Ela chegou
do mesmo jeito de sempre.
Com os
sapatos na ponta dos dedos, girou a chave na porta ao mesmo tempo que deixava
cair o guarda-chuva no balde de tela na entrada do apartamento; deixou a bolsa
na poltrona perto da porta, os sapatos no lado da mesinha do telefone e
sentou-se no sofá, esticando as pernas. Respirou fundo...
Só então, se
deu conta de uma coisa. Ele não estava lá.
Tinha
acabado de chegar do funeral dele; os poucos e fiéis amigos carregaram o caixão
para a sepultura simples, um jazigo comprado há muito, onde repousavam a mulher
e a mãe, a primeira ocupante; o pai, na preferência de ser cremado, preferiu
que suas cinzas fossem sepultadas com a companheira; caía uma chuva fina, que
ele apreciava de ficar horas olhando pela janela, notando cada passante
apressado , mesmo da altura do 16º Andar; um dos amigos recitou uma elegia
simples, depois de uma silenciosa meditação; o caixão foi colocado no lóculo e
este, finalmente, lacrado;
Ela não
chorou e nem choraria agora; lembrou do pai repetindo a frase de Oswaldo Cruz:
“a morte é um fenômeno biológico tão natural e tão inevitável, que acho
desnecessário e fútil frisá-la com cerimônias especiais”; mas uma última
vontade do pai ela não cumpriu; ele, que desejava ser apenas amortalhado, foi sepultado
com um terno sob medida, sapatos impecáveis e bem arrumados; “se ele tinha de
ir ao encontro do Criador”, pensou ela, “deve ir bem vestido”. Permitiu-se um
riso leve, antes de entrar no chuveiro...
Saiu do
banho como se largasse um fardo; enxugou-se, vestiu um vestido leve e pôs-se a
esquadrinhar o apartamento; precisaria arrumar muitas coisas, arquivar as
anotações e cadernos do pai, ajeitar documentos, resolver pendências...
Documentos...
Lembrou-se
do blazer largado no sofá; Lisandro, advogado do pai por anos, desde que saíra
das barbas da faculdade, entregou a ela um envelope, onde, na letra rebuscada
do pai, estava escrito apenas: “leia depois do meu enterro”; pegou o envelope
do bolso, foi para o quarto e começou a ler...
“Cara Filha
Eliza
No momento em que corres os olhos sobre
estas linhas, eu com certeza já devo estar morto e o Lisandro, com aquela cara
solene de papa-defuntos (que ele não nos ouça) entregou o envelope pra você;
não preciso te dizer coisas que já sabes; O próprio Lisandro vai se encarregar
disso; o que tenho pra te falar é outra coisa...
Tu, mais do que ninguém, sabes do que
foi a paixão da minha vida; desde quando conversei pela primeira vez contigo
sobre o assunto, depois de todas as tempestades da tua vida, vi que entendias e
sabias do meu interesse mais do que a sua mãe – que Deus a tenha – e que
igualmente sabias que aquilo era o móvel de algo mais que um simples interesse
por história; para mim era o resgate de gente que, se pudesse ser ouvida, falaria
de um tempo que conhecemos tão pouco; até quando conheci o Antônio Ribeira, em
meu tempo de juventude, senti que era algo mais que me movia, como se um mentor
oculto apenas me dissesse: “conte a história deles”; consegui juntar peças ,
mas nada consegui contar; assim, o que te peço é que destine a alguém que o
possa fazer, para que tudo o que busquei nesse tempo todo em minha vida não
morra junto comigo; não te obrigarei que o faças; podes simplesmente passar ao
Lisandro; dei instruções a ele para que proceda tudo e acompanhe o desenrolar
dos acontecimentos; esse pedaço da história é precioso demais pra ser
esquecido, importante demais para permanecer no fundo de uma gaveta; te peço
que não deixe que sejam esquecidos; lutei demais para emergir tudo isso, mas
sempre encontrei portas fechadas, senões, recusas e desculpas esfarrapadas;
sinceramente espero que consigas ter êxito onde eu não consegui...
Tente ser
forte; sempre foste; me alimentei da tua força em segredo, quando em muitos
momentos quase esmoreci; assim, eu confio em ti para que possas fazer com que
essas histórias sejam, finalmente, contadas...
Do Teu Pai
Silvano Andeiro Thomaz”
Silvano Andeiro Thomaz”
Ela deixou a
carta sobre a cama, respirou fundo e meditou; lembrava das constantes viagens
do pai, sempre em busca de histórias sobre sua grande paixão, A Guerra do
Paraguai; lembrava da mãe dar de ombros, a dizer: “sandices do teu pai” mas não
protestava nem fazia caso; ainda estudante de arquitetura, lembrava que por
vezes o pai mergulhava em silêncios longos, onde parecia se apartar do mundo e
mesmo da consciência, guardado que estava em sua reclusão; seu local nessa hora
era o pequeno espaço próximo ao janelão que dava pra rua, onde ele gostava, nos
dias de chuva, ver os passantes apressados procurando se proteger; nesse local,
arrumaram uma estante e uma cadeira preguiçosa que dava ao local um ar de Sancta
Santorum; nem Ademilde, a fiel faxineira que servia a casa, mexia
naquele local; era onde ele fazia seu templo, seu refúgio, seus segredos...
Ela ficou
pensativa por um instante, releu a carta e deitou-se, remexendo as palavras do
pai, como se quisesse descobrir algo mais; ela o vira escrever, algumas vezes à
mão outras vezes na velha Olympia que, por mais que ele tivesse à disposição um
laptop, presente dela, onde escrevia suas colunas para diferentes revistas e
jornais, preferia fazer alguns escritos na velha Olympia, mas sempre tinha um
destino para aqueles papéis que ela não conhecia;
Saiu do
quarto e foi até a sala; parecia ter dobrado de tamanho, tal era a sensação de
ausência do pai; tudo parecia estar mais longe; a mesa de jantar no lado
esquerdo a estante de Louça Companha das Índias, orgulho da mãe, que gostava de
colecionar peças; o relógio de carrilhão no lado oposto, a coleção de
miniaturas de monumentos, a única coisa que ela se assumia apaixonada; o lustre
de estilo Lalique, feito por uma amiga artesã vidreira, cuja luz esverdeava
coloria a sala. Viu o recanto do pai, do jeito que ele havia deixado antes de
ir para o hospital; só agora, confrontada com a imensidão do espaço, sentiu a
falta dele; foi para o quarto, deitou-se novamente, e sem nem mesmo prévia,
chorou copiosamente até que, como se drenasse toda a tristeza num único
instante, dormiu.
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A honra e o privilégio são meus...Muitíssimo Obrigado!!!