sexta-feira, 26 de outubro de 2007

A saga dos Shatov-Willingthorpe

Como eu prometi, aqui começa a saga de uma familia de guerreiros, de mulheres fortes e destemidas de homens valorosos e corajosos...Atravessando os séculos, de 1804 a 2007, emoções e intensidade...

Cabo Trafalgar,1804

Era uma sensação estranha o que sentia.
Um comando no mar era o que ele mais queria, pois não havia sido feito para ficar muito tempo em terra. O seu primeiro posto diplomático fora marcante por todas as razões: conhecera São Petersburgo, cidade reputada como uma das mais belas da Europa, fato que ele comprovara ao chegar; fizera amigos, como o conde Nikolai Shatov, almirante da Esquadra do Báltico, e sua irmã Ludmila, por quem ele se apaixonara. Ela lhe falara, e lhe mostrara, as paisagens do país dela, e ele lhe falara dos campos de Seagate Manor, perto de Portsmouth, lar ancestral dos Willingthorpe. Se apaixonaram de ímpeto, o amor sendo mais forte a cada momento, mesmo com a sombra de Napoleão sobre a Europa, e a Inglaterra apreensiva sob que direção a Rússia tomaria...
Afastou os pensamentos por um momento, pensando na situação presente. Os navios da Esquadra Mediterrânea Mantinham constante vigilância nos navios estacionados na costa da Espanha, pois, tendo destronado o rei Fernando VII e colocado seu irmão José Bonaparte no trono, O Imperador queria, a todo custo, controlar a esquadra espanhola para que, unida com a francesa, controlasse o Canal da Mancha e apoiasse a invasão da Inglaterra. "Se dominarmos o Canal por seis horas", dizia ele, "A Inglaterra estárá de joelhos frente a nós". Mas o Almirantado, antecipando a manobra, havia bloqueado a costa espanhola, impedindo quaisquer navios de sair do porto de Cádiz, o mais movimentado e sede da Armada espanhola.
Era essa a situação que Thomas Willingthorpe divisava de sua luneta. Como capitão do HMS Spearhead, estava mais perto da costa do que qualquer outro navio inglês, e podia mesmo ver, de sua coberta, os preparativos dos navios espanhóis e franceses. Sabia que logo haveria luta, e todos estavam ansiosos, especialmente o tenente Crowler, artilheiro-mestre. Queria logo trocar balaços com "Johnny Crapaud", como os marinheiros chamavam os franceses, aproveitando a palavra que significava "sapo". Todos estavam bem treinados, pois Thomas aproveitava o tempo para apurar cada vez mais a perícia de seus homens, especialmente os artilheiros, os quais eram os mais exigidos. Os mestres de velas também, pois ele sabia que a perícia nestas duas coisas seria a diferença entre viver ou morrer...
Com seu quarto de vigia no fim, Thomas passou ao tenete Bayan, mestre de velas, o quarto seguiinte. Em sua cabine, passou ao diário de bordo a seguinte nota: "Jogo de olhos e olhares; se não houver luta, cada olhar de lá e de cá será munição letal". Em seguida, deitou-se em seu beliche, e sua mente entregou-se Às lembranças...Ludmila..Vinha-lhe à memória o aroma de mimosa, as mãos suaves e ágeis, o cabelo castanho e os olhos azuis fortes, ele diria "como oceanos bravios". Lembrava das vezes em que se amaram, ela a conter a pressa de marinheiro, o amor apressado dos que vivem no mar; "agora estás em terra, meu almirante, caminhe devagar, ou navegue em meu mar tempestuoso, mas lentamente..." Cada toque dela estava gravado a fundo na memória....De repente, o chamado para o mar, quase sem tempo de se despedir...Ele quis dizer algo, ela o cala com um beijo;"não precisa dizer que me ama, pois seu amor está a gritar dentro de mim..."
Foi tirado de suas lembranças pelo aspirante Travers, que trazia uma mensagem do almirante Nelson, que o chamava para uma reunião a bordo da Capitânia, o HMS Victory, o mais poderoso navio da esquadra, armado com 120 canhões, quarenta a mais que o Spearhead. A nau capitânia inspirava confiança ao resto da esquadra, pois, quem seria capaz de superar o Victory?
O Almirante Nelson foi direto ao assunto, como era de seu estilo. A esquadra, caso os franceses se animassem pra lutar, não faria o molde clássico de formação de combate, ou seja, alinhar-se em arco, mas formaria uma cunha direcionada para o centro da esquadra inimiga, o que ficou conhecido como " Toque de Nelson". O Spearhead seria a ponta dessa cunha, trocando os primeiros tiros com os franceses. Mas isso dependeria do que franceses e espanhóis fariam. O Almirante Colingwood, um velho lobo do mar que, em seus cinquenta e seis anos de vida, só vivera sete meses em terra firme, tocou no ombro de Thomas e sorriu cordialmente
- Boa sorte, e comece a surra nesses malditos sapos, ou então morramos de tédio...
Logo que voltou ao navio, Thomas pasou a instruir a estratégia a cada um dos comandantes, oficiais e grumetes. Fariam, se possível, fogo de bordada, para que se infligisse grandes danos ao inimigo, antes que começassem a sofrer danos. Cada um já sabia o que fazer, depois de tanto teinamento, que poderia fazer seu trabalho dormindo...
A carruagem parou lntamente no jardim e ela desceu com cuidado, o ventre já da gravidez adiantada. A condessa Willingthorpe, mãos cruzadas, esperou-a já na entrada, a criadagem perfilada. Ela caminhou em passos lentos, cuidadosos, até que a condessa estendeu a mão e, depois, abraçou-a, dando um beijo carinhoso em cada uma das faces.
- Então é você que tem o coração do meu filho; as cartas dele a falar de você não estavam erradas.
- A honra é minha, condessa
- Somos mãe e filha agora, minha jovem. Chame-me Claire
Conversaram bastante, entre uma rodada de chá de camomila e biscoitos. Ela conversou do amor dela por Thomas, do casamento secreto, da gravidez, da celeridade com que ele havia voltado ao mar, e todas as outras coisas
- Acostume-se, minha filha... O mar é... Também um rival... - Hesitou a condessa por um instante - Traz nossos homens de volta, mas às vezes não..Mas isso é conversa de uma velha...Não me dê atenção...
Nesse momento, Thomas, em seu quarto de vigia, vê o que queria há tanto tempo: os navios franceses e espanhóis enfunavam velas, prontos a partir...Haveria luta!!!Ficou ao alcance de sinal e mandou mensagem ao Almirante Nelson. O tédio foi substituído por atividade febril, de escorvar os canhões e deixar as cargas preparadas. Tudo tinha de estar certo. O menor erro poderia significar ir para o fundo, ou coisa pior. Os oficiais e os homens mantinham as armas de mão prontas e carregadas, pois sempre poderia haver a possibilidade de abordagem. A esquadra fora dividida em duas, uma sob o comando do Almirante Colingwood, e outra sob o comando de Nelson; logo atrás dele estava o navio de Thomas. O vento favorável facilitou a concentração de forças, onde, se esperava, a perícia dos artilheiros e dos mestres de velas fizesse a diferença. A cunha já estava formada, avançando inexoravelmente na direção do destino...
A xícara de chá caíra com um baque estridente, e ela levara às mãos ao ventre., sentindo o líquido quente e viscoso escorrer pelas pernas, empoçando levemente a área a seus pés...
O filho de Thomas ia nascer...
Inexoravelmente, o Spearhead começava a se aproximar da distância de contato. Os artilheiros já estavam a postos apenas aguardando ordens. O adversário mais próximo, o Santíssima Trinidad, não esperou chegar ao alcance de tiro; disparou uma salva de bordo, mas o navio de Thomas não foi alcançado pelos disparos, que foram muito erráticos....Thomas apenas elevou a mão, e Timmy, o timoneiro, girou o leme, fazendo com que o navio desse uma guinada para a direita. Isso era o sinal para os artilheiros, que imediatamente, quase em uníssono, dispararam seus canhões. A bordada arrebentou o costado do navio espanhol, inutilizando o bordo de canhões superior. mas o trabalho ainda não estava terminado...Na popa, os artilheiros tinham uma outra arma, a caronada, um tipo de canhão que, em vez de disparar projéteis sólidos, disparava toda sorte de estilhaços, para saturar um espaço. Os disparos da caronada acertaram em cheio as cabines de popa, arremessando o capitão e os oficiais para fora do barco. Em questão de minutos, o navio espanhol estava reduzido a chamas e escombros...
Ela estava na plenitude de suas forças. Conseguiu andar até o quarto, acompanhada pela condessa, que, depois de pô-la na cama , mandou chamar a Sra, Haversham, uma excelente parteira. Ao chegar, ela trazia uma corda trançada grossa, que encaixou em cada bordo inferior da cama. Depois, pediu a Ludmila que segurasse firme aquela corda, que a criança nasceria bem. Ela apalpou a barriga, sentiu os movimentos do bebê, movimentos firmes e vigorosos. Já tinha visto partos demais, além do que poderia contar, e se orgulhava de jamais ter perdido nem mães nem crianças.
O trabalho de parto estava apenas começando. A batalha também.
Dois navios franceses, o Bravecoeur e o Chimére, se aproximavam do Spearhead. Thomas, habilmente, se posicionou a estar passando do lado dos dois, de modo que só um pudesse assestá-lo, evitando fogo cruzado. Por outro lado, a perícia dos artilheiros britânicos realmente estava fazendo a diferença, com os inimigos não tendo a mesma precisão. O Victory,sozinho, já havia incapacitado ou afundado pelo menos cinco navios espanhóis e dois franceses, e acabava de inutilizar e por fora de combate o Bucentaure, nau capitânia do almirante francês Villeneuve. Mas os inimigos não desistiam, e o Victory se viu sob a mira dos canhões do Redoutable, uma das naves mais combativas da esquadra franco-espanhola
Ela e o bebê estavam lutando. Ele, vigoroso e forte, vinha ao mundo com intensidade. As mãos, segurando a corda, mostravam a força que fazia, com os nós dos dedos já brancos. A condessa Willingthorpe a encorajava, enxugando-lhe a testa, enquanto a Sra. Haversham trazia mais uma criança ao mundo.
O Spearhead também lutava bravamente, atirando habilmente, explorando cada ponto fraco dos adversários que surgiam. Havia posto fora de combate o Chimére, mas o Bravecoeur dava sinais de não se render. Mesmo com os mastros arrebentados, ele ainda se mantinha em combate, o capitão gritando palavras de ordem da coberta. Mas um disparo certeiro o derrubou, e uma bordada restante selou seu destino.
Ludmila agora gritava com força, empurrando sua cria com toda a vontade que possuía, o fruto de seu amor ganhando cada polegada de sua chegada ao mundo. Lutavam juntas, as mãos hábeis da Sra. Haversham e a força de u’a mãe resoluta e apaixonada.
A batalha chegava ao seu clímax. A esquadra franco- espanhola estava completamente obliterada, e o sonho de Bonaparte de dominar o canal por seis horas se desfazia nas águas do cabo Trafalgar. Mas a vitória teria um alto preço: Na refrega com o Redoutable, um atirador, do alto do mastro do navio francês, acerta em cheio o almirante Nelson, que cai, quase sem forças, na coberta; a bala entrara pelas costas e saíra pelo peito, provocando a quebra da espinha. Levando para o convés inferior, morreria horas depois, mas com a notícia de uma completa vitória.
Ludmila continuava a lutar. Seu rebento vencia as fronteiras que lhe restavam para chegar e respirar seu primeiro ar. A mãe, com todas as suas forças, também lhe dava forças. Foi quando a Sra. Havesham gritou para a Condessa Claire:
- São dois, senhora! Dois filhos!
A condessa não cria no que se passava. Eram dois os rebentos que lutavam, o que significava um cuidado e, ao mesmo tempo, um risco maior...O primeiro, uma menina rosada e de olhos vivos, mesmo para uma recém nascida, despontava e dava seu primeiro vagido neste mundo. Rapidamente, a Condessa Claire a lavou e a acomodou no mesmo berço que ela acalantara Thomas, trinta e um anos antes. Um berço de carvalho, de um de tantos navios comandados pela família, que os fazia lembrar sempre de seu passado. Mas ainda havia mais um a caminho...ainda uma batalha a vencer...
Thomas ainda não sabia da morte do almirante. Continuava a lutar, a procurar pelo inimigo, como um leão incansável. Os disparos criaram uma névoa que tornava impossível identificar, ao menos por enquanto, quem era amigo de inimigo.. E foi aí que o Renard, um dos poucos que havia escapado do fogo inglês, se aproximou e fez sua salva. Os oficiais que estavam no tombadilho foram arrancados de seus lugares pelas balas e pelo cannister fire – carga de latas contendo bolinhas de chumbo. Thomas esquivou-se, ordenando ao artilheiro mestre; “Fogo à vontade”. Uma bordada ainda foi disparada, mas o navio francês atirou mais rápido, e um dos projéteis atingiu o paiol dianteiro, e uma horrível explosão ameaçou partir o navio em dois. Mas ele ainda resistia , e num último esforço, os artilheiros remanescentes usaram a caronada – uma das armas que ainda restavam - e fizeram um disparo apontando na linha d’água. O impacto quebrou o cavername, fazendo com que o navio francês adernasse. Daí pra diante, teriam de abandonar o navio, que também iria afundar.
O Spearhead também adernava, já anunciando sua despedida da batalha. Os tripulantes sobreviventes arumaram-se e começaram a abandonar o navio. Quando deram pelo capitão, encontraram-no caído, sob o calço do mastro principal, as mãos fechadas num crucifixo de prata com engastes de pérolas, sua primeira lembrança de Ludmila, que sabia que não veria mais...
- Capitão, deixe-me tirá-lo daí – Gaguejava o aspirante Travers
- Tarde demais, Travers. É minha vez agora. Vencemos?
- Sim Capitão, uma grande vitória...
- E os homens?
- Maior parte a salvo, Capitão, mas o tenente Bayan está morto, senhor.
- Pobre jovem... Mas vá embora Travers, antes que este seja o seu túmulo também..Vá!!!
O aspirante Travers bateu continência e abandonou o navio, se reunindo aos outros homens no escaler. Foram recolhidos pelo Euryalus, um dos navios na força do almirante Colingwood... À medida que iam sendo recolhidos, davam um último adeus a seu barco e a seu capitão, que tão corajosamente os comandara....
Thomas sabia que seria sua hora..Sentiu o sangue aflorar à boca, as forças a faltarem. Segurou firme o crucifixo de prata, pensou em Ludmila, e ela foi a última lembrança e a última palavra que vieram em à sua mente, antes de seus olhos se fecharem e o mar dar seu abraço de morte... ”Amo-Te, Ludmila, um dia estaremos juntos.”,
Foram suas últimas palavras
Nesse momento, o segundo filho de Thomas Willingthorpe nascia, Um menino de cabelos castanhos, quinze minutos depois da irmã. Seu choro era alto, e intenso, e surpreendeu Lady Claire. Era um choro sentido, um choro que se dava quando se perdia alguém... Ela o acomodou, e Ludmila estava, agora, sem forças, mas feliz por ter dado dois filhos ao seu amado, a continuação de um amor forte e belo...Ela agora precisava descansar, pois logo veria seu amado....
De repente, um vento frio e cortante sacudiu as janelas do quarto, fazendo-as bater. Lady Claire sabia o que aquilo significava – aquele sinal era conhecido da família – Ludmila também sentiu aquilo, e um arrepio percorreu-lhe o corpo, fazendo-a tontear. A Sra. Haversham deu-lhe láudano e ela adormeceu profundamente...
- Ela terá de ser forte – A Sra. Haversham sabia o que queria dizer aquele sinal.
- Ela será, ela será.
Assim começava a saga dos Shatov- Willingthorpe.
Os gêmeos se chamaram Nigel e Nadejda.

Um comentário:

  1. Thomas,que vc tenha muito sucesso nesta nova empreitada, pois tens todo potencial criativo para brilhar, entre os grandes escritores.
    Conte sempre com as preces desta tua amiga de sempre.Parabens, és um homem sábio e rico em potencial, espanda-se e não pares.Sucesso amigo, e que tudo que escreves seja reconhecido e valorizado sempre.Beijos com carinho pra ti.Continuarei acompanhando dia a dia,e sempre que conseguir,deixo meu comentário de uma leiga absoluta,mas que aprecia a boa leitura.

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A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!