sexta-feira, 4 de julho de 2014

RESENHAS E AUTORES - VISÃO DE UM MARANHENSE SOBRE A ARTE DO BRASIL



Quero, em primeiríssimo momento, brindar à sua presença como leitor e apresentar uma série especial de "resenhas", não de livros, mas de artistas (e seus interiores); não a leitura de linhas - embora eu apresente alguns excertos -  mas uma viagem ao coração e à alma destes, sejam escritores, pintores ou de outras estirpes da arte; coração e alma, as verdadeiras fontes da genialidade...
Comecemos então...
Vendo os jogos do Brasil na Copa e o futebol sendo a moda do momento, nada melhor do que começar essa resenha sobre um autor pouco lembrado em nosso tempo que, no limiar do século passado, já antevia o futebol como um esporte que cedo conquistaria terreno nos corações do povo, podendo falar disso mesmo em razões de sangue, porque dois dos seus filhos foram intimamente ligados com o futebol, fazendo-o experimentar "a dor e a delícia" , como tão bem o disse Caetano...


Falemos então do tão injustamente esquecido Henrique Maximiano Coelho Netto. O "Príncipe dos Prosadores Brasileiros" era um grande entusiasta do futebol quando o esporte ainda nem era chamado assim (era chamado "ludopédio", um nome pedante demais que nem os ingleses falavam), sentindo o potencial desse esporte de agitar as massas. Seus filhos, Emmanuel ("Mano") e João ("Preguinho"), se deram de corpo e alma a ele, a ponto de um deles, Emmanuel, morrer numa partida, quando uma bolada no abdomen lhe rompe o peritônio; mesmo na dor, a pena corre pra fazer nascer MANO, um livro de crônicas da vida desse filho tão querido, fluminense de coração, jogador de rara habilidade. O livro é mais; é a pena elegante de Coelho Netto a descrever a dor da morte e da saudade;

"...A casa não dormia. Era a única na rua sossegada que se mantinha aberta e acesa durante a noite toda e, ainda que silencioso, ensurdecido pelos cuidados, o movimento nela era contínuo. Falava-se aos cochichos, e, volta e meia, no quarto em que ele sofria, vígilo, soava a exclamação angustiosa:
“Se eu dormisse uma hora!”
O sono, que enchia a casa, acabrunhando aos que o desvelavam - tantas noites despertos! - só não lhe chegava, a ele.
Os enfermeiros revezavam-se-lhe à cabeceira e, por toda a parte, em desordem, eram pacotes de algodão, ampolas, rolos de gaze, frascos.
De quando em quando alguém chegava-se à luz com o termômetro.
Em todo o caso havia esperança e, quando os pássaros começavam a cantar nas árvores e o céu desensombrava-se em rosicler e ouro, mais se animavam os corações.
“Se eu dormisse uma hora...!” arquejava, cansado, o pobrezinho.
O sol entrava a jorros. Era o dia e começava na rua o movimento.
Todos contavam vê-lo, de repente, sorrir, anunciando o alivio desejado e ele, rolando aflitamente os olhos, agitando-se no leito, ansioso, insistia nas palavras tristes:
“Se eu dormisse uma hora...!”
E, assim, passaram-se nove dias e nove noites, dias de tortura, noites em claro, longas, exaustivas, sem sono, gemidas, até que, ao fim da tarde décima, ao lento soar das sete horas, abriram-se-lhe muito os olhos, encheram-se-lhe de lágrimas e, entre nós dois, ela e eu, ele começou a aquietar-se, deixou de gemer para dormir, e adormeceu, enfim, não por uma hora, mas para não acordar mais, nunca mais!..."

Seu outro filho, João Coelho Netto, igualmente atleta magistral, teve a honra de ser o primeiro brasileiro a fazer um gol na história das copas, na Copa de 1930. Preguinho, como era chamado, mesmo depois da profissionalização do esporte recusou-se a receber qualquer incentivo financeiro por parte do clube, dizendo que jogava "por amor ao Fluminense e era o que o fazia ir em frente com o esporte". Priscos e tão saudosos tempos...
Gol de Preguinho (à direita) contra a Iugoslávia na Copa de 1930 (Fonte: Wikipedia)

Injustamente tornado em saco de pancadas dos modernistas, Coelho Netto foi em muitos aspectos mais modernista que estes, que encapsularam sua Semana de Arte Moderna sem sequer se identificarem com os ventos que agitavam o país nesse tempo. Muito mais antenado e centrado que os últimos, foi em defesa do movimento tenentista, que buscava  reformas políticas profundas no país, especialmente contra o sistema viciado da "política do Café com Leite", escrevendo mesmo um ensaio em defesa dos 18 do Forte, episódio que os "Modernistas de 22" passaram em brancas nuvens. O ensaísta e crítico Franklin de Oliveira , no seu texto "A Semana de Arte Moderna na Contramão da História" o redime.  Um autor que precisa ser mais e mais conhecido, neste Brasil de memória tão curta sobre sua própria glória...

Aguardem para a próxima: Nelson Rodrigues e a verve futebolística...