sábado, 21 de março de 2015

CONTOS DA GUERRA ESQUECIDA - O TEMPO SE DESDOBRA

Ela abriu a caixa devagar, absorvendo o odor de antigo que emanava de dentro; observou cada item com um interesse não tão grande, pensando em como o pai pudera juntar tanta coisa nesse tempo todo. Percebeu que a caixa era dividida em compartimentos, sendo que o primeiro continha uma caixa de veludo vermelho, amarrada com um laço de seda da mesma cor; um retrato com moldura de prata, onde um jovem de uniforme, o garbo em pessoa, encarava o observador; uma luva branca de seda, com um chamusco leve, estava colocada no centro do compartimento.

Retirou o primeiro compartimento sem mexer nos objetos; queria se ater de tudo que havia, sem começar a assuntar muito; queria sentir o pai, entender o que ainda ela não atinava, o que ainda não sentira em espírito; tinha apenas uma tênue noção do que o pai queria dizer, mas ia muito mais por respeito do que por real interesse; no segundo compartimento estavam um sabre curto, com pontos de ferrugem; um manto ou colcha, com desenhos que pareciam ser de pessoas, umas de uniforme, outras não, um tubo fino, de comprimento médio, que parecia ter sido parte de algo maior;  ao lado dele, um saco com o que pareciam ser botões de uniforme, dado o que ela conseguiu enxergar na estopa;  um clarim, com a boca torta e com um rasgo , como se fosse feito com algo afiado.

No fundo da mala, num canto, um envelope pardo grosso, amarrado com barbante, fazia companhia a uma barretina militar antiga e dragonas douradas; perto delas outro envelope, mais novo, parecendo ter sido o último item colocado ali; numa intuição, ela pegou o envelope e o abriu; havia um bilhete, ela de pronto reconhecendo a caligrafia miúda do pai, inclinada para a esquerda.
          
“Cara Eliza
             
Você está de posse não apenas de um caixa com objetos, mas uma cápsula de memórias, não de feitos ou façanhas, mas simplesmente de pessoas; essas pessoas falam através destes objetos que agora tens nas mãos; tudo está no envelope maior; espero que leias com atenção e percebas a alma que emana de cada coisa aqui; sua mãe, que Deus a tenha, sempre dizia que era perigoso demais mexer com o que estava morto; que o passado era o que era, passado, e não devia se mexer; mas algo me levou a saber dessas pessoas, algo que até hoje não sei explicar; antes de tecer qualquer juízo, sinta primeiro o que essas pessoas têm a dizer; aí,  decida o que fazer...Na caixa menor há outras coisas que quero que vejas.

Teu pai

Silvano”

Foi até o quarto, pegou a caixa menor e a abriu; o primeiro item  que viu era outro envelope , um pouco menor que a caixa, que, ao ser aberto, revelou um grupo de fotos antigas; em algumas delas reconheceu o pai, do mesmo jeito elegante, só que sem a calva que viria depois com a idade; tinha um sorriso jovial e expansivo; numa delas, reconheceu Carlos Lacerda, que, ao que o pai falava, o iniciara no jornalismo; em outra, viu-o na companhia de duas moças, uma das quais reconheceu como sua mãe, num amplo salão que parecia ser uma sorveteria; 


a última, porém, chamou a atenção por ser a única que tinha data; no canto superior direito, lia-se “Antônio Ribeira, março de 1955”; mostrava-o ao lado de um homem muito idoso, de barba branca hirsuta, no que parecia ser algum tipo de hospital ou sanatório; a foto os mostrava sentados como se conversassem, acompanhados por pessoas que vestiam jalecos brancos de enfermeiros;

Lembrou-se então de que o pai mencionara uma vez o nome desse homem na primeira mensagem que deixara a ela; lembrava-se também de uma senhora com o mesmo sobrenome, beneficiária no testamento; mas o que será que esse homem teve de tão importante na vida dele, a ponto de citá-lo com grande deferência? Eram perguntas que ela precisava responder...

Voltou, então, para a caixa maior, pegando o envelope que estava junto da barretina; estava ali havia tempo, pois amarelecera e se fragilizara, mas não o conteúdo; ele quase se desmanchou ao abrir, revelando um grupo de doze cadernos de notas pautados Moleskine amarrados com elástico em grupos de quatro; ela desamarrou o primeiro grupo e abriu um deles; reconheceu a letra do pai, lembrando das anotações cuidadosas que costumava fazer; nunca deixava de ter sempre alguns, comprados na papelaria Oriente, prédio de elegante fachada mourisca que ficava a seis quarteirões de casa; ele dizia que eram “seu cérebro de reserva”, embora tivesse memória prodigiosa; gostava de anotar as coisas, fazendo registros de tudo.



Os cadernos estavam em sequência, com números de papel celofane dourado recortados e colados nas capas azuis; ela pegou o primeiro nas mãos e começou a ler; começava a conhecer aquilo que o pai tanto pedira para descobrir; agora, o tempo se desdobrava, acordava, se revelava; ela se lembrou do que o pai escrevera; “cápsula de memórias, não de feitos ou façanhas, mas de pessoas”. Ela dava o primeiro passo na direção delas...


3 comentários:

A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!