo dos solavancos; Anna, por sua vez, dormitava no colo do pai; a porta da carruagem foi aberta por um homem de porte altivo, magro, com um bigode meticulosamente arrumado; apresentou-se como Pritchard, o mordomo, que, tomando Agnes pela mão, ajudou-a a descer da carruagem; os dois lacaios que o acompanhavam se encarregaram da bagagem, levando-a para o interior da casa; Julio, carregando a filha, acompanhou a mulher, entrando na casa acompanhado do mordomo; lampiões foram acesos e, então, o Sr. Thurnbull despediu-se, avisando que viria por volta das duas da tarde, para a leitura do testamento.

A leitura do inventário e do testamento se fez conforme o esperado, com a listagem dos bens de Mr. Charlton, desde propriedades na França, uma villa nas proximidades de Florença, ações ao portador, além do controle acionário da firma do pai, Charlton & Co. tudo isso somado a uma renda anual de 150 mil libras.

Júlio observava impassível a leitura, pensando em como seria a vida daí por diante; uma coisa era ser escriturário, outra era ajudar Agnes a controlar e gerir tudo aquilo; guardou suas suposições para si, enquanto a voz tediosa e gutural de Horace Thurnbull continuava a listar os bens do falecido Sr. Charlton...