domingo, 28 de outubro de 2007

A saga dos Shatov-Willingthorpe - Parte II

BAÍA DE NAVARINO, GRÉCIA, 1827

As duas frotas estavam à vista. Nenhuma delas tomou a iniciativa de disparar. A frota turca, com seus navios de velas triangulares, tomou formação de semicírculo, aguardando a iniciativa inimiga. Mas ela não vinha. No tombadilho do HMS Longbow, um jovem oficial de cabelos castanhos e olhos azuis vivos perscrutava a linha de navios com sua luneta, vendo a disposição dos navios inimigos. A frota turca impressionava pelo tamanho, mas ela talvez não tivesse a habilidade nem o treinamento dos marinheiros europeus ali reunidos. Ingleses, franceses e russos estavam prontos para desafiá-la, a chamado dos insurgentes gregos, que em desespero clamaram a embaixadas e consulados no mundo inteiro.
- Ansioso pela luta, jovem Willingthorpe?- Perguntou o oficial alto, de suíças grisalhas, ao se aproximar dele.
- Como qualquer um deles, senhor, assentiu com um gesto de cabeça.
Assim estava Nigel Shatov-Willingthorpe, segundo em comando no Longbow, capitaneado por Simon Travers, o mesmo que serviu como aspirante de seu pai em Trafalgar, e que tinha sido o último a vê-lo com vida antes do seu navio, o Spearhead, afundar na batalha. Travers tinha sido o mentor de Nigel na Academia Naval, e acompanhava com interesse sua carreira. Trouxera-o para a divisão experimental, onde eram testados os novos barcos, e ele se sobressaíra como um hábil e disciplinado oficial, a imagem de seu pai. Simon se sentia em débito com o pai de Nigel, como se quisesse fazer pelo filho o que não pôde fazer por ele..
Mas a calmaria havia acabado. Um disparo de artilharia de costa, feito contra o navio francês Gallimard, começou a refrega. Os canhões turcos, ainda de alma lisa, nada podiam contra as armas de alma raiada dos navios europeus. O Longbow, sozinho, já pusera fora de combate ou afundara pelo menos oito embarcações, enquanto franceses e russos faziam um estrago ainda maior. Nigel teve seu batismo de fogo quando destruiu, com os canhões de vante, uma chalupa turca que tentava abordar seu navio. A batalha, depois de quinze minutos, estava terminada. A Grécia não era mais Otomana.
Nigel se perguntava onde estaria o amigo Byron, seu colega em suas folgas da academia. Sua mãe, a condessa Ludmila, não o aprovava muito, mas não proibia sua amizade com Nigel. Na Suíça, ele conhecera a irmã de um dos amigos de Byron, Mary Shelley, mulher de cabelos longos e loiros, alta e altiva, que formava, junto com o irmão, Percy, e um amigo, Keats, uma espécie de “elite intelectual” inglesa na Suíça.. Ela o atraiu muito, e viveram, mesmo brevemente, uma história apaixonada... Mas as responsabilidades falavam alto, e ele deixou a vida idílica para voltar à Academia Naval. Ele ainda não sabia que Byron morrera de febre, em Missolonghi, e Keats morrera afogado num lago próximo à sua casa, e Mary e Percy tinham viajado para o Egito. Agora, ele voltava suas atenções para a batalha, e para novas histórias, e elas estavam apenas começando...


MAR DA CHINA MERIDIONAL, 1838

A bruma impedia a visão da costa, mas ele sabia bem onde estava Não era a primeira vez que cruzava aquelas águas, mas a atenção tinha de ser redobrada, pois a situação não somente do mar poderia ficar tensa, mas a do país também. A sua missão era, com o HMS Serapis, levar o alto comissário britânico para a China, sir Henry Poittinger, a fim de resolver um impasse. Impasse este que seu próprio governo criara, ao substituir a prata com que negociava com os chineses por ópio. Ele já vira os malefícios que aquela droga terrível causava, ao ver seus amigos Percy Shelley ,Keats e Byron se destruírem.
Mas a balança de pagamentos em prata estava causando prejuízos à Companhia das índias Orientais, que procurava uma forma de reverter essa situação, e a forma encontrada foi o comércio de ópio. Mas, para não se ver completamente envolvida, a companhia passou a contratar os serviços de “privateers”, que traziam o ópio da Índia – seu monopólio era ciosamente guardado – para ser negociado na China. Desde a viagem de Lord McCartney, em 1794 – o pai de Nigel, Thomas, tinha sido comissionado para a viagem – tinham sido impostas regras rígidas para o comércio com os chineses. Só se podia comerciar com agentes comissionados pelo governo imperial os chamados “Co-Hong”, e apenas se podia comerciar produtos que os chineses assim aprouvessem. O semi-isolamento fez desses agentes pessoas extremamente corruptas – e ricas – num circulo vicioso que estava longe de acabar..
Um desses “privateers”, que iria se encontrar com Nigel naquele ponto do mar da China era Malcolm Struan, um escocês de rosto largo e olhar duro, fundador e “Tai-Pan” – Senhor Das Riquezas, em chinês - da Casa Nobre, a mais antiga casa comercial no Extremo Oriente. Ele já havia arrancado dos chineses – com um misto de força e persuasão convincente – uma faixa de ilhas na foz do Rio das Pérolas, mais precisamente uma ilha rochosa desabitada, denominada Hong Kong, e ali estabeleceu a sede de seu império pessoal. Controlava uma grande frota de contrabando de ópio ao longo da costa. Tinha barcos armados que faziam a segurança de seu negócio e era um homem famoso por não ter meias palavras.
Não demorou muito para que os mastros de uma Lorcha – embarcação mista de casco de desenho ocidental e velas de quarto com varas – tipicamente chineses – despontasse por entre a bruma. Com a luneta, pôde ver a figura de Malcolm Struan na proa, a mão apoiada na amurada. Ancorando a uma distância segura, Struan, de escaler, aproximou-se do HMS Serapis e sinalizou, pedindo permissão para subir a bordo. Uma escada foi baixada e em questão de minutos estava a bordo do navio inglês.
Sir Henry Poittinger, alto comissário do Parlamento, o esperava no tombadilho. Os dois trocaram olhares e se cumprimentaram secamente, antes de adentrarem a cabine principal. Nigel observava a cena. Imaginando até onde poderia ir a conversa entre os dois. A primeira vez que vira Struan tinha sido dois anos antes, quando quase abrira fogo contra ele, mas depois se tornaram – até certo ponto – amigos. Ele não concordava com o que ele fazia, mas guardava essa reserva para si.
Numa conversa de quase duas horas, Struan cientificou – ao menos por um lado – o que ocorria com o comércio com a China. Falou das ações de um comissário chamado Lin Zexu, que começara uma campanha sem precedentes contra o consumo e o comércio de ópio, ameaçando até mesmo as legações estrangeiras, em Tientsin e Xangai. Ele seguia pelo país, com tropas armadas, com total autoridade concedida pelo imperador, desalojava comerciantes e punia severamente quem estivesse negociando ou escondesse ópio em sua casa. Agora, ele chegara ao extremo de cercar as legações estrangeiras, exigindo que fossem entregues as caixas de ópio ali armazenadas.
Nigel escutara a conversa com uma expressão pétrea. Não concordava com a atitude governamental para com o ópio, mas era dever de ofício obedecer a ordens superiores. Numa de suas últimas visitas a Londres, ele conhecera no Navy and Army Club um jovem oficial que tinha idéias muito pouco ortodoxas a respeito da política. Seu nome era Charles George Gordon e tinha acabado de chegar da China, e falava pra quem quisesse ouvir o descaso e a cupidez dos ingleses em relação aquele país. Aquilo cheirava a insubordinação, mas ele escutou atentamente o jovem oficial, e, em algumas partes, não deixou de dar razão a ele.
Após o fim da conversa, Struan retornou à lorcha e tomou o rumo de Hong Kong. Nigel navegou para Shangai, onde já o esperava Sir Charles Sommerville, comandante da esquadra do Extremo Oriente. Ainda não havia uma representação diplomática propriamente dita; assim, Sir Charles era a mais alta autoridade britânica na região, e poria Sir Henry Poittinger a par de outros pormenores da situação. Sir Henry não confiava em Struan nem por um minuto. Sabia que esses “privados”, muitas vezes, excediam as prerrogativas, e causavam muita confusão naquelas paragens.
Logo após desembarcar Sir Henry e providenciar os devidos alojamentos – Ele e sir Charles teriam muito que conversar – cerificou cada detalhe do navio antes dele mesmo desembarcar. Um vulto familiar já o esperava. Sao Feng, mercador de chá de Hankow, era amigo de Nigel desde que ele o salvara de piratas há um ano, e era uma amizade tal a ponto de São Feng – homem rico e de um grande coração – ceder uma de suas propriedades a Nigel para que ele não tivesse de usar os alojamentos da marinha. No início, ele recusara polidamente, mas acabou aceitando, pois era um solitário naquele lugar, e São Feng, irredutível, apenas respondia: “a dívida de uma vida não tem preço que se calcule, Honorável Willingthorpe”. Tornaram-se grandes amigos. Mas Sao Feng, desta vez, trazia uma expressão apreensiva.
- Honorável Willingthorpe, desculpe o rosto de chuva, mas verdadeiramente há tempestade a caminho.
- Como assim, Sao Feng?
- O cerco às legações, honorável amigo, era antes uma obra de espionagem, agora, ao que parece, será ação militar direta. Lin Zexu apenas aguarda uma deliberação do Imperador.
Caminharam até a saída do porto, e tomaram um riquixá até a casa de Nigel. Estranhamente, não estava surpreso. Isso explicava, em parte, o encontro de Sir Henry Poittinger com Malcolm Struan em águas internacionais. Qualquer um dos dois poderia simplesmente negar aquele encontro, se as coisas chegassem a um nível crítico. São Feng se mostrava preocupado, e não sem razão. O imperador Daoguang, que sucedera ao longo reinado de Qianlong, era um governante bem intencionado, mas não tinha a força nem a personalidade de seu pai, que simplesmente não deu importância para a expedição de Lord McCartney, em 1794, respondendo secamente que “meu povo não tem necessidade de suas engenhocas industriais”. O governo de Sua Majestade não iria permitir uma afronta dessas durante muito tempo.
- Vá à minha casa esta noite, Honorável Willingthorpe, haverá alguns amigos meus que acho que gostará de conhecer.
- Estou um pouco cansado, amigo Sao Feng, mas acho que irei, sim.
Ela atraía atenções onde quer que fosse. Não somente pela beleza – tinha cabelos castanhos e olhos azuis muito vivos – mas porque passava longe dela a frivolidade ou a futilidade. Era uma mulher que, longe de permanecer circunspecta e esperar a iniciativa, era ela a iniciativa em pessoa, e nada escapava ao seu ímpeto. A mãe, ao tentar domá-la, apenas recebia a resposta “é nosso sangue, mamãe, somos feras da tajgá”, dizia ela, e desarmava a mãe, pois Ludmila sabia de onde vinha todo esse ímpeto. Era o mesmo ímpeto que fizera o pai se apaixonar por ela, muito tempo antes. Agora, ela o via representado na filha.
A condessa estava preocupada com a situação na China. Sabia que a missão do filho era delicada; ele não dizia nada nas cartas, mas ela sabia, em seu íntimo, o quanto era perigosa a situação. Também recebia correspondência regular de seu irmão, que a informava dos acontecimentos. A filha, atenta à preocupação da mãe, a observava curiosa
- Nigel é corajoso e esperto, Mamitschka, ele se sairá bem.
A mãe confiava no filho, mas ela sabia o que era estar longe, e receber, apenas por augúrios, uma notícia boa ou ruim. Lembrava do seu amado Thomas, morto em Trafalgar, quando o vento cortante e frio entrou na casa, avisando-a da morte dele quando seus filhos acabavam de nascer. Sentia falta de Lady Claire, sua sogra, que havia morrido há onze anos. Ela foi a fortaleza que a apoiou e ajudou-a a criar os dois filhos, e que, sem ela, talvez não tivesse conseguido. Jamais se casara de novo; ela casara por amor, apaixonada, e apaixonada trouxera seus filhos ao mundo
Agora, ao ver a filha diante dela, via como tinha sido afortunada; eles cresceram belos e inteligentes, Nigel se destacando em sua carreira como oficial, e Nadejda – que ela chamava de Nadya – uma bela e deslumbrante mulher – talvez até deslumbrante demais – que desarmava qualquer homem diante dela. Ludmila imaginava se algum dia ela ia se deixar domar pela paixão. Ela freqüentava as rodas de intelectuais e poetas da moda – muitas vezes ela fazia reuniões desses artistas em Seagate Manor; mesmo Byron e Mary Shelley um dia lá estiveram – e não se deixava levar pelas opiniões dos que diziam – mais por inveja do que qualquer outra coisa – que ela devia “conhecer seu lugar e se portar como uma dama”. O que acontecia era que, na verdade, os homens a temiam por ser exatamente o que eles jamais esperavam – uma mulher com a determinação mais intensa do mundo...
Depois de descansar um pouco, Nigel resolver ir ao jantar oferecido por Sao Feng. O riquixá o deixou pontualmente às oito no portão, onde ele foi conduzido por um dos criados ao grande salão da casa. Archotes iluminavam o caminho de pedras que conduzia à área central da casa, onde estavam Sao Feng e seus convidados. O grupo era bastante variado, constituído, em grande parte, de clientes que negociavam chá com o anfitrião. Uma figura chamou imediatamente a atenção de Nigel. Ela possuía um rosto gracioso, arredondado, olhos verdes e penetrantes. Estava acompanhada de um senhor de barba grisalha hirsuta, de compleição física robusta, de olhos também verdes, mas de aspecto mais duro, sem o brilho da mulher que o acompanhava. Mal viu Nigel, Sao o conduziu ao centro.
- Honorável Amigo! Que bom vê-lo aqui! Permita que eu apresente alguns bons amigos. Este é o senhor Estevão Monforte, de Macau, e sua filha Leonor.
- Encantado, senhor Monforte. E igualmente encantado, senhora Leonor.
Estévão Monforte surpreendeu-se de Nigel dominar o português. Mas Nigel dominava a língua porque a aprendera em suas viagens pela costa ocidental da África, quando caçava navios negreiros. Uma vez, numa de suas missões de apresamento, conhecera um marinheiro chamado Matias, e este deu-lhe um livro de presente, chamado “Marília de Dirceu”, de um poeta brasileiro chamado Tomás Antônio Gonzaga, que havia sido exilado por conspirar contra a coroa portuguesa. Nigel apaixonou-se pelo idioma, que parecia conter uma alma em cada palavra, um brilho em cada sílaba e preposição.
Ele conhecia Estévão Monforte, porém, de outras razões. Ele era um dos mais intrépidos traficantes de escravos da costa Ocidental da África, e era imensamente rico. Com a campanha do reverendo Wilbeforce pela libertação dos escravos e com a decretação do “Bill Aberdeen” – o mandato de autoridade da Marinha Real para capturar ou mesmo afundar navios negreiros - Monforte rapidamente mudou seu negócio, reciclando sua frota de navios para o comércio do chá, e, ocasionalmente, algum ópio. Ainda era conhecido, em sua terra natal, como “O Negreiro”. Nigel só não sabia que ele era pai de uma filha tão bela... Os olhos verdes de Leonor eram como esmeraldas de um fulgor raro... O rosto, emoldurado por cabelos negros e brilhantes, parecia irradiar algo que o deixava completamente à mercê dela...
Naquela noite, o sono não o encontrou. Embora estivesse frio, ele suava. Sabia dessa sensação. Tivera-a quando do romance com Mary Shelley, uma sensação que o tirava de esquadro, o desorientava. Ainda tinha na mente os olhos verdes e brilhantes, os cabelos negros, como um manto de seda. Leonor. Um nome tipicamente português. Um nome que, para ele, era mais que um significado. Ainda estava com o perfume dela em suas mãos, uma rara combinação de essências, na qual o jasmim predominava... Sentia-se ainda enlevado pela lembrança dela a dançar com ele, como se mais ninguém estivesse ali. Pela segunda vez, alguém penetrava a muralha de seu coração. E ele sentia que, dessa vez – algo dentro de seu ser dizia – não seria efêmero o que sentiria...
O dia, porém, revelou-se como a tempestade que Sao Feng havia previsto. Atendendo a uma ordem do Imperador, tropas comandadas por Lin Zexu apertaram o cerco contra as legações estrangeiras, para que entregassem o ópio estocado nos armazéns. A estratégia usada por ele foi cortar qualquer suprimento às legações, fazendo com que o ópio fosse entregue em troca dos suprimentos. O cabo de guerra estava já em seu ponto de ruptura, e nenhum dos lados queria ceder. A casa de Nigel ficava fora do quarteirão das legações, e ele tomou rapidamente um riquixá para o porto, onde os ânimos já estavam exaltados. Os chineses tinham um ódio velado pelos estrangeiros – embora uma dinastia estrangeira estivesse no poder;os manchus que a compunham não eram chineses – e qualquer oportunidade para extravasá-lo era aproveitada. Procurou inteirar-se do que acontecia, e encontrou Sir Henry Poitinger de pé, acompanhado de uma guarda armada.
- Esses demônios nos cercaram! Exigem que entreguemos o ópio que está armazenado.
- E o que está sendo feito?
- Estamos tentando ganhar tempo e parlamentar, mas não sabemos o que pode ocorrer
- Vou ao meu navio e ficarei a postos
- Faça isso. Tentarei ver o que posso fazer.
Nigel sabia que as legações estavam numa enrascada. O corpo militar a serviço das legações não tinha mais que mil homens, e Lin Zexu contava com mais de trinta mil homens espalhados pelas cercanias da cidade. A situação começava a se tornar insustentável, com a fome e a sede começando a se tornar conselheiras. As potências se dividiam entre entregar ou não o ópio. Ele podia dar algum apoio de artilharia com seu navio, mas isso não adiantaria muito. A superioridade em homens de Lin Zexu acabaria por selar a sorte de todos. Tinham de jogar com o tempo, com a sorte e com o destino...
Por fim, Nigel já estava na ponte do Serapis, no aguardo dos acontecimentos. As tropas de Lin Zexu já se posicionavam ao redor do quarteirão das legações, apenas aguardando ordens. Ele sabia que seria apenas uma questão de tempo até que os soldados imperiais batessem a pequena tropa de guarda das legações, invadissem o quarteirão e capturassem os armazéns. Poderia dar algum apoio de artilharia com os canhões do navio, mas o risco de atingir casas era muito grande. Podia, quando muito, adiar o inevitável. Ele se perguntava onde estariam Estevão Monforte e sua filha...
Suja divagação foi interrompida por um aviso do oficial de vigia, sobre um nadador misterioso a caminho do navio. A guarda de bordo se aprestou a tomar os fuzis e disparar, mas uma ordem de Nigel, eles estacaram. Ele reconheceu o nadador. Era Chen, um dos criados de Sao Feng. Mandou que jogassem uma corda, e, em minutos, o criado estava a bordo.
- Trago notícias de meu senhor, Honorável capitão.
- Muito Obrigado, Chen. Agora se seque e descanse.
- Obrigado, honorável.
Abriu o pacote de couro que o homem trazia, que continha uma carta de Sao Feng, avisando de outra concentração de tropas mais ao norte das legações, pronta a agir. Lin Zexu não estava brincando. O prazo dado por ele – setenta e duas horas – estava se esgotando, e os diplomatas estrangeiros estavam irredutíveis. Tudo poderia se transformar num massacre em questão de horas...
A visita do Capitão Travers foi uma das mais agradáveis surpresas. Tanto Nadya quanto Ludmila tinham em alto conceito esse oficial, filho do Almirante Travers, que foram superior de Nigel há dez anos. O pai havia morrido de uma síncope fulminante, e sempre fora um grande amigo da família, sendo ele que deu a notícia da morte de Thomas, pai de Nigel, em combate. Mas, dessa vez, ele não vinha sozinho. Junto com ele, um jovem alto, de cabelo escuro e tez trigueira, que parecia ser espanhol. Seus olhos negros eram intensos, com uma permanente chama de intensidade. Os cabelos, longos, caíam nos ombros com uma simetria que, a ela, parecia exoticamente atraente.
- Meu amigo!!!Há quanto tempo!!!Que surpresa agradável!!! – Nadya o abraçou e o beijou nas faces, enquanto o conduzia pra dentro. A condessa Ludmila o aguardava na entrada.
- Desculpem meus maus modos, mas esse é o meu amigo Lucas Almada, da província de São Pedro do Rio Grande do Sul, no Brasil.
- Muito prazer, senhorita Nadya, a sua fama a precede – falou ele, com um inglês de acento um pouco carregado – Lucas Almada, a seu serviço.

Era o que os franceses chamavam de coup de foudre – O encanto à primeira vista – que os aproximava agora. Os olhos negros dele encontraram os azuis dela, parecendo antecipar cada parte em que estavam, cada pensamento, cada palavra, cada ação. Era como se já estivessem por se amar, embora ainda não se conhecessem...
A condessa Ludmila rompeu o enlevo, chamando-os para dentro. Ela o seguia com o olhar, pousado nos longos cabelos negros. Ele não parava de contemplar os cabelos castanhos e os olhos azuis dela, ansiando-a de coração e alma. Era uma coisa nova para ele, e queria descobrir até o âmago deste sentir...
- É verdade que seu país está em guerra, senhor Almada? – perguntou a condessa, percebendo as emoções da filha.
- A minha província, condessa, luta contra os desmandos do Imperador, que quer reduzir os negociantes de minha terra à miséria.
- Como assim? – Desta vez, foi Nadya a curiosa.
- O governo imperial cobra taxas abusivas dos estancieiros do sul, mas com pra o gado uruguaio e argentino sem taxas! Isso revoltou nossos fazendeiros – meu pai inclusive – e nos colocou em colisão com o Império. Daí a guerra, que se arrasta há três anos. Os imperiais não conseguem nos vencer, porque conhecemos nosso terreno e eles não. Nossos cavalarianos são nascidos e criados lá, conhecem a região e as manhas dos animais.
Ela pôde comprovar isso nos dias seguintes. Ele era um impecável cavaleiro, além de um atirador certeiro. Mas não era apenas isso. Ele era um sensível, leitor de poesia e cultor de música. Mas ela sentia também, dentro dele, uma força e uma intensidade que a chamavam pra perto.
Um dia, a cavalgar juntos, ele a tomou nos braços e a beijou. Já havia sido beijada antes, mas não com aquela intensidade, aquele ardor, que venceu qualquer reserva que tivesse. Agora, a paixão mandava, a vontade de amar prevalecia... Mãos, lábios e corpos se buscavam, como um desconhecido a tatear no escuro. Naquele dia, gritaram juntos, pois ele rendia-se ao primeiro amor, e ela dava seu primeiro grito de mulher... Queria aquele homem para ela, nem que tivesse de lutar contra o mundo inteiro...
Quando voltaram, a condessa a esperava. Se contava com um olhar de reprovação, encontrou os olhos e braços ternos da mãe a abraçarem, a senti-la, a dar seu apoio. Ela sabia. Lera nos olhos da filha. Já não era mais uma questão de se, mas de quando. Ela se lembrava do que ele recitara para ela, quando arrefeceram do amor...Um poema que ela não compreendia, mas que ela repetiu, embora de forma trôpega, pois não dominava o idioma;
“Vem, Marília Bela;
Façamos do feno brando leito
Para gozarmos o viço
Dos sãos amores”
Ele já não mais se sentia senhor de si. Sabia-se pertencer a ela, e assim o queria pra sempre. Queria-a no limite de suas forças, e além delas. Jamais tinha sentido isso por alguém. As aventuras amorosas perdiam o sentido para ele completamente, pois se frustrara em não encontrar o que mais buscava...Amor profundo, como o que Tomás Antônio Gonzaga, de quem recitara a ela o poema, nutria por sua amada Marília. Mas não Nadya. Ela era o Sol, as estrelas e a Lua, tudo isso junto. Sabia, dentro do seu coração, que a amaria pelo resto da vida.
A mãe sabia. O olhar dizia tudo. O mesmo olhar que ela, ao amar seu Thomas, tivera. A mesma paixão intensa, o mesmo ardor, a mesma vontade de pertencer. A filha tentou dizer-lhe algo, mas ela a calou com os dedos.
- Viva seu amor, minha filha. Jamais o deixe morrer...
A filha a abraçou, numa cumplicidade de não mais mãe e filha, mas de duas mulheres que sabiam o que o amor significava. Duas mulheres fortalecidas pelo amor. Mais fortes que qualquer intempérie que desabasse. Fortes para o resto da vida.
Naquele momento, a situação nas legações havia chegado a um impasse. De prontidão, Nigel aguardava ordens, enquanto cada vez mais as tropas de Lin Zexu apertavam o cerco. O contingente das legações se preparava para resistir, quando, de repente, chegou outra mensagem de Sir Henry, ordenando que se cessasse qualquer tipo de ação ofensiva, e que fosse mandada uma mensagem a Lin Zexu, informando-o que o ópio seria entregue e as legações seriam evacuadas.
O que se viu depois foi uma cena sem precedentes. Todo o ópio estocado nos armazéns das legações – dizia-se um montante de trezentas toneladas – foi todo esvaziado e jogado nas águas da baía, com Lin Zexu dirigindo uma prece às “entidades das águas”, para que o perdoassem por essa intrusão em seu meio. As legações foram evacuadas, e os diplomatas em seus respectivos navios. A mesma mensagem dizia que ele deveria se juntar, em Macau, a uma frota de mais navios que chegaria em breve. Navios de várias nacionalidades formavam uma frota heterogênea, com um único objetivo: a guerra, o controle da costa da China para o tráfico.
Nigel tomou o rumo de Macau, mas, a meio caminho, encontrou a frota, que tinha à testa o HMS Warrior, na direção da costa da China. As ordens dadas a Nigel eram desembarcar o Alto Comissário em Calcutta e depois seguir para se juntar à frota em direção à China. Os dias do navio à vela haviam passado, e, embora elas ainda fossem usadas, o eram de forma secundária, pois a máquina a vapor viera para tomar seu lugar. A marinha chinesa ainda possuía juncos e canhões de alma lisa, enquanto que o navio de Nigel, o HMS Serapis, já era equipado com canhões de carga pela culatra e alma raiada, que aliavam maior precisão e maior alcance.
Ele, na realidade, se sentia dividido quanto à condução daquela guerra. Os chineses não teriam a menor chance, e seriam fragorosamente derrotados. Ademais, o maior motivo dessa guerra, para ele, não tinha razão de ser: o pernicioso comércio de ópio, que simplesmente arruinava milhares de vidas para o lucro de poucos. Custava acreditar que a Marinha Real mandara uma frota para proteger traficantes de ópio. Parecia que tudo o que ouvira do jovem Charles George Gordon tinha sua razão...
Em retorno, passara por Macau, mas não tivera notícias de Estevão Monforte e sua filha. Logo se juntou à frota, que apresentava suas exigências ao governador de Xangai.. Mas a aparência de parlamentação era simplesmente uma manobra diversiva, pois os navios já desembarcavam soldados na outra margem, com a intenção de atacar de surpresa. O contingente inglês era de longe o maior, e Shangai foi tomada em questão de horas. O navio de Nigel recebeu a missão de escoltar os transportes com a força auxiliar franco-alemã. No caminho da península de Kiaoutschou, recebeu sinais de um barco aparentemente avariado. Eram sinais irregulares, como se a pessoa não tivesse a menor idéia do que estivesse enviando. Ordenou alerta de combate, enquanto o navio se aproximava...Logo identificou-o como uma Lorcha, das que serviam aos contrabandistas de ópio, mas ela não estava armada. Tinha um dos mastros avariados e estava aparentemente sem direção...
Imediatamente, juntou uma equipe de abordagem e encarregou-se pessoalmente do assunto. Não era sempre que um capitão se encarregava de tais assuntos, mas um pressentimento estava se moldando em seu coração, e ele era alguém que sempre acreditava neles – mais de uma vez eles salvaram sua vida – assim, ele tomou a dianteira do grupo, e agilmente escalou a amurada. O homem a fazer sinais aparentava ser não o capitão, mas seu imediato. Quase cambaleando, se dirigiu ao encontro de Nigel
- Graças a Deus que o encontramos, senhor – disse ele em português, entre arrancos – achava que iríamos morrer de fome, perdidos no mar. Chamo-me Martim Andeiro, senhor, imediato da Lorcha Infanta Margarida.
- O que houve aqui? Algum ataque?
- Sim, senhor, juncos armados chineses nos atacaram assim que saímos do porto. Íamos para Goa, nos abastecermos e rumarmos a Portugal, mas eles nos atacaram. Não estávamos armados, mas eles nos castigaram muito. Nosso leme foi atingido, mas conseguimos despistá-los. Acho que eles temem as lanchas armadas dos traficantes.
- Onde está o capitão?
- Morto, senhor. Uma das aparas de madeira do mastro partido o matou. Está na cabine. Mas não é nada bonito de se ver.
Sem ouvir o imediato, Nigel se dirigiu célere até a cabine, e o que deparou foi de gelar o sangue. O corpo que via era o de Estevão Monforte, praticamente dividido em dois pela apara do mastro. Isso era mais temido pelos marinheiros numa batalha do que as balas ou a metralha, pois as aparas e lascas não tinham direção, atingindo inimigos e amigos. Chamou sua equipe para conduzirem o corpo de Estevão para o Serapis, enquanto dava uma busca pelo navio.
- Não havia uma moça com ele, cabelos negros, olhos verdes?
- sim, senhor, nós a escondemos, pois não saberíamos o que os chineses fariam
- Onde ela está?
- No porão de carga, senhor. Por aqui
Numa ansiedade que ele mesmo estranhara, desceu, acompanhando o imediato até os porões de carga. Lá, estava ela. Vestia roupas masculinas, mas , mesmo assim, era como se ele conseguisse ver a beleza dela através de tudo aquilo...Mal o viu, ela o abraçou, um abraço profundo de querer, de jamais se apartar...Ele a beijou com intensidade, sendo intensamente correspondido. Já sabia que o destino deles estaria traçado para sempre...
- Seu Pai...eu o vi...Mandei meus homens prepará-lo
- Ele não sofreu, Nigel, foi muito rápido. Mas temos que sair daqui...Juncos armados chineses estão em toda parte.
- Me navio e os demais da frota são fortes. Eles farão frente.
Mesmo que ele tivesse mentido, ela confiava nele. Tinha rezado a todos os santos para que o trouxessem, e, agora, ele estava ali, e ela não mais se apartaria dele.
A cerimônia foi breve, mas comovente. Os marinheiros da Infanta Margarida foram sepultados no mar, com todas as honras. Estevão Monforte foi o último, como rezava a antiga tradição. Uma lágrima correu dos olhos de Leonor, quando o corpo do pai deslizou da prancha para o mar...
A guerra foi tão rápida que surpreendeu até os mais otimistas. Todos imaginavam um conflito prolongado, mas, em 1842, os chineses, com sua Marinha destruída e todas as principais cidades costeiras em poder das potências ocidentais, não tiveram alternativa senão ceder às pressões das potências. Os alemães ficaram com a cidade de Kiautschou, e lá instalaram sua frota do Extremo Oriente, no porto de Tsingtao. Os franceses, com Tientsin, e os ingleses, com Shangai. Nigel, entristecido com aquilo, foi visitar seu amigo Sao Feng. Quando entrou na casa, o anfitrião foi vê-lo, embora caminhasse com dificuldade, pois perdera uma perna abaixo do joelho. Tinha sido ferido nos distúrbios durante a guerra, quando invadiram a casa e quase o mataram, pois o insultavam de “cão dos estrangeiros”. O sorriso aflorou em suas faces, quando o viu
- Honorável Amigo! Que bom vê-lo são e salvo! Eu também estou bem , embora faltem algumas partes – mostrou a prótese articulada de marfim – feita sob medida.
- Folgo em vê-lo bem, Sao Feng. Não me senti bem tendo que atirar em barcos que não tinham defesa contra nós.
- Mas assim é o destino, honorável. Sempre o destino. Pensamos em fugir dele, mas ele sempre nos alcança.
Conversaram, entre outras coisas, sobre a morte de Estevão Monforte, a quase morte de sua filha, o resgate m alto-mar. Sao Feng o escutava atentamente, sempre sorrindo, ou franzindo o cenho, de acordo com o que reagia da conversa. Mas contentou-se em ver o amigo bem, e com algo no coração, além da luta.
- Mas o destino age dessa forma, honorável amigo – disse o anfitrião. As suas portas já estão abertas, apenas terá de cruzá-las.
Despediram-se calorosamente, prometendo ver-se, mal sabendo que essa promessa somente seria cumprida na geração seguinte...
Nadejda mergulhava mais e mais fundo em seu amor, e Lucas Almada o correspondia intensamente. Ela aprendeu, em pouco tempo, a língua de seu amado, e mais do que antes, se emocionou vivamente com os poemas que recitava, especialmente depois de se amarem, e era tanta a sede de amor dos dois que parecia não ter fim..
Num dos dias que Lucas foi vê-la, sua expressão estava apreensiva. Ela o tomou nos braços, beijou-o apaixonadamente, como que quisesse arrefecer a tempestade em seu coração..
- Minha Vida, acho que terei de deixar a Inglaterra. As coisas ficaram sérias na estância.
- O que houve meu amor?
- Meu pai está à morte, e quer que eu esteja lá. Falei de ti, e ele se encantou por demais. Amo-Te, mas não posso exigir que deixes tua vida aqui e me siga. Lá, estamos em guerra, uma guerra cruel e brutal. Uma guerra sem quartel
- Minha família está bem acostumada com guerras, meu amor. Além do mais, quero que o nosso filho nasça no país de seu pai.
- O quê?
- Sim, Lucas Almada. Estou carregando nosso filho em meu ventre
Aquela notícia o colheu entre a surpresa e o júbilo. Ele se ajoelhou e beijou-lhe o ventre; ela acariciava ternamente os cabelos. A amava mais do que tudo, e um filho era mais do que ele imaginaria querer..Carne de sua carne, sangue de seu sangue. Ele precisaria contar isso a seus pais, mas antes teria de falar com a condessa. Não precisou esperar muito, pois ela estava na varanda, esperando-os
-Ah, então você me fará avó, meu rapaz... Deixe-me abraçá-lo, meu filho, que Deus guarde vocês em sua jornada.
- Como assim?
- Conheço o amor, meu jovem, e aqui está uma que te seguirá onde estiveres, pelo amor que tens, e sei que guardas a ela igual amor. É a única coisa nesta vida, meu rapaz, que vale a pena viver.
Agora ele via de onde ela tirara tanta determinação. Elas eram mais que mãe e filha. Eram duas mulheres que, de aparente fraqueza, possuíam uma força que nenhum homem sequer chegaria a equiparar....Agora, ela o acompanharia ao Brasil, no início de uma nova jornada...





ESTÂNCIA DO LAGAR, PROVÍNCIA DE SÃO PEDRO DO RIO GRANDE DO SUL, BRASIL, 1839

A Carruagem tomou o caminho da entrada do alpendre do casarão, uma típica construção de um andar, mas sólida, típica das estâncias gaúchas, com a capela à direita. Na entrada do alpendre, já esperavam Teresa e Julião Almada, pais de Lucas, e sua irmã Luciana, a mais curiosa de todas. Julião esforçava-se para aparentar estar bem, a barba grisalha hirsuta emoldurando um rosto de olhos firmes, de quem já tinha visto de tudo. Vestia um poncho azul e bombachas de risca, terminadas em botas de fole marrons, no pulso o rebenque de montaria. Teresa, sua mulher, mãos cruzadas sobre as saias, observava, cabelos negros presos em um coque, a chegada da carruagem
O primeiro a descer foi Lucas, já vestido à pampa, com ceroulas bordadas sobressaindo do chiripá vermelho. Nadejda desceu depois, com cuidado, pois a gravidez já estava adiantada. Tiveram uma parada no Rio de Janeiro, mas logo retomaram viagem porque Lucas temia ser detido pelos imperiais. A mãe correu para abraçá-lo, beijando-o nas duas faces, enquanto tomava as mãos de Nadejda entre as suas.
- Bem-vinda, minha filha, venha, eu te acomodarei.. A viagem deve ter sido difícil em teu estado. Eméria, traga toalhas de água de alecrim, depressa!
Teresa pegou as toalhas trazidas pela criada e as passou pelo rosto e mãos de Nadejda., refrescando-a. O frio já dava seus primeiros sinais, mas isso a relaxou muito. Teresa a conduziu ao quarto, onde um banho já estava sendo preparado.
- Recebi tua carta, pai. Deixou-me muito preocupado.
- Coisas de velho, meu filho. O fato de eu te chamar tem pouco a ver com isto
- Como assim?
- Bento Gonçalves cá esteve, a falar comigo, para aderir aos republicanos.
- Republicanos, meu pai?
- Sim, Bento Gonçalves e o general Netto proclamaram a República Rio-Grandense
Então o pai o inteirou da situação, desde a fuga de Bento Gonçalves do Forte do Mar, em Salvador na Bahia, até o ato de proclamação da República Rio Grandense. Lucas escutava atentamente, embora não disfarçasse sua surpresa. Sabia que havia elementos dos liberais exaltados – a maioria deles republicana – no movimento, mas não imaginava que eles tivessem chegado até esse ponto. O pai falou das notícias de todas as províncias rebeladas – Pará, Bahia, Maranhão – e de como o poder do regente estava sendo desafiado. Acreditava-se um verdadeiro gaúcho, mas ainda no coração era um monarquista.
- Sei o que se passa em teu peito, meu filho. Eu também me sinto assim. Respeito o general Bento Gonçalves, mas abandonar o Imperador é algo temerário.
Lucas ficou sem saber o que dizer.
Enquanto isso, em Seagate Manor, outra carruagem se aproximava, trazendo Nigel e Leonor de volta da China. A condessa Ludmila esperava na entrada, a criadagem toda ansiosa por conhecer a esposa de Nigel. Ele desceu primeiro, ajudando-a a passar os degraus. Seus olhos verdes chamaram a atenção de todos, assim como seu sorriso espontâneo. Fez questão de cumprimentar todos, dos cavalariços à governanta, e, quando chegou frente à condessa, ia fazer uma reverência, mas foi impedida por Ludmila
- Somos, acima de tudo, mulheres, minha querida Leonor. Não devemos ter diferenças.
- Muito feliz em conhecê-la, condessa. – disse ela, mais à vontade ao reconhecer uma personalidade igual à sua.
Na conversa com a mãe, Nigel também contou todas as peripécias que havia passado na China, desde o encontro com Malcolm Struan até o resgate dos diplomatas e o conflito com os chineses. Ludmila, mas que interessada, se sentia aliviada em ter o filho em casa são e salvo. Leonor a impressionara bastante. Ela contou a Nigel o casamento da irmã, a viagem dela ao Brasil, a notícia de que ela ia lhe dar um sobrinho.
- Que pena não ter podido estar aqui, mamitschka – sentiu ele – Adoraria poder ter visto minha irmã feliz.
- Ela também sentiu sua falta, meu filho. Ela deixou lembranças e te desejou boa sorte.
À noite, Leonor contou a Ludmila como tinha sido resgatada por Nigel, e como eles haviam se casado. O sotaque português de Leonor a fazia mais interessante. Outra coisa que fascinou ainda mais Ludmila foi que ela gostava de tocar e cantar – Nigel tocava piano e Nadejda viola da gamba, mas Leonor trouxe outro instrumento para casa – um bandolim – e gostava muito de cantar fados – o melancólico e poético cantar português – e sua voz era dolente como as notas do instrumento
“Quem contar
Um sonho que sonhou
Não conta tudo o que encontrou
Contar um sonho é proibido...
Quero sonhar um sonho com amor
E na janela uma flor
Uma fonte d’água e meu amado...”
Ludmila via os olhos de Nigel enquanto ela cantava – eram os olhos de seu Thomas, os mesmos olhos apaixonados – e via como Leonor o encantava. Lembrava-se sempre desse momento – os olhos nos olhos – naquele balcão de sua casa em São Petersburgo – e esse momento a marcou pra toda uma vida. Os poucos momento intensos vividos eram a lembrança que carregava agora, e eles a acalentavam exatamente nesses momentos. Amara seu Thomas com ardor, e sentia que, um dia, estariam juntos de novo...

Já refeita da viagem, Nadejda procurou conhecer a casa e os domínios do amado. A primeira vista da Campanha a impressionou, pois a terra, plana, com poucas colinas ou elevações dignas de nome, era como um oceano sem fim, mas um oceano de terras, que iam até onde a vista alcançava. Era um país de cavalarianos, pensou ela, um lugar onde homem e animal se fundiam num só. Ela percebeu isso assim que viu os peões saírem para o trabalho. Não podia cavalgar, por causa de seu estado – a barriga de oito meses era bem visível – mas ansiava a hora de poder fazê-lo, para conhecer esse imenso território.
- É um país bem maior que o teu, Minha Vida – falou baixinho, ao pé do ouvido – Mas não maior do que meu amor por ti.
- Teu pai parecia preocupado. O que houve?
- As coisas aqui, no ver dele, saíram de controle. Antes , era um movimento para que fosse dada a devida importância ao Sul, mas, agora, os mais radicais dentre eles proclamaram a República. Muitas adesões antigas estão se esvaindo. Uma coisa é uma reivindicação justa, outra é desafiar o Imperador –disse, com um profundo vinco na testa – agora, não demorarão a reagir Mas não devia estar te falando isso. Preocupo-te demais.
- Mas sabes que te perguntaria, mais cedo ou mais tarde.
- Sei disso, mas sabes que eu te prezo tanto que sempre tento te puxar fora dos problemas...
- Mas sabes que mais cedo ou mais tarde, terei ciência deles...Não podemos limitar o que devemos sentir, assim como o que termos pela frente.
- Tu sempre sendo muito mais sábia que aparentas. Acho que, se fosses homem, seria melhor general que qualquer outro... Mas vem, que o minuano não tarda...
No dia seguinte, uma comitiva de farroupilhas chegou à fazenda para falar com Julião. Encontraram Lucas no alpendre. À testa do grupo, um homem de peito largo, cabelos negros e longos bigodes, com uma viola a tiracolo. Sorria um sorriso de sarcasmo, como se sempre a vida fosse uma sátira a se rir.
- Buenas! O coronel Julião Almada está à casa?
- Sou o filho dele, Lucas. Qual sua graça?
- Sou o capitão Rodrigo Cambará. Estamos de passagem para pegar uns suprimentos para o General Bento Gonçalves, e entregar uma mensagem a seu pai. Acaso teria o favor de nos ajeitar os cantis? Estamos com sede...
Mediu bem o homem À sua frente. Era o tipo de pessoa que seria uma tolice desafiar, pois parecia destro nas armas. Tinha, apesar do tom respeitoso com que se dirigiu, uma grande arrogância em seu porte.
- Entre e fale com Atanásio, o capataz. Ele vai providenciar água e alguma forragem. Considere a mensagem entregue.
- Gracias a Vossa Mercê
- Por nada.
Lucas adentrou a casa, a entregar a mensagem a seu pai. Sentia que ventos tempestuosos estavam a caminho.
Em Seagate Manor, também Leonor, um pouco menos de tempo que Nadejda, também experimentava a maternidade. Nigel exultava, pois, afortunadamente, estava a passar uma licença prolongada em casa, esperando seu novo comando. Leonor e Ludmila passavam o tempo conversando ou jogando gamão, enquanto Nigel se ocupava da correspondência pessoal, há muito desatualizada. Mas ele esperava, também, notícias sobre seu novo comando. Mas as notícias chegaram com uma carta do Almirantado, que o convocava a Londres para uma audiência com os Lordes do Mar. Ele não sabia o que poderia significar aquilo, mas estava para o que desse e viesse. Leonor observava a apreensão, mas ela sabia dos momentos do marido, e não se intrometia...
Nigel estava preocupado com a convocação dos Lordes do Mar. Eles eram as grandes autoridades da Marinha Real, que determinavam os rumos e o desenvolvimento da estrutura da Marinha, desde suas regras de conduta a tecnologia. Ele se lembrava de quando foi indicado para o setor experimental por seu mentor, capitão Travers, e se comentou que ela jovem demais para o posto. Mas ele superou cada etapa com maestria e competência, e mais o nome da família abriram outras portas.
Os cinco Lordes do Mar já o esperavam. Ele chegou pontualmente à sala de reuniões e perfilou-se diante daqueles almirantes, que o fitavam com um misto de curiosidade e um certo ar de espanto. O almirante Lorde Ruthland foi o primeiro a usar a palavra.
- Comandante Willingthorpe, sabe o motivo de sua convocação aqui?
Ele acabara de saber um deles. Havia sido promovido. Agora, restava saber qual seriam as outras razões.
- O senhor teve contatos há um ano com um jovem oficial chamado Charles George Gordon? – Perguntou Lord Ruthland
- Sim, nos encontramos no Navy and Army Club.
- E o que acha das posições dele?
- O senhor deseja a minha opinião ou apenas acarear-me com os fatos?
- Não sou eu quem está sendo interrogado, comandante – Respondeu Lord Blamey – Apenas se atenha aos fatos.
- Sinceramente, nosso envolvimento na China, mesmo vitorioso, pode se revelar um desastre, Milordes. Não faço eco à insubordinação, mas acho que isso deveria ter sido mais bem pensado.
- O senhor concorda com ele?
- Não é uma simples questão de concordar. Muitas vezes, estar de fora do problema nos dá uma visão mais clara de como ele é. Os privateers desafiaram as leis internacionais e agora impuseram à China um estado pirata, e a ilha de Hong Kong é a sua capital.
Os Lordes confabularam por um momento. Ele não estava errado. O governo havia concedido poder demais aos traficantes, e eles exacerbaram, constituindo verdadeiras frotas piratas e ameaçando o comércio na China. Por mais que alguns fossem aliados, mesmo frouxamente – caso de Malcolm Struan – não se sentiam ligados à lei britânica, e sim às suas próprias fortunas. Nigel conjeturou o que poderiam estar definindo ali.
- Comandante Willingthorpe, achamos que o senhor, então, é o homem certo para a tarefa que estamos a lhe incumbir. O senhor é um observador experiente, além de um marinheiro de raro talento. O senhor já esteve no Brasil, comandante?
- Apenas de conhecer a costa, Milordes, quando patrulhava atrás de negreiros.
- Pois por nossa determinação, o senhor está sendo nomeado nosso adido no Brasil. Residirá no Rio de Janeiro. Já tomamos todas as providências necessárias. O senhor será os olhos e ouvidos da Rainha em relação à situação da escravidão e do tráfico naquela área. Compreende a importância de sua missão, comandante?
- Sim, inteiramente.
- Então, comandante, sucesso em sua missão. Está dispensado
Ao retornar a Seagate Manor, contou a Leonor e à mãe tudo o que havia ocorrido no Almirantado. A condessa apenas sabia do Brasil pelas conversas com o genro, e elas não eram nada tranqüilizadoras.
- Meu filho, como estará a situação da cidade para onde vais?
- O Rio de janeiro está em ordem, minha mãe. Apenas algumas províncias estão rebeladas.
- Mas o fogo, se acha para onde se espalhar, não vê distâncias, meu filho... Muito cuidado.
Três dias depois, Leonor e Nigel seguiram para Portsmouth, de onde tomaram o vapor que os levaria ao Brasil. Nigel se preocupava se a esposa estava contrariada ou não a respeito daquela missão. Se isso ocorria, não havia nenhum sinal da parte dela. O ar do mar parecia avivá-la, torná-la mais viçosa e radiante. Até que ela fez a ele a revelação.
- Espero o nosso filho. Ele nascerá neste país. – disse no sorriso, beijando-o intensamente – O seu amor cresce em mim, Nigel, meu tesouro.
Ele não cabia em si de contentamento. Um filho! Mais um Willingthorpe neste mundo. Uma coisa que o deixara muito contente foi a possibilidade de visitar a irmã, mas antes ele precisaria saber da situação para antes tomar uma decisão;pelo que contara a mãe, ela estava para dar à luz, se isso já não tivesse acontecido.
A paisagem do Rio de Janeiro foi um forte impacto para ele. A primeira coisa que o impressionou foi a intensa azáfama do cais do porto, com os navios de escravos chegando, a atividade febril de leiloeiros buscando os melhores lances. De um lado a outro, pessoas a cavalo, a pé ou simplesmente transportadas nos ombros dos escravos, as damas em liteiras – chamadas de cadeirinhas de arruar – os homens em redes de algodão cru. Não havia pavimentação, apenas ruas de lama e os famosos sobrados portugueses, com suas janelas com sacadas e azulejos de porcelana – que eram familiares a ele de Macau e Goa. Leonor sentiu-se um pouco na sua Lisboa natal. De repente uma figura alta, de cabelo ruivo e suíças espessas, chamou-os em voz alta.
- Comandante Willingthorpe? Sou o contramestre Fulton, às suas ordens. Tenho ordens do Almirante Greenfell para acompanhá-lo às suas instalações. Desculpe o mau jeito, senhor. – Riu, enquanto ordenava aos escravos que levassem a bagagem.
Uma carruagem já os esperava, e os conduziu primeiro à casa que residiria, um sobrado próximo ao Paço Imperial e ao Hotel dos Estrangeiros. Era amplo, de janelas idem, onde o sol batia e dava luz e cor próprias a ele. Fulton coordenava a arrumação da bagagem, enquanto Leonor percorria a casa, conhecendo o que seria seu lar daí para diante. Ela gostou da maneira como a luz do sol entrava, e imaginou como seria quando o bebê chegasse.
- Meu amor, cuide de tudo aqui, enquanto vou ver o Almirante Greenfell. Preciso me apresentar.
Ainda de uniforme, Nigel se dirigiu para a sede da embaixada britânica, cruzando as ruas e perscrutando o movimento. Para onde quer que fosse, a massa de escravos era predominante. Ele se perguntava como seria se todos os escravos se rebelassem. De fato, já havia acontecido uma insurreição na Bahia cinco anos antes, mas ela foi tão severamente reprimida que os escravos ainda estavam “pacificados”, ao menos por enquanto
- Ora, Ora, Ora! Quem temos aqui? O filho de Thomas Willingthorpe! Esqueça os graus pelo menos por enquanto, rapaz, sente-se e sirva-se.
O Almirante John Pascoe Greenfell era talvez mais investido de autoridade do que o próprio embaixador inglês. Veterano das Guerras Napoleônicas e da Guerra da Independência do Brasil, era, por assim dizer, comandante em chefe da Marinha Imperial, no lugar que era de Lord Cochrane, que foi o comandante à época. Greenfell vinha do sul, onde os farroupilhas ainda eram uma pedra no sapato do governo, que vivia num completo impasse.
- Se eles tivessem ao menos uma marinha que pudéssemos afundar, meu rapaz, mas eles lutam em terra, e como lutam bem!
O almirante o pôs a par do que se passava nas províncias rebeladas, e, também, do movimento que já se ensaiava, nos meios políticos, da antecipação da maioridade do Imperador, que, achavam eles, era o único meio de dar tranqüilidade ao país. De acordo com a Constituição, ele só poderia assumir o trono com a idade de vinte e cinco anos; tinha apenas treze, e isso poderia prolongar o banho de sangue; enquanto isso o governo era exercido por regentes, uns fortes e competentes, outros não mais que fantoches políticos.
Na estância, Lucas acabava de entregar a mensagem a seu pai, quando viu o grupo de cavalarianos se afastando. Viu o pai a ler a missiva, e entre reações de espanto e franzir de cenho, entregou-a ao filho.
- Os imperiais estão num impasse com os farrapos, filho. Estão recrutando todo o pessoal das estâncias ao redor para compor cavalhadas. Esta mensagem diz muito e é ao mesmo tempo uma ameaça velada.
Lucas tomou a mensagem e a leu
“Caro coronel Julião
Nossa causa urge de reforços e víveres. Os imperiais apertam o cerco e estamos cada vez mais comprometidos em defender o nosso país, e todos os que vivem nele devem contribuir para essa sobrevivência. Daqui a uma semana, um de meus piquetes virá arregimentar gentes para as cavalhadas. Vossa mercê poderá nos ajudar com o que tiver e puder. Quem poderá garantir o futuro de nosso país, se não pudermos defendê-lo?
Bento Gonçalves da Silva
Presidente da República Rio-Grandense”
- Isso não é velado! É uma ameaça direta!!!
- Sei disso, meu filho. É por isso que precisamos nos aprestar. Chame Atanásio e reúna os peões da estância. E mande mensageiros às estâncias da Figueira e da Gamela, para que os compadres Matias e Fernão estejam comigo. Mande que ele se avie depressa.
Nadejda estava na sala, junto com a cunhada Luciana, quando ouviu o movimento dos homens da soleira. Um pressentimento lhe passou no peito, e a criança em seu ventre agitou-se. Já sabia daquele tipo de sensação, contada pela mãe no dia em que nasceu. Já ia levantar-se, quando Lucas a interpelou.
- Tranqüiliza-te meu amor, é apenas uma preocupação de meu pai
- Meu coração diz que não, tesouro. Alguma coisa vem vindo.
Aprendera a respeitar os instintos dela, que sempre estavam alertas para as coisas deste e do outro mundo. A gravidez já anunciava seu final, e Eméria se mudou para a casa, pra ficar de olho na mulher do seu senhor. Já o tinha trazido ao mundo, agora ia trazer a cria dele...
Não demorou muito para que as coisas se dessem.
Atanásio chegou esbaforido, a montaria espumando, e com muito esforço se manteve de pé enquanto relatava tudo que vira e ouvira a seu patrão
- Patrão, Sinhô Fernão vem, mas Sinhô Matias ta morto. Os farrapos queimaram a estância dele. Só sobrou a muié e dois fio.
- Tudo bem, Atanásio. Fizeste bem feito. Vai à cozinha e pede a Eméria que te dê água e comida
Julião aprestou os homens da fazenda, mandando Teresa e as mulheres pro Torreão da casa. Aquela estrutura tinha sido feita pelo pai de Julião, Jerônimo, quando ainda havia a guerra com os castelhanos. Era uma estrutura forte, feita de pedra, com um poço no térreo, para evitar que morressem de sede. Nadejda não pôde deixar de notar a semelhança entre aquela estrutura e as torres de menagem dos castelos que ela vira na Europa. Caminhava com dificuldade, amparada por Eméria, que a ajudava a subir as escadas do Torreão. A ala de refugio era no meio da torre, senda as partes mais acima usadas pelas sentinelas que a guarneciam.
Fernão e seus homens chegaram quatro horas depois, se posicionando nos arredores. FernãoGraça Morgado era de antiga família paulista, que migrara para o sul depois da Guerra dos Emboabas, quando perderam a primazia de exploração das minas. Seu pai também combatera os castelhanos, e granjeara vasta extensão de terras na campanha, na avançada da fronteira com a Banda Oriental. Chegava a cavalo com a mulher, Laurinda, que era dita ser tão guerreira e hábil nas armas quanto o era o marido. Numa carreta, com os poucos pertences que sobraram, vinha Luísa, mulher de Matias Barreiro, morto pelos farrapos por protestar sua lealdade ao Imperador. Ela vinha com os dois filhos, Ana e Pedro, o mais jovem, ainda de colo. Mesmo com a dor da perda do marido, o rosto era altivo, nobre.
- Compadre Julião, peço sua acolhida e sua hospitalidade, e também pra viúva do Compadre Matias.
- Está dada de coração, Compadre. Sabe que o amigo é sempre bem-vindo
- Oxalá essa visita fosse em dias melhores, compadre – Arrematou – Mas os tempos são os tempos.
Luísa e as crianças se acomodaram no Torreão, enquanto os homens se organizavam para a defesa. Lucas dava ordens aqui e ali, tentando não deixar nenhuma parte da sede descoberta. Mas seus olhos iam, quase sempre, para o torreão, onde estava seu amor, e que, dentro em breve, traria ao mundo o filho que ele tanto esperava...
Nigel e Leonor já estavam aclimatados ao Rio. Caminhadas pela manhã, despachos junto ao embaixador inglês e eventos sociais, já preenchiam seu cotidiano por completo. Uma boa ajuda veio de Leonor, pois, como já estivera no Brasil, ajudou-o a respeito dos costumes da cidade e alguns da Corte, onde achou interessante que, para que o país ficasse independente, um príncipe da antiga metrópole teve de ser o autor da manobra. Num dos eventos da corte em que participaram, foram apresentados ao jovem imperador. Era um menino de treze anos, parecendo desconfortável ante aquela pompa toda. O corpo diplomático em sua totalidade estava presente, e, quando chegou a sua vez de apresentar seus respeitos ao Imperador, o mesmo foi quem tomou a iniciativa;
- Seja bem-vindo ao Brasil, comandante. Imagino que já esteja aclimatado. O calor é sempre um problema para os europeus, estou certo?
- Sim, Majestade – disse, fazendo uma mesura – Mas já nos acostumamos. Minha esposa me ajudou bastante.
- Ah, isso é muito bom. Visite-me, quando estiver com algum tempo. Sempre estarão abertas as portas. Gostaria muito, de coração.
- Farei o possível, majestade – disse já se despedindo
Havia visto nos olhos do imperador mais que interesse. Era como se pedisse sua ajuda, como se ele fosse um guia, uma espécie de instrutor. “Acho que pensei com exagero”, dizia, de si pra si, divagando sozinho. Leonor também o percebera, e não deixou de observar tal comportamento da parte do jovem imperador.
- Ele é apenas um menino – disse com assertividade – Um menino assustado diante de tanta responsabilidade.
- Também acho, meu amor. Mas ele é a maior esperança de estabilidade deste país. A instabilidade é péssima para nossos interesses aqui. Se eu puder fazer algo, farei o que eu puder.
A impressão geral dele sobre o país era boa, mas duas coisas ainda o incomodavam muito. Uma delas era a ainda persistente escravidão. A despeito dos esforços de pessoas como o reverendo Wilbeforce, que fizeram com que a Inglaterra libertasse seus escravos em 1833, a escravidão ainda era um mal endêmico em muitos lugares, sendo o Brasil o maior país ainda a manter o regime de escravidão. Nigel se perguntava aonde aquilo ia andar...
Na estância o amanhecer veio com as sentinelas avançadas dando os sinais de que os farrapos se movimentavam. A cavalhada vinha sem formação, sinal de que não esperavam oposição. Todos se colocaram alerta, armas azeitadas e lâminas afiadas. Não tinham ilusões. Sabiam que ia correr sangue...
O primeiro piquete foi avistado logo que a luz do sol bateu na campanha. Não vinham em formação, possivelmente por achar que encontrariam a estância vazia. De longe, o Torreão impunha sua presença, dando um ar de força à edificação. Os farrapos avançavam lentamente, sem perceber que a aparentemente quieta estância estava cheia de armas bem prontas para a luta. Lucas estava na dianteira, aguardando o momento certo para atirar. Não tirava, porém, os olhos do Torreão, onde estava seu amor, e seu filho.
A cavalhada avançava despreocupada, sem saber que caminhava para uma armadilha.
Com o primeiro estampido, os homens se dispersaram, cada qual procurando abrigo para se proteger e atirar de revide. Lucas se deslocava com sua gente, buscando sempre um lugar diferente para fustigar os atacantes. Ao mesmo tempo, seu filho ia marcando sua chegada ao mundo...
Os tiros iam em rápida sucessão, ora estropiando um , ora matando outro. Lucas era exímio atirador, e não errava sua mira em ninguém. A cavalhada dos farrapos tentava tomar a estância numa carga armada, mas foi contida pelos peões sob o comando de Lucas, que os dispôs a cobrirem-se mutuamente, uma fila atirando enquanto a outra ia recarregando. A cavalhada tentou contornar a casa, mas foi recebida pelos peões de Fernão Morgado, que se posicionara na retaguarda.
No Torreão, Nadejda e Eméria traziam o filho de Lucas ao mundo. A luta era grande lá dentro como fora. Parecia que a senda dos Willingthorpe era trazer seus filhos ao mundo no meio das batalhas. Ela era ajudada por Eméria, que, apalpando aqui e ali, fazia com que o parto fosse mais fluido.
- Não te apoquentes, mulher, teu filho vem, tem certeza.
La fora, a cavalhada tentava, de todos os meios, romper aquela barreira. Já haviam perdido gente demais, e não conseguiram tomar a estância. Lucas estava já quase exausto, os homens já estavam com pouca munição. Logo seria a hora em que sabres e adagas falariam mais alto, e muitos mais morreriam
No Torreão, Nadejda, com todas as suas forças, fazia seu filho nascer. Sua mãe havia conversado, quando ela começava a mudar de criança a mulher, das artes da paixão, do prazer, e da maternidade, e dizia das dores, que eram dores intensas, mas que eram logo esquecidas assim que o bebê nascia... Agora, ela as estava sentindo, tal qual sua mãe havia falado. Intensas, penetrantes, mas, dentro delas, se sentia realizada por trazer o fruto de seu amor ao mundo...
No Rio, chovia a cântaros. Nigel estava a ler poesia, enquanto Leonor dedilhava o bandolim, quando uma nota desafinada avisou que mais um Willingthorpe também estava a caminho...
Em Seagate Manor, os ventos do Norte traziam o inverno. A condessa Ludmila lia ao lado da janela, quando sentiu uma presença familiar, familiar demais. Virou-se lentamente, e viu, da luz da janela, o seu Thomas. Estava como da última vez que tinham se visto, o sorriso de antes, os mesmos olhos vivos e penetrantes. Ela se levantou para se aproximar, mas ele fez um gesto para que ela permanecesse onde estava. Ele se aproximou, a beijou e disse: “Logo chegará o dia em que estaremos juntos, meu amor; mas a vontade de estar contigo foi mais forte. Logo estaremos lado a lado. Eu te amo”. Ela permaneceu ali, enquanto ele se desvanecia na noite...
Duas mulheres traziam mais uma geração dos Willingthorpe ao mundo. Num país intenso, duas partes de uma geração lutavam por nascer, no meio dos elementos e do estrépito das armas.
Os farrapos arremetiam com toda a força em seus ataques. Cargas e mais cargas eram detidas pela renhida defesa dos que estavam na estância. Do torreão, as sentinelas, escolhidas pela sua boa pontaria, abatiam os chefes dos piquetes com tiros certeiros. Mais abaixo, outra luta e desenrolava, e Nadejda se mostrava à altura, usando de toda a sua força e intensidade para trazer aquela criança ao mundo. Eméria não a deixava, as duas trabalhando juntas.
A noite chuvosa havia transformado as vias num lamaçal, impedindo qualquer saída. Nigel não conseguia achar ninguém naquele dilúvio. Nada podia ser visto num raio de metros. Voltou á casa e contou o que tinha visto à mulher. Ela, mantendo sua calma, apenas disse;
- Terá de ser por você, meu amor. Terá de trazer você o seu filho ao mundo...
A história apenas começava para aquelas duas mulheres
Na estância, a luta tomara seu aspecto mais cruel. Uma parte dos defensores ficara sem munição, e enfrentava os farrapos corpo a corpo. Era lança contra sabre, faca contra adaga. Gargantas eram cortadas, braços decepados, corpos rasgados. Mesmo assim , os farrapos não conseguiram penetrar a defesa de Lucas e de Fernão. Exaustos, mas sem se deixarem abater, eles dirigiam os homens para os pontos mais fracos, não deixando nunca os atacantes atravessarem.
No Torreão, Nadejda estava no limite de suas forças, mas seu filho estava nascendo,. Ela sentia que era uma criança forte, pelo que suas forças eram empregadas. Eméria, em meio ao esforço da mãe, se sentia feliz, por trazer à vida o filho do seu senhor. As sentinelas poupavam a munição, acertando mais seletivamente seus alvos.
Leonor também tinha a sua luta,. Ela dirigia Nigel em todas as etapas, lhe dizendo o que fazer e como fazer. Não era inexperiente, pois ajudara várias criadas nesse mister, na casa de seu pai em Macau. Agora, era a vez dela. Nigel, num quê de ansiedade, seguia todas as instruções de Leonor; lá fora, os relâmpagos ribombavam cada vez mais alto, e a chuva não dava sinais de parar...
Os farrapos tentaram, então, mais uma carga, centrando no ponto mais fraco da defesa, perto do armazém da casa. Os defensores, em gestos arriscados, buscavam os alforjes dos mortos, em busca de alguma munição. Já não havia mais nenhuma. A cavalhada vinha em mais uma arremetida, quando, de repente, surgem Lucas e seus homens, e, num último esforço, descarregam a última carga de munição que lhes restava. Os farrapos, tomados de surpresa, perdem o ímpeto e se dispersam, e os peões da estância, coragem renovada, arremetem em cima da cavalhada. Homens são apeados e mortos, cavalos sem cavaleiros galopam no campo, mortos e feridos se espalham. Lucas luta bravamente, mas, num momento de distração, um pontaço de lança lhe perfura o ombro. Uma dor fina e penetrante o invade, mas ele não perde o prumo. Se desvencilhando da lança, gira o sabre e talha o sujeito de alto a baixo, matando-o instantaneamente. Ainda vê a cavalhada bater em retirada, antes de perder as forças e cair no chão Atanásio o vê cair e o carrega pra dentro do Torreão, onde, finalmente, seu filho vem ao mundo. Mas agora se precisam ver outras coisas
Um relâmpago, mais forte que todos os outros, marca a chegada do filho de Nigel. Leonor arrefece, quase desfalecida, enquanto Nigel lava seu filho e o agasalha, para entregá-lo à mãe, não sem antes também cuidar dela. Depois ele entrega a ela o bebê, e ele, sôfrego, busca na mãe o calor e o alimento de seu seio.
- Lutaste bem, meu amor. Veja o seu filho, como ele é belo.
O bebê viera muito parecido com ele, mas os vivos e intensos olhos verdes não deixavam dúvidas de que a essência daquela corajosa mãe estava lá. Ele se aconchegou ao lado dela, as lágrimas de emoção jorrando caudalosas
- Me perdoe – Disse ele – Por fraquejar.
- Porque fraquejar, meu amor? Foste o mais forte dos homens esta noite. Trouxeste teu filho à luz. Quer ato mais corajoso?
- Mas tive medo quando estava acontecendo. Medo de falhar com você
- Eu sabia que jamais irias falhar, meu amor. Jamais

A batalha havia terminado. A cavalhada dos farrapos fora detida; agora, era hora de tratar os feridos e enterrar os mortos. Fernão Morgado também estava ferido, com uma bala de mosquete no braço esquerdo. Os mortos – amigos e inimigos – estavam sendo reunidos mais longe, para depois serem enterrados sem que os corpos envenenassem os poços.
No Torreão, Nadejda finalmente dera à luz um belo menino, de cabelos negros e olhos azuis, que chamou pelo mesmo nome do pai, Lucas. Uma nova família nascia, a dos Willingthorpe Almada. Não houve vento frio, nem bater de janelas. Apenas mais uma criança vindo ao mundo, entre tantas mortes. Nadejda relaxou, enquanto o bebê também nela buscava o conforto, o aconchego e o alimento de seu seio. Sabia que o seu amor não morrera. Voltaria pra ela, voltaria para conhecer o filho, e para novamente amá-la...
Nigel deu a seu filho o nome de Robert, como o primeiro dos Willingthorpe, ainda na época Elizabetana, que havia lutado com Drake e Frobisher contra os espanhóis. Leonor aprovou o nome, sentindo que ele seria um símbolo de força e coragem. Descansou, pois a noite tinha sido muito exaustiva para ela, e sabia que, depois, precisaria de todas as suas forças...
Na manhã seguinte, um estafeta veio com uma mensagem endereçada a ele, em que “Sua Majestade Imperial o convocava para uma audiência informal no Paço de São Cristóvão, às três da tarde”. O estafeta esperava a resposta de Nigel, e ele confirmou a presença lá. Quando contou a Leonor, ela assentiu, dizendo que era sábio que ele tivesse esse contato, devido à grande importância.
- Não se preocupe comigo, meu tesouro. Estou bem e Robert também está. Além disso, pense na importância desse convite
Leonor sabia o que dizia. Há algum tempo os políticos se movimentavam numa campanha pela maioridade do Imperador. Diziam que era a única maneira de levar estabilidade ao país, sacudido por conflagrações e rebeliões em quase todas as províncias. Balaios, Cabanos e Farrapos estavam minando, segundo muitos, a estabilidade do país, e eram necessárias medidas urgentes, e uma delas, segundo a maioria das pessoas, era a antecipação da maioridade do imperador, já que os regentes não conseguiram se impor como força política.
Exatamente às três da tarde, a carruagem de Nigel adentrou no jardim do Paço de São Cristóvão. Era uma residência de fachada não tão pomposa, embora ocupasse um espaço amplo. No jardim, o camarista do paço já o aguardava para conduzi-lo à presença do Imperador. Aguardou no salão nobre do Paço, até que o imperador apareceu. Não vestia a roupa de cerimônia, como de outras ocasiões, mas uma sobrecasaca de cor cinza com calças brancas, com um broche na lapela, uma miniatura da Coroa Imperial. Os cabelos bem penteados davam mais a ele o ar de um estudante do que o de um Imperador.
- Como tem passado, comandante? – disse ele em francês, língua em que parecia estar mais à vontade - Há muito não nos vemos. Mas entendo. O protocolo nos obriga a sermos exigentes demais com nós mesmos, eu admito
- Estou bem, Majestade. Folgo em saber que está bem da mesma forma
Subitamente, o imperador fez um sinal, e o camarista do paço cerrou as portas do salão. Apenas ele e o Imperador estavam lá, a sós. Dirigiram-se a uma das bancadas, que dava para o jardim.
- Gosto deste espaço. Recorda-me uma parte da infância que foi marcadamente inesquecível.
O termo “infância” poderia estar mal aplicado, vindo de um menino de treze anos, mas as exigências de um protocolo e a consciência de sua responsabilidade o fizeram crescer rápido demais, podendo ele, com toda a segurança, referir-se à infância como um passado distante.
- Sabe o que se anda boatando pela cidade, comandante?
- Não, majestade – omitiu Nigel.
- Que a única solução para dar estabilidade e equilíbrio ao país é a antecipação de minha maioridade. Que isso traria paz ao império. O senhor sabe, é claro, que só poderei, pela constituição estabelecida por meu pai, assumir o trono daqui a doze anos. Mas muitos querem que eu assuma agora. O que me diz disso, comandante?
- Sempre aprendi, majestade – disse, entre ares desconfiados – que, quando nos sentimos prontos para fazer algo, estamos maduros para fazê-lo – completou
- Então o senhor concorda com essas pessoas?
- Acho que se tem de acabar com essa ruína das instituições, Majestade. Se me permitir falar livremente...
- O Barão de Caxias, que está no Maranhão a combater os balaios, me disse a mesma coisa. Deve-se mudar a constituição, se se quer salvar o país
-Acho que, se isso gerar a estabilidade, será muito bom
Nigel finalmente se convenceu. A conversa se prolongou por mais duas horas. Nigel despediu-se dele com um aperto de mão, cuja firmeza revelou uma excelente impressão por parte de ambos. Antes de sair, deixou com o imperador uma frase:
- Faça o melhor por seu país, majestade. Deus o guarde.
Após a cruel faina de enterrar os mortos – amigos e inimigos – os defensores da Estância do Lagar celebravam a sua vitória. Vários novilhos foram mortos e assados, na maneira de preparar carnes conhecida nos pampas. Lucas e Nadejda estavam no alpendre, a tudo observando, se confraternizando com os peões; Fernão Morgado e Laurinda dançavam a chimarrita, enquanto Luísa Barreiro, parecendo mais conformada, marcava o passo com os pés, com os filhos no colo
- Será que ainda atacarão, meu amor? – Perguntou Nadejda, ainda com os estertores da batalha na memória.
- Acho que não, tesouro – respondeu o marido, braço apoiado na tipóia – Nossos piquetes disseram que os farrapos vão longe daqui.
- Espero que sim. Quero você perto de mim, pra me amar muito.
No dia seguinte, a faina voltava a seu ritmo normal; o gado era reunido, os peões cuidavam de marcar bezerros, não antes de separar a sorte – o quarto bezerro de cada lote – como paga de serviço. Era assim nos pampas, onde o gado, seja ele onde estivesse – era a mola mestra da vida desses homens. Homens que nasciam e cresciam livres, como a vastidão dos campos.
Já recuperada, Nadejda decidiu se integrar em definitivo ao universo do marido. Já não vestia os vestidos rodados de antes, preferindo as roupas da região, ousando mesmo a vestir bombachas e a calçar botas de fole. Hábil amazona e melhor atiradora, se impôs entre os homens de seu marido, que a respeitavam como a ele próprio. Mas ela era toda carinho para com o filho, que era a luz dos olhos do pai. Ele crescia rápido, ágil, curioso com o mundo à sua volta.
- É um belo menino esse meu neto, minha nora. Parece que puxou ao pai, com essa vontade toda de crescer.
- As crianças são assim, curiosas com o mundo
- Meu Lucas era assim. Um menino traquina, inquieto com o mundo
- Esses ares de menino me trouxeram até aqui, minha sogra
- Vejo felicidade em meu filho, mas te advirto aqui de uma coisa.
- O que?
- A vida no continente é sempre de sobressalto... Ora se pode estar de paz, ora nossos homens partem pra lutar em outras bandas. Assim é a vida aqui.
- Minha família é de homens do mar, minha sogra. Sabemos muito bem o que a senhora fala. Minha mãe mesma sabe o que é isso. Perdemos nosso pai, eu e meu irmão gêmeo, no dia em que nascemos
- Então estás preparada pra viver aqui, minha filha. Estás mais que preparada.
No Rio, Nigel seguia com seus deveres de observador. A situação política na cidade se agitara, com os clubes da maioridade fazendo abertamente campanha pela antecipação da maioridade do Imperador. Em todas as províncias pipocavam clubes maioristas, que publicavam editorial após editorial, defendendo que o Imperador deveria assumir a nação, antes que a anarquia assumisse. Ele pensava naquele garoto de quase quatorze anos, investido de uma responsabilidade que, por mais que estivesse preparado, era assustadora. Ele teria de pacificar um país. Sempre estava em audiência, ao menos uma vez por dia, no Paço de São Cristóvão. De uma relação de respeito, nasceu uma profunda amizade, na qual Nigel era quase um pai. Ele pensava em Robert, seu filho, e jamais descuidava de , além de sua educação, dar todo o seu amor de pai, sempre que estava próximo.
Uma semana depois, realizou-se a cerimônia de batismo, segundo o ritual anglicano. Foi uma cerimônia doméstica, pois a Constituição brasileira, apesar de ser tolerante com as demais religiões, considerava apenas a Igreja Católica como oficial; as outras religiões eram permitidas, mas apenas em seu culto doméstico, sem templos ou santuários. Assim, Robert Monforte Shatov-Willingthorpe se tornava cristão. O Imperador mandara um presente – uma cruz de ouro com cravejamento de esmeraldas – através da Condessa de Gouveia, uma amiga de Leonor que era esposa do camarista do Paço.
Numa das audiências que o Imperador concedia a Nigel – momento pra oportunas conversas informais. – um grupo foi anunciado pelo camarista. Tinham urgência de falar com o Imperador. Eram representantes dos vários clubes maioristas das províncias, que queriam uma audiência urgente. Depois de convencerem o regente, Pedro de Araújo Lima, um político calejado e homem de visão, embora fraco, se dirigiam agora ao próprio Imperador, pedindo uma decisão se aceitaria ou não o trono. O Imperador os fitou, um a um. Seus olhos pareciam ler as vontades de cada um dos membros daquela comissão, a esperança nos olhos de cada um. O Imperador olhou para Nigel, que apenas assentiu com a cabeça. A seguir, os membros do comitê perguntaram, em um tom de quase implorar.
- Sua majestade deseja seu reino? Sua Majestade quer assumir o trono de seu pai?
- Quero já! – Disse, com voz firme e olhar idem – Quero já!
As ruas do Rio se tomaram de festa. “Temos um Im perador”, gritavam os passantes. “Viva Dom Pedro segundo”, gritavam outros. Nigel estava contente, e, de certa forma, aliviado. Aquele menino se tornara um homem. Isso ele lera nos olhos dele. Aquele menino saberia governar o país. Agora, ele teria de ter paciência para toda a azáfama e a lufa-lufa da cerimônia de coroação. Aquele seria um dia longo...
As notícias da antecipação da maioridade e da coroação do Imperador chegaram à estância do Lagar à tardinha, quando Atanásio chegava a galope, vindo da estância de Santana da Alegria. Trazia os exemplares de jornais do Rio, que tratavam da coroação do Imperador e do Movimento Maiorista. Lucas estava chegando ao alpendre quando tomou a notícia das mãos do capataz.
- Isso é sério mesmo?
- É, sim, patrãozinho – disse entre arrancos – os homens da capital coroaram o Imperador e estavam dando vivas até agora.
Lucas tomou os jornais nas mãos e os levou a seu pai, que leu com atenção cada linha. Um suspiro de alívio saiu e seu peito. Seria a esperança de paz para a região , que ainda sofria com a confrontação entre farroupilhas e imperiais. Nadejda o acompanhou, o pequeno Lucas no colo, enquanto conversava com o pai.
- Será mesmo a paz, meu pai? Os imperiais e os farrapos ainda não estão cansados de pelear, que eu saiba
- Mas um imperador, meu filho, já é diferente. Vê que o Rio de Janeiro já entrou em calma.
- Mas aqui os ânimos estão mais exaltados, e os farrapos deram um passo que não podem voltar atrás...Eles perderiam prestígio
Ele sabia do que falava. Mesmo com propriedades e gado na Banda Oriental, os farroupilhas deram um passo que os colocava como inimigos figadais do governo imperial, que muito possivelmente não teria clemência com eles. Mas já tinha sabido da chegada do Barão de Caxias, que assumiria o comando das tropas imperiais. Ele já havia debelado a Balaiada, e faria o mesmo com a Farroupilha. Como era de praxe, chamou os líderes para negociar, mas nem Davi Canabarro nem Bento Gonçalves se aprestaram. Assim, começou lentamente a negar terreno aos farrapos, deixando pouco espaço para que eles manobrassem, pois Caxias sabia que não poderia vencê-los nas regras deles, ou seja, na cavalaria. Ele teria de desgastá-los para vencer
No Rio, Nigel, tinha mais uma audiência com o Imperador, desta vez já como soberano coroado. Em seu uniforme de cerimônia, estava pouco à vontade, mas voltar a ver o Imperador fez bem a ele
- Como tem passado, comandante? E o pequeno Robert?
- Estamos bem, Majestade. E o senhor?
- O senhor tinha razão, comandante. Uma responsabilidade e tanto
- Que o senhor saberá conduzir sabiamente.
- Esqueça as formalidades, agora, me conte como está a família e as notícias da Inglaterra.
Ao chegar em casa, comentou com Leonor as novas da audiência, e como estava a situação do Imperador. Conseguira unanimidade mesmo nas províncias mais agitadas, e parecia que tudo iria se encaminhar. Leonor escutava tudo atentamente, enquanto amamentava o pequeno Robert..
- Meu amor, esta mensagem chegou para você. Do próprio almirante Greenfell
Ele abriou cuidadosamente o envelope, que trazia uma convocação do almirante, para que seguisse com ele para o Sul, ao porto de Laguna, mas antes passaria em Porto Alegre, para abastecer a tropa que levava ao sul. Ele franziu o cenho, preocupado, pois não queria deixar Leonor nem o pequeno Robert na cidade. Pediu que pegassem o primeiro barco para a Inglaterra, ficassem um tempo com a condessa Ludmila, at´pe que ele dissesse que tudo estava seguro.
- Acho que é melhor pra vocês no momento. Ademais minha mãe quererá conhecer o pequeno Robert.
- Sei de tua preocupação, meu amor. Não seria necessário, mas já que achas melhor, iremos eu e o pequeno Robert.
Enquanto o navio partia para a Inglaterra, Nigel se juntava ao Almirante Greenfell e partia para o Sul, onde outra aventura começaria...

Chegaram ao litoral de Santa Catarina por volta da tarde, depois de alguns dias de mar um pouco agitado, desmanchando a impressão, criada pelo Almirante Greenfell, de que Nigel fosse apenas um soldado de gabinete, um burocrata de Londres. Ele se revelara um completo marinheiro, surpreendendo pelo conhecimento das correntes do litoral, um litoral que ela esteve apenas por aproximar-se; Greenfell rendeu-se às habilidades de Nigel. Fundearam na Barra , pois a cidade ainda estava sob o poder dos farrapos, que tinham proclamado a República Juliana um ano antes , mas informantes dentro da cidade aviaram a Greenfell que os farrapos eram cada vez mais odiados, e ele iria se aproveitar disso para capturar a cidade.
- Meu plano, comandante, é me aproximar mais do litoral na calada da noite, e desembarcar as tropas de surpresa. Não cometerei o mesmo erro duas vezes
Ele falava de uma mesma tentativa, feita há um ano, mas as barcaças de desembarque foram surpreendidas por dois lanchões armados dos farrapos, que foram trazidos campanha adentro sobre rodas, por um grupo de farrapos comandados por um italiano chamado Giuseppe Garibaldi. As barcaças foram atacadas e tiveram que se retirar, sob fogo dos lanchões farrapos. Mas ele não permitiria que isso acontecesse uma segunda vez.
Ludmila recebeu com alegria Leonor e o pequeno Robert, tomando o neto no colo assim que chegaram a Seagate Manor. Leonor contou da cidade do Rio de Janeiro, das audiências de Nigel com o Imperador, e do nascimento do pequeno Robert. Ela ouviu tudo atentamente, contando também a Leonor a história da aparição de Thomas. Mas o mais importante é que seu neto estava lá, para mimá-lo, senti-lo; era como se um pouco de Nigel estivesse ali, com ela...
O desembarque em Laguna havia sido bem sucedido, e agora os rebeldes não tinham mais nenhuma saída para o mar. Cada vez mais eram empurrados para o interior da província, onde apenas sua habilidade como cavalarianos os impedia de ser derrotados completamente. Mas isso não poderia durar muito e, cinco anos depois, os farrapos faziam a paz. Não uma derrota, mas um armistício, lembrando a palavra de Caxias, que dizia que “tais homens não se venciam pelas armas”.
A missão de Nigel estava completa, e ele poderia se reunir à família na Inglaterra. Mas ele queria ainda fazer duas coisas.Uma delas ele fez de imediato: tomou o primeiro navio para Porto Alegre, e daí uma carruagem para a Estância do Lagar, onde Nadejda já o esperava, pois ele teve o cuidado de despachar um mensageiro para avisá-la.. Ela já estava no alpendre, em trajes gaúchos, com Lucas e o filho, e dona Teresa, pois seu sogro, Julião Almada, havia morrido no inverno anterior e Luciana, a cunhada, havia se casado com o filho de Fernão Morgado, que havia retornado da Europa, e viviam na Estância da Gamela.
- Meu irmão!!!Venha e me dê um beijo!!! Que saudades suas!
- Vejo que continua transgressora vestida assim, de forma tão forte. Que diriam teus amigos em Londres?
- Minha vida é aqui, me sinto bem assim. Mas não foi para criticar minhas roupas que viajaste tão longe. Conte-me as novas enquanto tomamos um amargo.
Depois do aperto de mão com o cunhado, Lucas adentrou a sede da estância, enquanto uma mucama lhe carregava as malas e ia preparar o seu banho. Enquanto isso, ela e Lucas escutaram atentamente a narrativa do nascimento de Robert, as audiências e a amizade nascida com o Imperador, e sua ação no desembarque de Laguna. Nadejda contou-lhe então a batalha na estância, os mortos e feridos e o nascimento do pequeno Lucas, que corria solto pela casa, até esbarrar nas pernas do tio, que o pegou no colo e o abraçou e beijou afetuosamente.
- Como todos na família, nasceste no meio de lutas. É nosso destino, não é mesmo, irmã?
-Parece sempre estar escrito em nós, meu irmão... Sempre.
Os dias foram maravilhosos na estância. Nigel desenferrujou suas habilidades eqüestres, surpreendendo Lucas, que achava que um marinheiro não teria habilidade com os cavalos. Mas Nigel se revelou um excelente cavaleiro, não decepcionando Nadejda, que achava que o irmão, depois de tanto tempo no mar, tivesse desleixado de cavalgar.
- Leonor e eu sempre cavalgávamos no Rio. Servia para nos distrair muito. E levávamos o pequeno Robert, também...Sei do crescimento dele apenas pelas cartas de Leonor. Devo voltar à Inglaterra nestes próximos quinze dias, para apresentar meu relatório ao Almirantado
- Que pena, meu irmão..Poderias ficar mais tempo..Mas sei de teus deferes, e jamais foste de ser leviano com eles.
Assim, Nigel deixou Porto Alegre e, antes de ir para a Inglaterra, solicitou uma audiência com o Imperador na Paço de São Cristóvão, no que foi prontamente atendido. Ao encontrarem-se, Nigel viu o quanto ele havia mudado. Já não era mais o rapazola assustado que vira pela primeira vez, mas um homem resoluto, senhor de si, não mais assustado, mas uma personalidade que, ao mesmo tempo, inspirava confiança e bondade. Em trajes comuns, parecia mais o reitor de uma universidade a um monarca. Mas era essa a imagem que sempre Nigel sentiu quando o viu pela primeira vez; mas dali também havia algo mais, uma força que, Nigel sabia,poderia conduzir o país.
- Prazer em vê-lo, comandante. Como vai sua caríssima irmã? Espero que bem.
- Está sim, Majestade. Todos se encontram bem, obrigado pela sua preocupação
- Com que então vai nos deixar, comandante. Sentirei falta de nossas conversas. O que vai colocar em seu relatório final?
- A mais positiva das impressões, Majestade. Meu país só tem a lucrar com a amizade entre nós. É com pesar que eu vos deixo e a este país. Meu filho nasceu nele, e tenho um respeito muito grande por esta terra.
- O senhor tinha razão comandante. Tenho de fazer o melhor por este país. Meu pobre pai não teve tempo de fazê-lo. Cabe a mim, agora..
- Então, majestade, faça sempre o melhor que puder, e não desampare este país...
- Tenha certeza de que não o decepcionarei, comandante. Tenha uma boa viagem. Que Deus o acompanhe.
- Também a vós, majestade.
Do tombadilho do navio, Nigel via a costa brasileira se desvanecer no horizonte. Sentiria falta daquela terra, que, agora, era o país de sua irmã. A viagem transcorreu calma e sem incidentes, e foi com alegria que Ludmila, Leonor e cada vez mais crescido Robert o receberam na varanda de Seagate Manor. Leonor o recebeu com um apaixonado e caloroso beijo, enquanto ele tomava o pequeno Robert no colo, e também com a mesma ternura abraçava a mãe, que, enfim o reencontrara.

Um comentário:

  1. Que lindo este blog literatura ao alcance , isso é maravilhoso ja que o Livro é tão caro em nosso Pais ,adorei , bjus Loli Colpa

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A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!