terça-feira, 11 de maio de 2010

Uma História, um tempo

Alemanha ,Novembro de 1932
A atmosfera esfumaçada escondia as faces dos clientes, fazendo a diversidade parecer uniformidade. Cigarros, cigarrilhas em piteiras elegantes ou mesmo charutos eram as máscaras desse momento momento.As jóias, como competitivos adereços, eram parte daquela disputa de aparências. Todos queriam mostrar que tinham que possuíam, que eram L'élite. Todos estavam felizes, parecia que aquele momento iria durar pra sempre...
O mestre-de-cerimônias chega, maquiagem branca escondendo o rosto de muitos espetáculos, de muitas magias, de muitos talentos...Ele se aproxima, e, em gestos largos mas ágeis, faz uma mesura exagerada ao público enquanto se apresenta.
- Bem-vindos, meus amigos!Deixem suas tristezas lá fora!Aqui é lugar de diversão!Nada de lágrimas e sim, sorrisos! Bem-vindos ao KIt Kat Club!
Então, a canção de abertura. As coristas, ladeando o mestre de cerimônias, dançam ao som de "Wilkommen, Bienvenu, Welcome/Fremde,Étranger, Stranger/Gluklich zu sehen/Je suis enchanté/Happy to see you, bliebe, reste, stay.
/Wilkommen,Bienvenue, Welcome/Im Kabaret/Au Cabaret/To Cabaret"!

A dança excita, desperta sonhos, imaginações. Todos desejam aqueles corpos, aqueles movimentos; alguns mesmo já se imaginam com elas, em algum carro no Kufürstendamm ou mesmo em um quarto de hotel em Bad Wiesse. Assim era a Berlim antes da derrocada...
Mas todos, em verdade, a esperam. Ela. A voz. O corpo. A dança. A saudação entra em seu finale. Ninguém mais resiste. Assobios, gritos, delírio. Todos a querem
-Kitty Winters!Kitty!kitty!Kitty!
Ela se alimenta daquela ovação. Um arrepio quase orgástico a percorre. Ela se deixa levar pelos aplausos, pelos pedidos, e, como se embalada por algo invisível, as luzes se acendem, e ela desfia a voz:"Bye, Bye Mein Lieben Herr/Bye,Bye Mein Lieben Herr/You made me happy a lot/But now is over/You loved me so fair/But I need some open air/You'll go ahead/without me/Mein Herr..."A última sílaba parecia levitá-la, tão graciosos eram seus movimentos.
Ela se debruçava no pequeno palco, e os homens lhe
atiravam marcos, jóias, peles. Ensandecidos, alguns mesmo atiravam chaves de casas. Ela poderia ter tudo o que quisesse naquela noite...
Mas nas ruas, as danças eram outras. Danças da morte, Danças de poder. As milícias da Röttekampverband e das SA disputavam palmo a palmo cada centímetro de rua, cada beco. Do Unter Ten Linden ao Tiergarten, o sangue corria nas ruas. Uma era dava adeus. Uma efêmera era de intensidade artística dava seu adeus em sangue. Os nazistas ganhavam terreno...
Lá dentro, era um outro mundo. Ela, à luz dos refletores, era como uma deusa intocável, adorada por uma legião de fiéis enlouquecidos. Os cabelos negros, à la garçonne, eram um toque de desafio, uma transgressão que a fazia muito mais atraente. Os olhos grandes, de um verde translúcido, eram uma fonte de intensidade. E ela dançava, os bailarinos a tê-la no ar, como um pássaro em vôo triuinfal..Ela sentia algo mais, como se aquela noite, a mais especial de todas, fosse única...
A cidade, finalmente, eclodira o ovo da serpente. Não havia mais nada o que fazer. O inexorável avançava. Mas quem queria saber disso lá dentro do Kit Kat? Todos a queriam , todos a admiravam, e, mesmo a distância, tinham seus sonhos...
O mestre-de-crimônias a envolve num abraço por trás, culminando a descida dos bailarinos. Eles dançam uma coreografia de isílio, que se transforma em uma sedução intensa e forte, as mãos de ambos descobrindo, tateando, sentindo. É muito mais que L'Aprés-Midi D'un Faune, mais forte, mais insana até. Eles se deixam dominar, e, então os refletores amortecem a luz, com as sombras se fundindo em uma só...Rompe um uníssono aplauso na platéia, o nome dela como um hino:"Kitty!Kitty!Kitty!". Ela é carregada nos ombros, todos querem oferecer uma taça de champanhe, ou fazê-la compartilhar da mesa, mas ela elegantemente declina, e apressadamente se dirige aos camarins...
As suásticas são mais fortes que as foices e os martelos. Os últimos são completamente obliterados, não há mais sinais deles.
No camarim, ela retira a maquiagem, o batom, e,
simplesmente, passa a ser mulher. Ela sabe o que fazer , o que precisa fazer. O mestre-de-cerimônias, agora um rosto de expressão forte e olhos penetrantes, a fita sem nada dizer. Ela tenta dizer algo, mas ele a cala com um beijo. Os corpos agora não dançam mais eles se entregam a outro balé, mais intenso e desejado. Os dois parecem flutuar no ar, os movimentos como asas de borboleta, a serem levados pelo vento, que se trnasforma mais e mais em tempestade. Poesia de sons sem sentido, de gemidos de uma coreogrfia intensamente espontânea. Ele arrefece sua força, ela extenua no âmago de sua chama. Eles amortecem-se um no outro, os dois vivendo aquele momento como se fosse o último...
Eles deixam o clube pelos fundos, entre o movimento das ruas agitadas. Um carro os espera nos fundos. Não há palavras., Tdos sabem pra onde vão. A viagem é longa até o posto de fronteira. Ele olha ainda uma vez para a cidade, a cidade que fez dele o que ele era, e, ainda uma outra olhada para a sinagoga, e ele lamenta tristemente...
A cidade então mergulha em suas trevas. Trevas que serão mais do que escuridão. serão escuridão e tortura. Ela apóia a cabeça nos ombros dele, as lágrimas rolam nas faces. Ela se deixa entregar ao cansaço...
- Será que ainda voltaremos, Peter?
- A cidade que sempre conhecemos acabou de morrer, Liebschen. Jamais será a mesma coisa.
O carro atravessa a Brandemburgen Tor, na direção da estação ferroviária. Ela vê os grupos de jovens com as suásticas nos braços, a cantar a plenos pulmões seu hino, "Morgen Gehört Mi", "O amanhã me pertence". E rumarem para o centro. Ela chora, pois uma parte dela morre, ao mesmo tempo que a cidade...

Um comentário:

A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!