sexta-feira, 26 de julho de 2013

Anjos Felinos

 “Nem sempre os anjos são aqueles homens alados que tanto vemos nas pinturas e ilustrações; muitas vezes a Providência Divina nos manda criaturas que são mais à sua imagem e semelhança do que imaginamos” Ele era desolação, inconformismo, raiva. Mergulhou no álcool como um refúgio, como que quisesse matar a última humanidade que existisse nele. Queria acabar com as últimas lembranças que o torturavam, a lembrança dos que mais amava, arrancados dele num repente que nem ele mesmo se deu conta, sabendo depois de três meses de coma; daí mergulhou no vazio, na bebida, no abandono, no negar de si mesmo. Os que o viram antes se recusavam a acreditar no que ele se tornara. Várias vezes o levaram pra casa, sujo, um mero farrapo, a balbuciar palavras sem nexo; apenas Marta, a dona do restaurante que ele costumava frequentar, sabia que significados tinham aquelas palavras…Então, um dia, quando tantas vezes ele saiu trôpego pela rua, ela juntou as mãos e rezou, pedindo ajuda dos céus àquela alma torturada e doente… No universo dos bêbados, diz-se que o primeiro gosto que se sente de manhã é de “língua de cachorro”, onde o cão te lambe pra saber, de verdade, se você ainda está vivo… Desta vez, ao invés, foi um par de línguas pequenas e ágeis que o despertou de mais uma bebedeira. Acordou e percebeu que eram dois gatos malhados que o lambiam e roçavam as cabeças em sua testa, como que a querer fazê-lo acordar; os olhou com estranheza; “gatos não fazem isso”, pensou. Eles ficaram a observá-lo enquanto se levantava. Era domingo, não havia muita gente na rua. Ainda sob o efeito da bebida, ele tentou se equilibrar, apoiando a mão em uma parede. Os gatos ainda o observavam quando ele tomou o rumo de casa, num prédio não muito longe dali. Caminhava lentamente, um passo cuidadoso atrás do outro; então percebeu que os gatos o seguiam, um na frente e outro atrás, como a dar u’a “margem de segurança”, onde ele pudesse se equilibrar de forma mais segura; a primeira ideia foi de espantá-los pra que tomassem outro rumo, mas uma sensação estranha o invadiu, impedindo-o de fazê-lo. Uma sensação de inusitada familiaridade… O porteiro, acostumado sempre a vê-lo chegar sozinho ou carregado pelos amigos, estranhou quando ele entrou acompanhado dos dois felinos; na menção de afugentá-los, foi impedido por ele com um sinal de mão, e eles o acompanharam escada acima, até o quarto andar, na mesma posição de um na frente e o outro atrás, como se a guardá-lo. Ele entrou e os bichos entraram logo atrás dele. Mais um vez, achou estranho eles esquadrinharem a casa como se a conhecessem, parando depois num tapete que ele tinha um predileção muito grande, pois fora um presente dela no primeiro aniversário de casamento e onde ele, por mais que estivesse chegando cansado do trabalho, sempre ia brincar com a filha, que o recebia com o mais brilhante dos sorrisos…Agora nada mais que lembranças, dolorosas lembranças, que ele se aferrava, como que com medo de perder o ultimo elo que tinha com sua própria sanidade… Milagres podem acontecer das mais inusitadas maneiras… A chegada dos bichos abriu nele uma porta há muito fechada; pela primeira vez deu organização à vida, estabelecendo horários para as coisas. Começou jogando as bebidas de casa no lixo e adaptando o apartamento para as necessidades dos novos companheiros; um bebedouro e um comedouro no canto da sala, a caixa de areia na área de serviço; voltou a trabalhar, não mais no emprego anterior, mas em um que as pessoas eram o principal elo de contato. Pessoas que, igualmente, tinham bichos que precisavam de cuidado, de atenção, de um olhar amigo, de um toque carinhoso. As lembranças tão duras da morte da mulher e da filha agora eram não mais dolorosas; ainda assim presentes, agora eram, pra ele, razão de continuar vivendo, para honrar a memória delas. Os felinos passaram então, a ser sua motivação da semana, pra que ele sempre se sentisse mais uma vez amado. Chegava e eles sempre estavam à espera; ele se sentava no tapete, brincava com eles, tudo isso aliviando o cansaço do dia… Nessa noite, porém, algo inusitado aconteceu: Ao sentar no tapete, um deles aproximou-se e roçou a cabeça no lóbulo da orelha dele, num carinho que nunca tinha feito antes. Ele sentiu uma sensação diferente, não apenas de bem-estar, mas de como se reconhecesse aquele carinho, aquele gesto, há tanto tempo…o gatinho depois estendeu-se sobre os ombros dele e equilibrou-se com as patas dianteiras; o coração dele acelerou, os olhos se fecharam e ele ouviu uma voz que há muito não ouvia…E dizia “Esse carinho, papai, é pra saber que jamais ficarei longe do senhor não importa o que aconteça”. E então o animal o fitou nos olhos e ele enfim entendeu a sensação de familiaridade…O outro então saltou pra ele, roçou o focinho na ponta do nariz e o lambeu de leve; ele reconheceu o carinho que era da esposa, sempre que ele chegava do trabalho, que se seguia de um abraço intenso e apertado…ele ficou sem saber o que fazer; sabia que essa familiaridade tinha de ter uma razão; então, os dois animais ficaram diante dele, estenderam as patas e, no momento em que ele as segurou, ele então viu, além da simples visão dos animais, as imagens da esposa e da filha, como se elas estivessem frente a frente com ele; elas não falavam, mas ele sentia o que elas queriam dizer; que ele tinha de viver, querer viver, em nome do amor que as duas sentiam por ele. Ele quis chorar, mas as duas levantaram as mãos como que pedissem pra que ele não o fizesse… Ele viu então as duas desvanecerem como que por fumaça, e então compreendeu… No dia seguinte, ele foi ao restaurante e encontrou Marta no balcão, a arrumar uma pilha de copos; ela perguntou como ele estava e ele respondeu, com um novo brilho nos olhos, que havia reencontrado a vida; ela olhou fundo nos olhos dele e sentiu que as orações dela tinham sido ouvidas; de si pra si, disse “Obrigado Meu Deus, pela Tua Graça” Voltou pra casa, depois do trabalho, e viu os dois bichos no seu jeito felino de ser; sentou no tapete e brincou com eles, mas desta vez os sentiu mais parecidos como os felinos comuns, com seu jeito meio arisco, meio afetuoso. Percebeu então que elas vieram, naquele tempo, pra resgatá-lo, para fazer com que ele não se perdesse na dor e na desilusão; Sentiu que elas, vendo-o definhar, vieram para que ele não tivesse um destino cruel e escuro; eles passaram, mais ainda, a ser um elo do qual ele jamais se separou; quando chegou, então, o momento dele mesmo partir, eles o viram dar adeus, enquanto a esposa e a filha o esperavam, e o seu olhar era o mais terno dos agradecimentos…..